A VIA SACRA DA POESIA DE MANOEL DE BARROS

Adalberto Müller Jr.

Universidade Federal Fluminense

adalbertomuller@gmail.com

Elisa Duque Neves dos Santos

Universidade Federal Fluminense

elisaduquesantos@gmail.com

Resumo: A poesia de Manoel de Barros peregrina por campos que ecoam na proposta de comunhão mística, que se dá na anulação das hierarquias entre os seres e seus modos de associação. Assim, propôs-se pensar nos procedimentos de comunhão, como a incorporação, a transubstanciação, a fusão e suas implicações nessa poesia. Este artigo investiga, sobretudo, a sobrevivência de um vínculo de encantamento, que faz fronteira com o sagrado, em íntima troca com a natureza.

Palavras-chave: Manoel de Barros; literatura e mística; sagrado e profano; erotismo e poesia.

Abstract: The poetry of Manoel de Barros peregrinates to a field that echoes on the proposal of mystical communion in the annulment of the hierarchies between beings and their association modes. Thus, it is relevant to this research to think of communion procedures, such as incorporation, transubstantiation, fusion and their implications in Manoel de Barros’ poetry. This paper investigates, especially, the remaining of an enchantment bond which borders the sacred in intimate exchange with nature.

Keywords: Manoel de Barros; literature and mystics; sacred and profane; eroticism and poetry.

INTRODUÇÃO

A literatura é território inventado para lidar com a desterritorialização do ser, que transita sem certezas, carente do maravilhamento, incompleto na sua condição ontológica e afastado da experiência de um conhecimento do sagrado. Manoel de Barros propõe pelo exercício de sua criação poética esse preenchimento do seu próprio vazio1, na medida em que recupera uma espécie de nostalgia que pode ser alinhada ao desejo de reformulação do mundo como resposta a um vazio típico da modernidade, a um querer retornar a uma natureza selvagem ou a uma ingenuidade de infância, avessas às imposições civilizatórias e à instrumentalização da vida; um retorno à liberdade que permite o ilogismo – o absurdo como método de preenchimento do ser.

Para o poeta Manoel de Barros, “É a voz de Deus que habita nas crianças, nos passarinhos/ e nos tontos./ A infância da palavra.” (BARROS, 2010, p. 455). Dessa maneira, a “natência”2 é a voz do Deus oculto revelada pelas crianças, pelos loucos e pela natureza – aqueles com habilidade de divinação: “Quem acumula muita informação perde o condão de/ adivinhar: divinare./Os sabiás divinam” (BARROS, 2010, p. 341); “O orvalho endivina os tontos” (BARROS, 2010, p. 292); “Sapos sabem divinamentos/ mais do que as árvores/ mais do que os homens.” (BARROS, 2010, p. 146).

Ademais, somente ao homem que estiver “empoemado” restará também a habilidade divina como a de Bernardo ao “aplainar as águas”: “Bernardo está pronto a poema./ Passa um rio gorjeado por perto./ Com as mãos aplaina as águas./Deus abrange ele.” (BARROS, 2010, p. 212).

A poesia de Manoel de Barros trata da questão do sagrado não somente por meio da abordagem de uma mitologia ou pela referência ao divino, à eucaristia, à ascensão, à cristianização, à sagração, e a outros termos relativos ao cristianismo; mas, principalmente, pela discussão de um sagrado como abertura – via conhecimento natural – para a continuidade (BATAILLE, 2013). Essa continuidade poderá ser alcançada pela despersonalização, expansão, transfiguração, transubstanciação, fusão, metamorfose, regeneração dos seres.

Estão em questão a ontologia, a cosmologia, a imanência e também o sagrado – campos conhecidos dos estudos metafísicos. Mas, é importante esclarecer já de início, que Barros não se filia a uma metafísica (tà metá tà physiká – além da phýsis: matéria/natureza)3 que se quer transcendente, nem tampouco se apoia em uma metafísica que, por um caminho afinado com a ciência (polo da metafísica do conhecimento), diminuiu a credibilidade da experiência pessoal (polo da experiência metafísica). Ao contrário, a poesia de Barros faz fronteira com um sagrado que se configura como uma experiência de continuidade imanente (BATAILLE, 2013), uma força própria do mundo físico e que não separa a manifestação de Deus da natureza,4 ou o corpo do espírito: tem-se aqui confluência com os pensamentos de Henri Bergson e Baruch Espinoza. Para este último, por exemplo, essa força é Deus sive natura (Deus é natureza) e experiência que considera o mundo sensório.

Não se trata, no entanto, de pensar o poeta biográfico como um religioso, teólogo, ou um místico, nem tampouco investigar sua relação pessoal com experiências do sagrado, por mais que saibamos, por suas declarações, que se nomeava um homem de fé católica, e do seu amplo conhecimento das escrituras cristãs (BARROS apud MÜLLER, 2010, p. 79). Sobretudo nos interessa observar o poeta moderno como um asceta secularizado e o aspecto místico de peregrinação da poesia de Barros dentro de um panorama de estudos da arte moderna que faz fronteira com teorias que circulam sob a temática da experiência mística, já que para Barros a poesia pode também proferir palavras sagradas:

Penso que as palavras, vindas de um olho anômalo de poeta, podem sagrar também a lesma. Podem sagrar a palavra caracóis. E o restolho terá ascensão. A boca estará ardente de chão. E as albas serão ouvidas roupa é o musgo. Revestir seres vivos é o sonho do musgo (BARROS apud MÜLLER, 2010, p. 68).

***

Em Nostalgia do Absoluto, George Steiner (1974) verifica reflexos de uma modernidade ocidental que recupera, em sua morfologia, aspectos do religioso como um movimento de preenchimento do vazio deixado pelo enfraquecimento da teologia: “a decadência de uma doutrina cristã abrangente deixou em desordem, ou em branco, percepções essenciais de justiça social, do significado da história humana, das relações entre a mente e o corpo, da posição do conhecimento na nossa conduta moral” (STEINER, 2003, p. 12). Ele nos mostra como o marxismo, a psicanálise freudiana e a antropologia estrutural de Lévi-Strauss podem ser lidos como “teologias substitutas”, mitologias racionais ligadas aos três critérios básicos da estrutura da religião: a análise pela totalidade (que busca uma imagem completa do homem no mundo), um momento de revelação (ou diagnóstico súbito por meio de textos que se tornam cânones daquele pensamento), e a linguagem específica (um idioma característico, “seu próprio conjunto de imagens emblemáticas, metáforas, cenários dramáticos” [STEINER, 2003, p. 14]).

Cabe salientar que Steiner colocará esses três princípios como sistemas de crença e argumento que não se pretendem religiosos pelo conteúdo que pregam, mas cujas estruturas, aspirações e exigências dialogam com a proposta de totalidade, além de serem “canonicamente organizados, imagens simbólicas do significado do homem e da realidade” (STEINER, 2003, p. 15).

Não nos interessa afirmar que a poesia de Barros funcionaria como um sistema religioso, mas de constatar os registros que circulam pelas fronteiras do sagrado: uma dinâmica entre o claro e o escuro, que revela, mas mantém o mistério; e uma linguagem e construção imagética próprias que confirmam sua marca distintiva. Essa reflexão nos valerá somente para provocar a questão: se a poesia de Manoel de Barros poderia ser apreciada também como gesto poético com rastros dessa nostalgia, sob a ótica de propor uma teologia substituta que traria nela critérios propostos por Steiner.

A revelação sugere ver o que não se mostra imediatamente e induz para um movimento de saída, de um emergir do oculto à luz. Octavio Paz compara a revelação poética (bem como a religiosa) a “um salto mortal” que indica tanto um movimento radical de “mudança de natureza” (por exemplo, de uma coisa que antes não vemos, mas que é posta a ver - que é revelada) quanto um movimento de “volta” (retorno ou lembrança) a uma natureza original, latente, e encoberta “pela vida profana” (PAZ, 2012, p. 144).

No poema de Manoel de Barros intitulado “, do livro Poesias (de 1947), observa-se o sujeito lírico diante do desconhecimento das coisas imprevistas. Nesse poema as “coisas impressentidas” têm ouvidos para escutarem o sujeito lírico; são coisas como “movimento”, “silêncio”, “luz”, “susto dos pássaros”, “mãos que descobrem a terra”, coisas intangíveis como “ilhas submersas”, “eu redescoberto pelo bulir das folhas”. A revelação traz à tona as figuras obscuras e imprecisas que funcionam como mistérios e enigmas (BARROS, 2010, p. 9):

2.

São mil coisas impressentidas

Que me escutam:

O movimento das folhas

O silêncio de onde acabas de voltar

E a luz que divide o corpo do nascente

São mil coisas impressentidas

Que me escutam:

São os pássaros assustados, assustados,

Tuas mãos que descobrem o convite da terra

E os poemas como ilhas submersas…

São mil coisas impressentidas

Que me escutam:

Sou eu apreensivamente

Solicitado pela inflorescência

Redescoberto pelo bulir das folhas (BARROS, 2010, p. 49)

A revelação descobre e “redescobre” a abertura: uma experiência revulsiva que bota para fora algo, que passa a se configurar como aparição à luz da visão.

Apesar de suas distinções, as revelações poética e religiosa obedecem ao mesmo movimento: sustentam, pela vertigem do assombro e pela experiência da visão, a abertura para o emergir de um outro escondido por trás de um “eu apreensivamente solicitado” (BARROS, 2010, p. 49). Essa perspectiva de revelação (desenvolvida por Rudolf Otto e convocada por Octavio Paz) é compreendida como a graça de um homem que se abre para si mesmo, confrontando-se com a imagem de um dom concedido por um ser exterior. Nessa configuração de revelação, “Deus é o que jaz oculto no coração do homem” (PAZ, 2012, p. 148). Está no homem o oculto Deus que, na revelação, o assombra, causando o tremor do êxtase na experiência do sublime. Dessa maneira, Octavio Paz cria uma aproximação entre a poesia e o ato de divinizar do místico: “O homem é um ser que se assombra; ao assombrar-se, poetiza, ama, diviniza” (PAZ, 2012, p. 149).

Trazer à luz o oculto é um modo de magia e, diante disso, o poema se apresenta como uma revelação; contudo, em Manoel de Barros, a luminosidade de seus poemas somente pode ser medida diante de um paradoxo claro x escuro, que por vezes, assemelha-se à estética barroca: “O escuro encosta neles/ para ter vaga-lumes” (BARROS, 2010, p. 252). Sobre isso, encontramos no poema “Sobre Importâncias”, da 1ª. parte de Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, a ênfase dada ao “ramo de luz”, “do pingo de sol”:

[...]Para um artista aquele ramo de luz sobre uma lata

desterrada no canto de uma rua, talvez para um

fotógrafo, aquele pingo de sol na lata seja mais

importante do que o esplendor do sol nos oceanos.

Pois. Pois.[...] (BARROS, 2010, p. 407)

Ora, a luz diminuída que também encontramos em passagens como “Nas fendas do insignificante ele procura grãos de sol” (BARROS, 2010, p. 177 – grifo nosso) contrasta-se ao “esplendor do sol”. Um pequeno foco de luz não é capaz de revelar o todo. Este parece ser o interesse do poeta: manter ainda um lugar para o oculto, o escuro “das horas mais apagadas” para “sentir o segredo das coisas vivas”: “Sair andando à toa entre as plantas e os animais./Ver as árvores verdes do jardim. Lembrar das horas mais/apagadas./ Por toda parte sentir o segredo das coisas vivas./ Entrar por caminhos ignorados, sair por caminhos/ignorados” (BARROS, 2010, p. 59).

Não se trata de buscar saber qual é o grau de iluminação dos poemas de Manoel de Barros: se tendem para a luz da manhã, da tarde ou para o breu da noite. De fato, sua obra completa possui quantidade aproximadamente equilibrada de ocorrências dos três termos (manhã/tarde/noite), como se fosse possível observar a passagem de todo o dia. O que nos interessa é saber que a revelação enquanto poética de iluminação de um segredo, na poesia de Barros, destaca-se mais pelo desinteresse de conhecer o Todo (“As coisas mais importantes lhe aconteciam no escuro,/ como a surpresa de uma flor desabrochada à noite” [BARROS, 2010, p. 88]) e pela manutenção da “ignorãça” como método de criação, pois, conforme declara: “criar sempre começa do desconhecer” (BARROS apud MÜLLER, 2010, p. 126) para que “fique na nossa vida fresca e incompreensível/Um mistério suave alisando para sempre o coração” (BARROS, 2010, p. 43).

Segundo Octavio Paz, a “revelação sempre desemboca numa criação: a de nós mesmos” (PAZ, 2012, p. 161). Em consonância com o ensaísta mexicano, diz-nos a poesia de Barros: “[...] Um verso se revela tanto mais concreto quanto seja/seu criador coisa adejante/ (Coisa adejante, se infira, é o sujeito que se quebra/até de encontro com uma palavra.)” (BARROS, 2010, p. 180). A revelação na poesia de Barros se realiza, pois, como uma abertura do sujeito “que se quebra” para se encontrar com a palavra posta à luz, valorizando a existência de um sujeito por trás da revelação – um olho que vê, uma “boca” que diz – “Não pode haver ausência de boca nas palavras:/ nenhuma fique desamparada do ser que a revelou” (BARROS, 2010, p. 345). Diferente da revelação transcendental e religiosa, que aponta para um infinito e sobrenatural, a poesia revela a vida desta vida, a nossa condição paradoxal de abarcar vida e morte em nós: “E as palavras, têm vida? /— Palavras para eles têm carne aflição pentelhos — e/ a cor do êxtase” (BARROS, 2010, p. 249). Mas o que revela a poesia de Manoel de Barros? Revela a abertura do ser para as possibilidades que decorrem de todo nascer. De sua “natência” culmina um “desejar ser” claro e escuro/ evidência e mistério.

Assim, a “natência” da poesia de Barros se relaciona com um incessante brotar, evidenciado pelos elementos da poesia que indicam a existência insubmissa, característica da sensualidade poética de Barros (por vezes derrisória e obscena) e que tendem a se relacionar com o êxtase místico de Georges Bataille, não só pelo sensualismo orgástico presente na poesia de Manoel de Barros, mas também por ser meio para uma experiência de abertura à continuidade que se confirma na expansão, no prolongamento dos seres, n“o movimento da vida, que é habitualmente comprimido, mas que se libera, de repente, no transbordamento de uma alegria de viver infinita” (BATAILLE, 2013, p. 272).

Como instância do sistema de crença desenvolvido por George Steiner, tem-se também o idioma característico, as marcas do estilo que serão, no caso de Manoel de Barros, seu modo de escrita. Para esse poeta, “estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.” (BARROS, 2010, p. 346).

A vinculação de estigma com anormalidade remete desde a conotação de marginalização ao simbolismo religioso das Cinco Chagas de Cristo e de São Francisco – primeiro santo a sofrer com o fenômeno do “milagre dos estigmas” (FRUGONI, 2011, p. 127). O estigma é, de fato, aquilo que separa e destaca uma pessoa de um grupo, mas representa, no sistema da crença cristã, um sinal de beatitude e de importante vínculo com o Sagrado, sinal de glória. Os estigmas do estilo de Barros são também para o poeta um motivo de orgulho: “Fui aclamado de idiota pela maioria/ das autoridades na entrega do prêmio./ Pelo que fiquei um tanto soberbo./ E a glória entronizou-se para sempre/ em minha existência” (BARROS, 2010, p. 474). Mas sua “glória” é pela “marca genesíaca” inconfundível de seu discurso poético (BARROS apud MÜLLER, 2010, p. 117).

Ele opera na linguagem um jogo intencional que se quer ser sentido como disparate acidental (“Poesia é também um pouco ser pego de surpresa pelas palavras” (BARROS apud MÜLLER, 2010, p. 47). Cria um “idioleto” que está tanto para o “que os idiotas usam para falar” quanto para idioma – ambos os termos, aliás, derivados do grego idio-, indicando “próprio, pessoal, privativo”. Barros, para chegar ao grau de “anormalidade” desejado, busca sair do especificamente linguístico para buscar aquilo que é tanto um idioma reduzido (uma língua menor e privada: “manoelês”) quanto uma volta às origens (um arcaísmo antiquado, indicado, inclusive, pela grafia de “archaico”).

Desse modo, de um lado, seu discurso poético se empenha em transfazer o código da língua portuguesa para inventar “despropósitos”, desvios na ortografia padrão; distorce noções, cria anomalias gramaticais e sintáticas (que não se encaixam em regências dominantes); experimenta fenômenos semânticos que criam imagens tão estranhas quanto impossíveis; adota uma família de palavras que o acompanha por toda sua obra, garantindo que sua escrita se torne timbre reconhecível e distinto de outros autores. De outro lado, busca feições de primordialidade para seus termos, expressões e versos, visitando desde a fala comum da população rural a culturas indígenas remotas, que, por sua vez, explicam seu apreço por registrar modulações orais regionais; usa determinadas figuras de linguagem que mantêm forte apelo a fala sinestésica; busca formas primordiais da língua como, por exemplo, as interjeições, onomatopéias, o jogo lúdico e primário das imagens e das palavras produzidas por crianças. Uma busca que parte para as “antecedências”, onde se pode encontrar com o “caos germinativo” das “natências”.

***

O assunto do sagrado foi considerado alheio ao cânone da ciência moderna que partia de uma posição agnóstica em que somente a razão poderia estudar e examinar os fenômenos perceptíveis pelos sentidos e pela ciência. Diante da falta de comprovação científica da existência de Deus, e com a morte de Deus postulada por Nietzsche, os fenômenos do sagrado passam a ser buscados no próprio homem. Daí a mudança de postura ao relacionar a presença do sagrado com a própria vida, de maneira que o princípio de imanência religiosa seja a manifestação da necessidade do homem de uma explicação para fenômenos que parta da sua própria experiência, o que reflete o envolvimento da subjetividade e a antipatia pelo intelecto. Essa intuição – que, por sua vez, inclui o sensorial – é resposta à necessidade da divindade, da recuperação do espanto e de um espaço para se pensar o não assimilável, o maravilhamento.

Mas a revelação do divino na modernidade passa a ser interior e não mediada por uma entidade, reside imanente no mais profundo do ser humano, o que faz dela ao mesmo tempo natural e sobrenatural, porque dimanada da natureza humana e de uma divindade cativa no homem. Dessa forma, a relação moderna com a entidade sagrada é fatalmente atrelada ao corpo e aos efeitos sobre ele, passando a ser reconhecida como uma experiência fundamentalmente pessoal do incognoscível. Dá-se a quebra de um absolutismo e do objetivismo, típica do questionamento moderno das certezas.

O pensamento moderno sobre o sagrado convoca o questionamento dos dogmas e privilegia a experiência mística à certeza intelectual. A vida passa a ser superior à verdade, ou melhor, a verdade está submetida à vida. A manifestação do sagrado acaba por ser revelada pela presença em potência de um inefável em nós; e isso seria admitir uma presença do divino no humano, uma aproximação ou alinhamento das potências.

O sagrado, no texto poético, habita a fenda incomensurável (ULM, 2014) entre as palavras e a imagem, o limite aquoso entre o ser e o não ser. E para Fernando Pessoa, que é recuperado por Manoel na epígrafe do livro Retrato do artista quando coisa: “não ser é outro ser”. Desse modo, “o sujeito se inclina e se dilui no outro, no mundo. Mas, misteriosamente, ao diluir-se, toma corpo, ao apequenar-se, cresce. Está na criação de limiares que se abrem para outra conotação, surpreendente e que beira o indizível.” (SPERBER, 2011, p. 15).

A própria palavra “sagrado” carrega em si mesma a hybris, essa potência para o descomedimento, porque abarca “o profano e o sagrado, o dito, o silêncio do não-dito e o interdito. A palavra carrega o poder de nomear e ocultar” (SPERBER, 2011, p. 14). Por isso, podemos dizer que na literatura reside um estado de sagrado, notável “conforme o tratamento dado à caracterização de personagens, espaços, relações, territórios, sempre mediante a palavra” (SPERBER, 2011, p. 14 – grifo nosso). É por isso que Manoel de Barros, em um de seus poemas declara que em poesia o inefável, o incomensurável, como por exemplo a ausência do som, passará pelas palavras: “Com as palavras se podem multiplicar os silêncios” (BARROS, 2010, p. 477).

O silêncio é, para Barros, algo que preenche o vazio de voz das palavras, algo como um “idioma inconversável” (“Entendo ainda o idioma inconversável das pedras./ É aquele idioma que melhor abrange o silêncio das/ palavras.” [BARROS, 2010, p. 382]), pronunciado pela “boca do bárbaro” (BARROS, 2010, p. 411), e compreendido pelo andarilho (“Ele era um andarilho./ Ele tinha um olhar cheio de sol/ [...]O silêncio honrava a sua vida” [BARROS, 2010, p. 445]) ou pelo poeta (“Sou livre/ para o silêncio das formas/ e das cores” [BARROS, 2010, p. 416]).

A experiência mística passa por esse silêncio, é uma experiência pessoal de abandono, uma busca silenciosa e íntima e que não há meios de medida e comprovação que não passem por uma confirmação de ordem subjetiva. Por isso é, sobretudo, irrestrita e não doutrinária porque não se limita a dogmas e instituições, além de não resultar em nenhum valor prático de ordem social. Assim, a experiência mística é improdutiva e inútil em si mesma, embora possamos verificar ressonâncias místicas em várias práticas culturais, como na literatura. A essa improdutividade da experiência mística podemos relacionar à questão da inutilidade, várias vezes referida na poesia de Barros.

O inútil também se associa ao abandono: “Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam/ a Deus./Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!” (BARROS, 2010, p. 342)5. Portanto, nessa perspectiva, o místico, aquele que possui uma relação de intimidade com o sagrado, é comparado ao poeta que nasce “para administrar o à toa/ o em vão/ o inútil” (BARROS, 2010, p. 340), pois a sua busca não se caracteriza por uma ordem prática na espera do social e econômico, ao contrário, afasta-se da exigência de uma produtividade útil, pois a experiência ascética (místico-estética) do artista passa por um choque existencial e um abandono de si.

Eduardo G. Losso (2007) defende que a relação entre a mística e o artista moderno é resultado de uma prática estética em que o sujeito está dissolvido e a obra de arte está profanada. A busca autêntica de uma experiência individual cada vez mais isolada (“apropriada ao abandono”, diria Barros – até do próprio sujeito) é típica da modernidade que se emancipou das ideologias religiosas. No entanto, vemos na poesia de Manoel de Barros resquícios de uma mística anterior (pré-moderna) na pretensão de unir-se com o Absoluto e na indistinção entre sujeito e objeto.

Ao contrário de propor uma neomística fundamentada na ausência de Deus, do dogma e da crença, a poesia de Barros ainda reflete o pensamento sobre uma divindade (quer seja transcendente ou imanente) que possibilita um “alargamento” do sujeito lírico para as coisas e, principalmente, para o mundo natural que o rodeia, criando entre eles uma comunhão não hierarquizante.

O ascetismo místico em Barros pode ser comparado à mística do poeta germânico Angelus Silesius quanto ao pensamento que se distancia de um desejo de conhecimento e quanto à percepção de uma dialética da grandeza em que está implícita a presença divina nas minúcias, naquilo que parece pequeno para o mundo. Barros e Silesius compartilham do “olhar para baixo” e uma relação com o franciscanismo: Barros, um interessado pelos ensinamentos do Santo, e Silesius, um padre e filósofo que se consagrou na Ordem Franciscana. A poesia de Silesius direciona o entendimento de Deus com ideias da teologia apofática, basicamente antitética e paradoxal. Ainda, reconhece-se que alguns de seus escritos circulavam dentro de uma dinâmica panteísta ou panenteísta, o que nos faz pensar na “insuficiência original” (PAZ, 2012, P. 153) diante de Deus, a dinâmica de horizontalidade e não hierarquia entre seres, encontrada em Barros.

Por sinal, não podemos desconsiderar que esta noção de igualdade entre seres também é cristã, encontrada tanto como imparcialidade e justiça – desde textos do Velho Testamento quanto nos do Novo Testamento, em que a figura de Cristo insere uma mediação de uma semelhança entre Deus e homem por meio da experiência da fé. A respeito disso, Eduardo G. Losso recupera de Adorno6 a ideia de Cristo como “feiticeiro divinizado”, “místico absolutizado”, pois apresenta tanto uma essência espiritual quanto uma essência natural/humana: “uma vida da divindade e da natureza” (LOSSO, 2007, p. 40). Na poesia de Barros encontramos referência a essa noção cristã quando é dado especial destaque (letra maiúscula) à “Humildade” (“Cristo monumentou a Humildade quando beijou os/ pés dos seus discípulos. (BARROS, 2010, p. 343)” ou na recriação do segundo mandamento do Decálogo de Moisés7: “Já posso amar as moscas como a mim mesmo”, que (ainda neste poema) culmina no aparecimento do verbo “cristianizar” para abranger a noção de igualdade e comunhão com a natureza: “Quero cristianizar as águas” (BARROS, 2010, p. 357).

Assim, podemos relacionar a experiência do sagrado à experiência da arte moderna e posicionar Manoel de Barros como um asceta às avessas, aquele que passará pelo sofrimento da transformação para que seja apto a uma desaprendizagem, em detrimento de uma aprendizagem, aquele que pratica os exercícios de um método especialmente sensorial e erótico de relacionamento com o mundo, e que culmina na transfiguração dirigida pelo prazer de comunhão. Isto é, trata-se de uma ascese, que concilia matéria e memória, corpo e espírito, e que se reconcilia ao corpo e à alma do mundo – e, logo, do imundo. O nome disso pode ser poesia ou escatologia: religar-se ao corpo da comunidade – inclusive de outros modos de existência – e ao corpo da natureza, num processo de tradução contínua: trans-substanciação.

A escatologia apareceria na poesia de Barros na própria essência da transubstanciação. À vinculação com os ritos monásticos tradicionais de um ascetismo austero, podemos relacionar a mortificação do corpo de um ser que, na relação de comunhão, transfigura-se em outro ser a ponto de haver uma troca de substâncias: “Um passarinho me árvore. (O passarinho me/ transgrediu para árvore. Deixou-me aos/ ventos e às chuvas. Ele mesmo me bosteia/ de dia e me desperta nas manhãs)” (BARROS, 2010, p. 358). O apelo à transformação da matéria remete à transformação da carne mortificada, decomposta na terra. E a esta se ligam todos os resíduos do sujo, desde as relações mais objetivas com o lixo, borra, despejo, o imprestável, até as mais variadas conotações morais de impureza, nojo e patifaria.

De acordo com Suzy Sperber (2011), a palavra sacer recebe da origem romana uma conotação daquele ou daquilo que tem contato com o poluído, sujo, bem como a palavra tapu (de origem polinésia) indicava algo ou alguém restrito, incomum. Duas palavras incorporadas à semântica do sagrado e que evidenciam os pares impuro-puro/maculado-livre frequentes para esta discussão: “Uma pessoa que se torna pura entra no reino do divino e deixa o profano, o impuro, o mundo decadente.” (SPERBER, 2011, p.14). No entanto, na poesia de Manoel de Barros, a busca de uma pureza da língua, pelo movimento de “natência” (ao se chegar no grau renovador da língua), é acompanhada de rituais de purificação profanados pelo sacer, o impuro e o imundo do chão.

É interessante observar que, para Barros, a noção de purificação está vinculada justamente a um ritual de imundície: “Nos versos mais transparentes enfiar pregos sujos,/ teréns de rua e de música, cisco de olho, moscas/ de pensão” (BARROS, 2010, p. 148); “A limpeza de um verso pode estar ligada a/um termo sujo” (BARROS, 2010, p. 374). Seu interesse de se chegar à fundamental fronteira entre o fim e o início (de um corpo/de uma palavra/de um ser) se revela sem nenhum pudor, quando alinha, no poema “Pequena História Natural” de Livro de pré-coisas, o sacrifício cristão do banquete escatológico (a eucaristia), que acentua o significado soteriológico da morte de Cristo para a remissão dos pecados, ao livro dos Levíticos, em que se encontra a orientação para proibição do consumo de carnes imundas. Ora, para Barros, o “modo” do impuro é que “purificará”:

[...]

Sobre isso diz o Livro: — Pessoa que comer carne

de animal que morre estará imunda até de tarde — e

desse modo se purificará. Isso está no Levítico. Urubu

tem muita fiúza no Levítico.

[...] (BARROS, 2010, p. 230)

***

A comunhão remete não só para a relação de interposição entre os seres, como também para a transubstanciação referente ao simbolismo do sacramento eucarístico – celebração da memória de Cristo. Por isso, o corpo e o sangue de Jesus, transubstanciados em pão e vinho (conforme ordenação de Jesus na Última Santa Ceia), seriam a manifestação da presença do “Cordeiro de Deus” e do resgate pago na cruz para redenção da humanidade. Para Gumbrecht,

o sacramento da eucaristia, isto é, a produção da Verdadeira Presença de Deus na Terra entre os vivos, era sem dúvida o ritual central da cultura medieval. A celebração da missa, naquele tempo, não era apenas uma comemoração da Última Ceia de Cristo com os seus discípulos: era um ritual por meio do qual a “verdadeira” Última Ceia e, acima de tudo, o corpo de Cristo e o sangue de Cristo poderiam tornar-se “realmente” e de novo presentes. (GUMBRECHT, 2010, p. 51)

O gosto de Manoel de Barros por “desver/transver” o mundo se relaciona com a visão como presença, própria do sacramento da transubstanciação: “E o que dava santidade às nossas palavras era/ a canção do ver!/ Trabalho nobre aliás mas sem explicação/Tal como costurar sem agulha e sem pano./ Na verdade na verdade/ Os passarinhos que botavam primavera nas palavras” (BARROS, 2010, p. 429). A santidade, qualidade do que está separado da carne, chega às palavras por meio de uma imagem que canta, em um movimento surrealista próprio do fazer poético que privilegia o invisível que quer se mostrar, quer se tornar presente. Assim, o olhar o mundo é trocado por um ver melhor que pressupõe a presença do que não pode ser visto, mas sentido. Barros confirma que

[...] entre o poeta e a natureza ocorre uma eucaristia. Uma transubstanciação. Encostado no corpo da natureza, o poeta perde sua liberdade de pensar e julgar. Sua relação com a natureza é agora de inocência e erotismo. Ele vira um apêndice. Restará preso ao corpo, às lascívias, ao vulgar, ao comum, ao ordinário. É nesse sentido transnominal que eu uso a palavra ordinário. Por daí que se pode dizer que as palavras de um poema vêm adoecidas dele, de suas raízes, de suas tripas, de seus desejos. Ao leitor não resta que se incorporar (BARROS, 1990, p. 320).

Esse enfraquecimento do corpo é o que cria nele a abertura para a transformação, pois que o abatimento dos contornos dilui a silhueta, rompe com o limite do Ser e colabora para a expansão, o espalhamento em outro ser. O rompimento é tal qual uma alteração do equilíbrio sensorial, o êxtase8, em que a visão se turva e delira: o que se vê se transforma em vidência. Estas visões são qualidade da infância, do inapreensível da língua que se relaciona com o não dito do sagrado e com a expressão de um inominável.

***

Na poética de Barros, o ermo do olho do menino é o ermo do olho do poeta – esta figura peregrina que não apenas viaja pelas estradas de água do pantanal, mas que caminha de um estado para outro: da visão para a vidência. No poema “O andarilho”, reconhecemos o andarilho na postura mendicante dos místicos franciscanos, mas que ultrapassa a condição de ser andante, para se configurar também em qualquer homem (e menino) que admita o poder do silêncio e do isolamento “de influir sobre os seus gestos” (BARROS, 2010, p. 353), que permita o duplo movimento de tanto se apropriar da natureza quanto de se deixar ser apropriado por ela. Alguém que assume os “rumos sem termômetro” e a voz dos pássaros e, principalmente, alguém com a habilidade para prenúncios e adivinhações.

O ANDARILHO

Eu já disse quem sou Ele.

Meu desnome é Andaleço,

Andando devagar eu atraso o final do dia.

Caminho por beiras de rios conchosos.

Para as crianças da estrada eu sou o Homem do Saco.

Carrego latas furadas, pregos, papéis usados.

(Ouço harpejos de mim nas latas tortas.)

Não tenho pretensões de conquistar a inglória perfeita.

Os loucos me interpretam.

A minha direção é a pessoa do vento.

Meus rumos não têm termômetro.

De tarde arborizo pássaros.

De noite os sapos me pulam.

Não tenho carne de água.

Eu pertenço de andar atoamente.

Não tive estudamento de tomos.

Só conheço as ciências que analfabetam.

Todas as coisas têm ser?

Sou um sujeito remoto.

Aromas de jacintos me infinitam.

E estes ermos me somam. (BARROS, 2010, p. 353)

Mesmo por vezes figurado como Bernardo, Aristeu ou Andaleço, o andarilho-peregrino de Barros é um ser despojado e fundamentalmente a-nônimo (sem identidade). Com vocação para o ócio e para errâncias, é um flâneur dos espaços rurais, estrangeiro de sua terra e, ao mesmo tempo, profundamente vinculado ao espaço em sua volta, especialmente às coisas ínfimas do chão. Trata-se de um homem que transita pelas fronteiras da deificação e da laicização, não sendo vinculado a dogmas religiosos, mas sem perder o “condão de divinare”. É um desprendido de desejos consumistas, abnega o conhecimento da ciência, da modernidade, da cidade, renunciando aos bens e aos excessos.

O ato de andar em romaria é uma escolha por privações e um exercício asceta de reflexão. Toda peregrinação requer persistência e penitência e é comumente associada aos ritos de iniciação. O andarilho, em Barros, se transforma na imagem da poesia, uma vítima sacrificial da violência da transgressão da linguagem para voltar a sua potência de “natência” (“Escrevo como quem lava roupa no tanque, dando porrada nas palavras.” [BARROS apud MÜLLER, 2010, p. 47]), convertendo o fazer poético em uma missão pela humildade de se reconhecer no outro: “Eu já disse quem sou Ele” (BARROS, 2010, p. 353).

O místico é fundamentalmente um transgressor das teologias oficiais e das filosofias lógicas, o que o aproxima do poeta do Modernismo, movimento que, por sua vez, cooperou para a desmistificação da mística pré-moderna. A poesia de Barros tem aspectos do exercício do asceta dessa mística secularizada revelados na sua própria rotina de escrita: caso do isolamento em seu escritório diariamente pelas manhãs. A escrita como ascese revela uma prática de si, que se configura em um questionamento sobre a existência. E o que são os poemas de Barros senão uma tentativa voraz de responder ao desejo de sentido na vida pela experiência?

Em Barros, constatamos uma preferência pela autobiografia e pelas memórias e relatos (mesmo que ficcionalizados), mas que, por serem também especialmente relacionados com as reflexões sobre a prática poética e a função do poeta (sobre o que é e para que serve a poesia, ou sobre o querer conhecer a “torpeza humana” [BARROS apud MÜLLER, 2010, p. 51] por meio dela), podemos aproximá-la de uma escrita que propõe uma trilha para o autoconhecimento: “O jeito que eu tenho de me ser não é falando; mas escrevendo.” (BARROS apud MÜLLER, 2010, p. 51). A ascese, portanto, funcionaria como um “cuidado de si”9, uma filosofia

que considera a sabedoria não como o ponto mais elevado e abstrato atingido pelo espírito, mas como um pôr em ato de uma reflexão, uma prática de si, um modo de vida. Este ponto de vista sobre a filosofia implica sair do âmbito da universalidade, em que a tradição idealista colocou as questões, para o âmbito do contingente (KLINGER, 2014, p. 53).

Há neste tipo de escrita de experiência de si tanto um lado exibicionista, que se relaciona à pratica da ascese, quanto o do recolhimento. Manoel de Barros, poeta conhecidamente tímido, não esconde, porém, que essa timidez seja um orgulho, uma tática: “esconder por trás das palavras para mostrar-se” (BARROS, 2010, p. 148):

Mas o meu apagamento me exibe antes que me apaga. Me exibo através de ficar sob as cinzas. Sou sempre uma pose falsa tirada no escuro. Me exibo de costas. Pretendo que o escuro me ilumine. Isso não é um apagamento. É um requinte. Eu faço o nada aparecer. Uma frase antitética igual a essa me afaga, alivia meus conflitos. Ai que tanta impudência! Um narcisismo do avesso (BARROS apud MÜLLER, 2010, p. 104).

Outra semelhança do fazer poético com o ascetismo místico é a radicalidade que podemos encontrar na forma. E na poesia de Barros, a forma privilegiada do asceta-poeta no exercício existencial é atender ao seu apelo orgástico com as palavras, para ele, uma necessidade:

Trabalho às vezes dias inteiros para pescar um verso que fique relação com as palavras é orgástica. Escrevo porque preciso ter relações com elas para viver que uso uma palavra nova, ela me beija. Quer dizer que gostou de mim. Eu sou de bem com as palavras que uso porque elas me são (BARROS apud MÜLLER, 2010, p. 88).

O encostamento no corpo da natureza por vezes avança como incrustação: uma anastomose harmônica erótica e telúrica, a eucaristia dos corpos em que as diferenças hierárquicas entre seres são nulas. Portanto, a relação com a natureza se alinha a um saber que privilegia a “operação por semelhanças” com ela: “Pertenço de fazer imagens./Opero por semelhanças./Retiro semelhanças de pessoas com árvores/de pessoas com rãs/de pessoas com pedras etc/etc./Retiro semelhanças de árvores comigo” (BARROS, 2010, p. 340). É pela linguagem que se pode recuperar a equivalência entre o homem e a natureza: para atingir estado de árvore é preciso sofrer “de uma decomposição lírica até o mato/ sair na voz” (BARROS, 2010, p. 301).

Desse modo, o espaço da poesia de Barros é o espaço da linguagem que recupera o mundo natural configurado em paisagem (com a participação de um sujeito agente na natureza) e que com ela se comunga. Da mesma forma, o sujeito lírico quer encontrar em si uma potência de divino (a memória do fazer nascimentos pela “natência”, que culmina na proximidade maior entre Deus e homem porque Ele se realiza em presença dentro do homem), e assim encontramos também uma inversão do princípio de dominação da natureza, rompendo com as hierarquias.

A natureza, portanto, tem postura ativa nessa relação erótico-mística-poética (“Limos[que] me desejam” [BARROS, 2010, p. 281], “Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh” [BARROS, 2010, p. 301], ou em “A partir da fusão com a natureza esses bichos se tornaram eróticos. Se encostavam no corpo da natureza/ para exercê-la. E se tornavam apêndices dela” [BARROS, 2010, p. 248]), pois é a Natureza que possuiu a habilidade de “entender melhor a metafísica” (BARROS, 2010, p. 323).

Nesse sentido, Bataille (2013) acrescenta que o erotismo se aproxima da esfera do sagrado porque há nele um elemento de maravilha resultado de uma excitação intensa, um sentimento de soçobrar: o desejo de morrer ao mesmo tempo em que é desejo de viver, uma “morte de não morrer”,10 um desejo de decadência que é resultado da existência insubmissa e sensual: “A sensualidade é, em princípio, o domínio da irrisão e da impostura. Existe em sua essência um gosto de se perder, mas sem naufragar: isto não aconteceria sem uma trapaça, de que somos ao mesmo tempo os autores cegos e as vítimas.” (BATAILLE, 2013, p. 270).

Manoel de Barros, por exemplo, apropria-se da paixão do narrador por Albertine em “Em busca do tempo perdido”, de Proust (no 4º. volume – “A prisioneira”) para criar em imagem poética o fetichismo atribuído ao olhar, sem todavia deixar de convocar os sentidos da audição e, principalmente, o do tato. Segundo ele, é pelo tato que se chega ao êxtase do grito:

PÊSSEGO

Proust

Só de ouvir a voz de Albertine entrava em

orgasmo. Se diz que:

O olhar de voyeur tem condições de phalo

(possui o que vê).

Mas é pelo tato

Que a fonte do amor se abre.

Apalpar desabrocha o talo.

O tato é mais que o ver

É mais que o ouvir

É mais que o cheirar.

É pelo beijo que o amor se edifica.

É no calor da boca

Que o alarme da carne grita.

E se abre docemente

Como um pêssego de Deus. (BARROS, 2010, p. 442)

E somente porque a “carne grita” é que se irrompe a abertura doce e sagrada. O movimento da abertura do ser em êxtase recai na dissolução da voz e da fala. Ao ser é reservado somente o grito, o rumor selvagem, o caos incivilizado da natureza; por isso mesmo a arte se evidencia como espaço capaz de abrigar o caos.

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CONCLUSÃO

A coordenação alinhada entre sujeito lírico e natureza na linguagem poética de Barros permite que a relacionemos com a homogeneidade do espaço profano, que não possui um centro de fundação distintiva, embora observemos na poesia de Manoel de Barros um movimento de ressacralização desse espaço profano, de um “objeto qualquer” que passa a um outro estado de importância. Logo, podemos dizer que há nas imagens poéticas de Barros um interesse em arrastar o espaço profano para um tempo sagrado. Esse movimento, todavia, pretende ressignificar o sagrado tradicional transcendente, subvertendo o “desejo de viver num Cosmos puro e santo, tal como era no começo, quando saiu das mãos do Criador” (numa proposta de misticismo cristão [ELIADE, 1992, p. 37]) e optando por um desejo de criar, a partir do Caos simbiótico da “natência”, um novo Cosmos baseado na experiência sensorial, que não indica um equilíbrio estável da totalidade, mas que evidencia justamente a instabilidade vital e o incessante devir dessa tensão.

Referências

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BATAILLE, George. Teoria da religião. São Paulo: Editora Ática, 1993.

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CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4ª. edição revista pela nova ortografia. Rio de Janeiro: Lexicon, 2010. 2ª reimpressão, 2011.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FRUGONI, Chiara. Vida de um homem: Francisco de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010.

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PUCHEU, Alberto. Literatura, para que serve?. Pelo colorido, para além do cinzento. Rio de Janeiro: Azougue, 2007.

SANTOS, Elisa Duque Neves dos. Manoel de Barros: peregrinação da poesia por um conhecimento natural. 2015. . Dissertação (Mestrado em Estudos da Literatura – teoria da Literatura e Literatura Brasileira) – Instituto de Letras, UFF, Niterói, 2015.

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STEINER, George. Nostalgia do Absoluto. Lisboa: Relógio d’Água, 2003.

ULM, Hernán. A fenda incomensurável: literatura e cinema. 2014. Tese (Doutorado em Estudos da Literatura – literatura comparada) – Instituto de Letras, UFF, Niterói, 2014.


  1. Conforme vemos em “A minha vida parada eu vou enchendo de vento e versos. Com essa tarefa melhoro um pouco a minha incompletude.” (BARROS apud MÜLLER, 2010, p. 167).

  2. Natência palavra inventada por Manoel de Barros no “Livro das Ignorãças” (1993) e que remete à nascente, retorno, semente, primordialidade, primitividade, autenticidade, “passado obscuro de águas” (BARROS, 2010, p. 306). No entanto, é a natência da língua o principal interesse de Manoel de Barros, e por isso entende-se aqui potência de fazer nascimentos, o retorno a um espaço/tempo anterior à linguagem, em que se estabelece um vínculo com o essencial, uma experiência do sagrado da existência e do estado inventivo da língua, que abre diálogo com a condição de infantia da poesia de Barros: a liberdade da “natência”, que mostra movimentos afirmativos: uma constante geradora de insubmissão inventiva e próxima ao olhar de descoberta da criança. (Ver dissertação de mestrado de Elisa Duque Neves dos Santos “Manoel de Barros: peregrinação da poesia por um conhecimento natural” – UFF, 2015).

  3. De acordo com Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário etimológico da língua portuguesa (4ª. Edição), 2011.

  4. Como exemplo das referências que aproximam a natureza a Deus, vemos na poesia de Barros: “Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:/ Vou pertencer você para uma árvore./ E pertenceu-me.” (BARROS, 2010, p. 369); “Formigas me mostraram Ele.” (BARROS, 2010, p. 392); “Aprendeu com a natureza o perfume de Deus” (BARROS, 2010, p. 394).

  5. “Porque o abandono pode não ser apenas de um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro” (BARROS, 2010, p. 386).

  6. Eduardo G. Losso, em sua tese de doutoramento, trata da Teologia negativa do pensamento de Theodor Adorno e da secularização da mística na arte moderna.

  7. De acordo com o livro de Mateus 22: 37-40 do Novo Testamento Cristão.

  8. O êxtase religioso é também um júbilo trágico, uma alegria frente à morte, porque esta é a promessa de uma reintegração à continuidade imanente.

  9. Lembrando que o verbo cuidar se associa à forma latina cogitar, pensar, meditar.

  10. Conforme observado no poema “Vivo sem viver em mim” de Santa Teresa d’Ávila: “Vivo sem em mim viver/ e tão alta vida espero /que morro por não morrer”.