APRENDIZAGENS: A EXPERIÊNCIA METAFÍSICA EM CLARICE E HESSE

Gustavo Bernardo Krause

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

gustavobernardokrause@gmail.com

Roy David Frankel

Universidade Federal do Rio de Janeiro

royfrankel@gmail.com

Resumo: como construir uma experiência metafísica em literatura? Partindo dessa pergunta, o presente artigo visa problematizar a construção de uma experiência metafísica de caráter emancipatório em Clarice Lispector e Hermann Hesse, a partir de um olhar comparativo para dois romances de cada autor. Apoiando-se em Benedito Nunes e sua análise de Clarice Lispector, serão agenciados conceitos heideggerianos para problematizar a construção de cada uma das obras.

Palavras-chave: Dasein; Metafísica; Clarice Lispector; Hermann Hesse; Literatura Comparada.

Abstract: how to construct a metaphysical experience in literature? Starting from this question, the present article tries to reflect about the construction of an emancipatory-type metaphysical experience in Clarice Lispector and Hermann Hesse through a comparative analysis of two novels from each author. Based on Benedito Nunes and its analysis of Clarice Lispector, some Heidegger’s concepts are going to be used in order to structure the discussion of each work.

Keywords: Dasein; Metaphysics; Clarice Lispector; Hermann Hesse; Comparative Literature.

INTRODUÇÃO

O presente artigo busca discutir a construção de uma experiência metafísica de caráter emancipatório no âmbito da literatura. Para isso, serão analisados comparativamente dois romances de Clarice Lispector e dois romances de Hermann Hesse, utilizando-se como auxiliar a matriz conceitual heideggariana, especialmente aquela construída em Ser e Tempo.

Para o presente estudo, não serão utilizados elementos biográficos para problematizar Heidegger, Clarice ou Hesse1. A análise literária a ser realizada será fundada no efeito de leitura (Iser) provocado pelas obras e por isso não serão incorporados quaisquer dados biográficos. Eles promoveriam um fechamento dos sentidos possivelmente atribuíveis à narrativa e, considerando a matriz teórica da abertura heideggariana e a necessidade das obras dialogarem com o próprio processo de abertura do leitor, não estão sendo considerados no presente estudo.2

Além disso, em oposição à visão adorniana, entendemos que a remoção do sentido pré-determinado a partir do enfrentamento da morte não leva em Heidegger à resignação, ao hedonismo estético e à dissolução do eu (e, a partir daí, aos regimes totalitários, como fascismo e nazismo3 — vide Losso, 2007, p. 134-136), mas sim, à semelhança de Camus (1942, p. 161-168), permite um novo ponto de vista onde a própria noção de indivíduo é reconfigurada. Sísifo não se resigna, não se entrega à noite, antes ele busca a felicidade durante o seu dia. É preciso imaginar Sísifo feliz, afinal. Nessa busca constante, derivada de uma aceitação plena da temporalidade do ser, a construção narrativa que estrutura a nossa concepção de indivíduo pode ser remodelada, revista, e fundado nesse novo olhar, um novo final pode ser buscado. Nessa visão, a primazia ontológica da morte em Heidegger é sim esperançosa e a utopia do indivíduo presente na visão heideggariana efetivamente pode retornar à sociedade.

Cabe destacar que a construção de sujeito aqui exposta, uma interpretação possível a partir de Heidegger, não utiliza canonicamente a dualidade sujeito-objeto. Neste teórico, o ser-no-mundo é a constituição fundamental do Dasein4 e, por conseguinte, não existe mundo sem o Dasein. Também não é nosso objetivo defender a autonomia do sujeito, especialmente após o paradigma da desconstrução e da fragmentação contemporânea (líquida, para Bauman). Ao falarmos em ‘experiência de caráter emancipatório’ ou ainda em ‘sujeito emancipado’, estamos utilizado uma metáfora produtiva para pensar a abertura do Dasein reapropriando-se de si mesmo (cabe lembrar que tanto em Sartre quanto em Heidegger, a existência precede a essência). Esse ato de reapropriação só pode ocorrer, assim, no próprio processo de existir.

Pensando sobre essa experiência de caráter emancipatório como elemento articulador do presente estudo, buscaremos discutir a construção literária de uma experiência de existência autêntica e seu diálogo com o leitor no próprio ato de leitura. Essa existência autêntica, conceituada como uma experiência de abertura de modo próprio, reside na escuta da fala do Dasein decidido. Para isso, o Dasein necessita de afastar-se da falação do impessoal, da cotidianidade e da medianidade (ou seja, da conversa fiada, usando um conceito de Vilém Flusser). Ele se encontra no modo do querer-ter-consciência e escuta a fala da consciência enquanto apelo da cura (Sorge), possível apenas no modo da intransmissibilidade (Verschwiegenheit, ou ainda silenciosidade, na tradução de Márcia Schuback) e originada na estranheza do ser-no-mundo. A temporalidade desse Dasein é uma temporalidade própria, entendida como fundada em um poder-ser e não na ocupação. Para atingir esse estado, o Dasein passou necessariamente pela angústia, que é ao mesmo tempo angústia pelo poder-ser e angústia do ser-no-mundo enquanto ser-lançado-para-a-morte. Estando livre para a morte que é sempre sua, o Dasein atinge a verdade da existência.5

No mundo administrado, na barbárie regida e imposta pelo próprio sistema, o verdadeiro é um momento do falso, o todo é o não verdadeiro (4, 55); mas na experiência metafísica falível, o falso é um momento do verdadeiro. (LOSSO, 2007, p. 199)

A falibilidade da experiência metafísica não é, dessa forma, um obstáculo à análise proposta, sendo antes apenas uma característica intrínseca ao próprio objeto de estudo. Para a discussão literária dessa experiência, nos apoiaremos em Nunes (1995, 2009 e 2012) e sua análise de Clarice Lispector, uma autora que utiliza recorrentemente um estilo de escrita com características existenciais e fragmentárias. Para compreender diferentes possibilidades de construção dessa experiência metafísica em Clarice, utilizaremos dois de seus romances: A Paixão Segundo G.H., que possui pouco de narrativa factual e bastante de conteúdo catártico; e Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, que em oposição ao livro anterior, possui uma narrativa factual significativamente mais estruturada para essa experiência.

Tomados esses dois romances de Clarice como parte do estudo, entendemos que compará-la a outro escritor poderia trazer à luz de modo mais claro os diferentes procedimentos utilizados para a construção literária dessa experiência. Considerando a temática existencial e de revelação súbita, encontramos em Hermann Hesse uma obra interessante para a discussão proposta. Em seu livro Sidarta, ele nos mostra um personagem em busca de um modo autêntico de existência, encontrando-se com Sidarta Gautama, o primeiro Buda, e passando por uma experiência de ‘despertar’. Em O Lobo da Estepe percebemos também um personagem central — Harry Haller — em busca do seu próprio eu.

Além da proximidade temática entre os três escritores selecionados — Heidegger, Hesse e Clarice — há dois elementos relacionados ao contexto de produção das obras que nos permitem fazer essa análise comparativa: 1) há uma proximidade espaço-temporal muito grande entre os dois primeiros: Ser e Tempo, considerada por muitos como a principal obra de Heidegger, teve sua primeira edição publicada na Alemanha em 1927, mesmo ano e local da primeira edição de O Lobo da Estepe. Na mesma Alemanha do entreguerras, cinco anos antes, havia sido publicado Sidarta; 2) A própria Clarice admite ter sofrido grande influência de Hermann Hesse: por exemplo, na crônica ‘O Primeiro Livro de Cada uma das Minhas Vidas’, ao falar da leitura de O Lobo da Estepe, ela menciona que:

E eu, que já escrevia pequenos contos, dos 13 aos 14 anos fui germinada por Hermann Hesse e comecei a escrever um longo conto imitando-o: a viagem interior me fascinava. Eu havia entrado em contato com a grande literatura. (LISPECTOR, 1992, p. 723).

Problematizadas as ancoragens teóricas, podemos então realizar o objetivo do presente estudo.

APRESENTAÇÃO DOS ROMANCES ELENCADOS

O Lobo da Estepe

O romance O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse, narra a história de Harry Haller, um homem de cerca de cinquenta anos, misantropo, “insociável”, “um Lobo da Estepe”. São três os pontos de vista narrativos construídos no romance: primeiramente, temos acesso a um “Prefácio do Editor”: um sobrinho da proprietária de um quarto alugado por Harry encontrou suas anotações e resolveu publicá-las. Em seguida, temos acesso às próprias anotações de Harry, escritas em forma de diário, onde nos é apresentado um homem de meia idade em profunda crise existencial. Por último, um folheto entregue a Haller por um desconhecido, intitulado o Tratado do Lobo da Estepe, nos mostra o terceiro ponto de vista narrativo, quando é feita uma análise psicológica do próprio Haller.

Essa estrutura fragmentada é utilizada para nos apresentar a esse personagem profundamente intelectual e potencialmente suicida. A grande transformação de Haller ocorre quando ele encontra Hermínia, alguém que conhecia as coisas fáceis da vida. A partir dela, Haller conhece Maria, que virá a ser sua amante, e Pablo, um músico.

A aprendizagem de Haller é a aprendizagem do comum, do ordinário. Hermínia o ensina a dançar, e a expectativa de um grande baile marca boa parte da narrativa. Nesse processo de educação da vida, Harry aprende a “amar à vulgar maneira humana” (HESSE, 2011, p. 140), revertendo sua quimera e libertando-se de sua antiga personalidade. Ao fazer isso, Harry afinava sua sensibilidade para o exercício de todas as possibilidades do Dasein que ele mesmo era: “assim sentia agora angústia diante da morte, mas uma angústia que sabia capaz de transformar-se em abandono e em libertação” (HESSE, 2011, p. 171, grifos nossos). Essa libertação propiciada pela abertura do Dasein permite a ele agir de forma descompromissada, internalizando em si a própria experiência de festa.

Nesse baile acaba ocorrendo a despersonalização de Harry, a fragmentação e a própria desconstrução narrativa: “tudo era pura fantasia, tudo tinha uma dimensão a mais, uma significação mais profunda; tudo era jogo e símbolo” (HESSE, 2011, p. 181). Harry dissolve-se e então entra no Teatro Mágico, junto de Pablo e Hermínia, onde ocorre um conjunto de historietas fantásticas. A narrativa se encerra dentro do Teatro, onde Harry falha por ter matado simbolicamente Hermínia, mas possui uma vontade de vida e perseverança que não se viam no início: “Da próxima vez, saberia jogar melhor. Da próxima vez, aprenderia a rir. Pablo me esperava. Mozart também.” (HESSE, 2011, p. 235).

Sidarta

Sidarta é um romance que narra a busca do personagem central homônimo em direção à iluminação e ao pertencimento. Sidarta Gotama, o Buda histórico, aparece como um personagem secundário. Sidarta é caracterizado como tendo uma angústia no coração, um espírito insatisfeito que busca o seu próprio caminho. Essa construção individual do caminhar é uma marca muito importante no romance que vai se revelando nas escolhas feitas pelo personagem através de toda a narrativa.

Narrado em terceira pessoa e dialogando com o gênero épico, o romance é dividido em duas partes, a primeira com quatro capítulos e a segunda com oito capítulos (o que pode ser visto como uma incorporação narrativa da estrutura das Quatro Nobres Verdades e do Caminho Óctuplo). Hesse utiliza uma linguagem simples, lúdica, e põe como pano de fundo as religiões orientais. Seu grande amigo Govinda o acompanha por diversos de seus ciclos de aprendizagem, sendo uma presença constante para a própria problematização de Sidarta.

Ao invés de uma aprendizagem linear, Sidarta passa por ciclos em espiral. Incialmente abandona a família e vai ser um ermitão, junto a Govinda, e lá se aprofunda no conhecimento de si, mas ouvindo notícias sobre o Buda histórico (Sidarta Gotama), o personagem e seu amigo vão em busca do sábio. Govinda se transforma em um seguidor de Sidarta Gotama, mas o próprio Sidarta diz a Gotama que não perseguirá nenhuma outra doutrina melhor, já que percebe a perfeição na doutrina exposta, mas buscará “separar-se de quaisquer doutrinas e mestres, a fim de que possa alcançar sozinho o meu [seu] destino ou então morrer” (HESSE, 2013, p. 51).

Após essa afirmação da necessidade do caminhar individual rumo a si mesmo (rumo a essa experiência metafísica do sujeito emancipado), Sidarta passa anos ao lado de uma cortesã, sendo comerciante, mas aquela vida não lhe pertencia: ele se enreda no Sansara6 e então fugindo daquele impessoal Sidarta atinge o seu verdadeiro despertar. Para isso, ele precisa escutar somente o que a sua voz íntima mandasse7, o que nos remete ao conceito de consciência enquanto apelo da cura. Dormindo sob uma árvore ao lado de um rio, Sidarta percebe que recuperara a consciência de si mesmo e ao acordar “olhava o mundo como um recém-nascido” (HESSE, 2013, p. 106). Essa metáfora do novo nascimento está profundamente associada à cura, enquanto iluminação do Dasein.

Ouvindo a voz em seu coração, metaforicamente construída como um pássaro a cantar, ele encontra o barqueiro Vasudeva, com quem passa a morar e juntos passam a ouvir a voz do rio: “O rio falou contigo. É teu amigo também.” (HESSE, 2013, p. 123). Vasudeva lhe ensina o pouco que sabe, mas seu grande mestre passa a ser o rio, cujo principal ensinamento é “a arte de escutar, de prestar atenção com o coração quieto, com a alma receptiva, aberta, sem paixão, sem desejo, sem preconceito, sem opinião” (HESSE, 2013, p. 125).

As vozes do rio pouco a pouco vão dialogando com Sidarta que “entregando-se por inteiro à própria atenção, receptáculo totalmente vazio, prestes a encher-se” (HESSE, 2013, p. 158) atinge a perfeição nessa arte. Sidarta escuta o Om que “pairava por cima de todas as vozes do rio” (HESSE, 2013, p. 159) e seu eu se incorpora na unidade:

Foi nessa hora que Sidarta cessou de lutar contra o Destino. Cessou de sofrer. No seu rosto florescia aquela serenidade do saber, à qual não se opunha nenhuma vontade, que conhece a perfeição, que está de acordo com o rio dos acontecimentos e o curso da vida; a serenidade que torna suas as penas e as ditas de todos, entregue à corrente, pertencente à unidade. (HESSE, 2013, p. 159)

Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres

Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres é um romance no qual a personagem central — Lóri — faz uma viagem rumo a si mesma. Um livro que só pode ser entendido por quem já se abriu ao sentir: “Só quem já tivesse estado em graça, poderia reconhecer o que ela sentia.” (LISPECTOR, 2011, p. 134).

O romance narra a “busca do mundo” de Lóri, o seu caminho de aprendizagem apoiado em Ulisses, professor de filosofia. É um processo no qual Lóri precisa aprender a “deixar o mundo entrar nela” (LISPECTOR, 2011, p. 63). Nesse processo, a busca de sentido é um elemento fundamental que percorre toda a narrativa.

O livro ao mesmo tempo é uma narrativa de aprendizagem — “que talvez se chamasse de descoberta de viver” (LISPECTOR, 2011, p. 100) — como também um compêndio de prazeres. Mas não são os prazeres simples que são apresentados no romance: Ulisses em certo momento pergunta a Lóri: “Ah Lóri, Lóri, você não consegue recuperar, mesmo vagamente, na lembrança da carne, o prazer que pelo menos você deve ter sentido por estar? Por ser?” (LISPECTOR, 2011, p. 59), ancorando esse conjunto de prazeres no prazer fundamental de existir.

Lóri, professora primária, solteira e sem filhos, pensa constantemente em seus encontros com Ulisses, professor universitário de filosofia. Ela é marcada por uma angústia existencial: “O coração tem que se apresentar diante do Nada sozinho e sozinho bater em silêncio de uma taquicardia nas trevas.” (LISPECTOR, 2011, p. 38), alternada com momentos de vislumbre do que seria a abertura em sentido próprio: “Lóri era. O quê? Mas ela era.” (LISPECTOR, 2011, p. 39). E nessa angústia Lóri é amparada por Ulisses, um o corrimão que a ajuda a percorrer o longo corredor rumo a si mesma.

Tanto Ulisses como Lóri se desejam, mas Ulisses quer prepará-la para a liberdade para só então, aprendendo a andar com as próprias pernas, ocorrer a fusão amorosa. Lóri se prepara para Ulisses com um sentimento contraditório: a paciência dele em ensiná-la a ‘aprender a vida’ a irrita e a atrai ao mesmo tempo. Ele quer que Lóri se abra existencialmente, mas ela apenas consegue fazer isso em sentido impróprio.

A experiência de abertura é um crescente, com suas idas e vindas através de todo o romance: “a obra se compõe da aprendizagem que nela vai tomando forma” (NUNES, 1995, p. 81). Ela de repente “parecia ver a super-realidade do que é verdadeiramente real [...] mais real que a realidade” (LISPECTOR, 2011, p. 30). Há um capítulo de uma só palavra: luminescência. Esse estado de luminescência possui profunda relação com a experiência de cura heideggariana (Sorge): ela ilumina um ente, tornando-o aberto e claro para si mesmo. Lóri assim atende ao apelo da consciência digerindo seu casulo: “a vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre. // A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser humano” (LISPECTOR, 2011, p. 32). Esse processo de autoconsciência e de aprendizagem da vida perpassa toda a narrativa, sendo o mecanismo fundamental de desenvolvimento narrativo: “Tudo isso ela já aprendera através de Ulisses. Antes ela evitara sentir. Agora ainda tinha porém já com leves incursões pela vida.” (LISPECTOR, 2011, p. 34)

Com o caminhar na aprendizagem, Lóri se desarticula, enfrenta o Nada e, mergulhando no mar, possui uma experiência de fusão metafísica (mar esse apresentado explicitamente como metáfora do infinito), voltando cada vez um pouco mais forte. Nessa busca constante, Lóri atinge o que seria um estado de graça de uma pessoa comum. Um estado que não era usado para nada, um estado de “tranquila felicidade” em que “sem esforço, sabe-se” (LISPECTOR, 2011, p. 135). Nesse estado, via-se a profunda beleza de outra pessoa, sentia-se “a dádiva indubitável de existir materialmente” (LISPECTOR, 2011, p. 135), tem-se “o mundo como este o é” (LISPECTOR, 2011, p. 136). Mas esse estado epifânico não pode ser constante, caso contrário “perderíamos a linguagem em comum” (LISPECTOR, 2011, p. 136), ficaríamos egoístas por sentir tanta felicidade, cairíamos em um vício. Lóri sai dele “melhor criatura do que entrara” (LISPECTOR, 2011, p. 137): ela está pronta para Ulisses.

Tendo passado por essa experiência metafísica transformadora, Lóri e Ulisses se encontram, e ocorre o grande clímax da narrativa com o cumprimento da promessa de gozo em um momento fusional — “eu sou tua e tu és meu, e nós é um” (LISPECTOR, 2011, p. 153). O romance termina em meio ao diálogo inacabado de ambos.

A Paixão Segundo G.H.

Esta obra narra fundamentalmente a busca existencial da personagem G.H. Somos jogados a essa busca em um início catártico. “— — — — — — estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi.” (LISPECTOR, 2009, p. 9)

Após algumas ideias da experiência pela qual a personagem havia passado, um novo capítulo se inicia, e começa o relato do que aconteceu no dia anterior. A busca é apresentada como pano de fundo da história de uma mulher a quem conhecemos apenas pelas iniciais. Tendo a empregada se demitido no dia anterior, G.H. busca arrumar e limpar sua casa.

Ao visitar o quarto da empregada, ela vê uma barata. Estando em uma posição de onde não poderia sair sem enfrentar a barata, G.H. acaba esmagando-a na porta de um guarda roupas.

Processa-se então um duelo simbólico entre a barata semimorta e G.H. É nesse duelo que se passa grande parte do livro e no qual uma torrente epifânica de sentimentos nos é transmitida: “É que eu olhara a barata viva e nela descobria a identidade de minha vida mais profunda.” “Eu chegara ao nada. E o nada era vivo e úmido.” “Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo.” (LISPECTOR, 2009, p. 56; 60-61 e 70-71, respectivamente).

Após a batalha central do romance, G.H. finalmente come a barata. Ponto alto e crítico do romance, esse momento é a derradeira expressão de um novo nascimento de G.H.: “É que a redenção devia ser na própria coisa. E a redenção na própria coisa seria eu botar na boca a massa branca da barata.” (LISPECTOR, 2009, p. 164)

Escrito em formato de diário, a narradora se dirige a um suposto interlocutor masculino que seria seu companheiro (na p. 66, por exemplo, este suposto interlocutor é chamado de ‘meu amor’). G.H. pede ajuda a ele, pede para que ele ouça a experiência e guarde a própria barata pois a princípio ela não está “conseguindo” fazer isso sozinha. Entretanto, ao final essa impressão inicial é desconstruída, pois atravessando o purgatório sozinha, ela se dirige novamente a ele: “E agora não estou tomando tua mão para mim. Sou eu quem está te dando a mão. Agora preciso de tua mão, não para que eu não tenha medo, mas para que tu não tenhas medo.” (LISPECTOR, 2009, p. 170)

O tom inicial de necessidade pelo interlocutor é substituído por um tom carinhoso, quase maternal: “Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior.” (LISPECTOR, 2009, p. 170)

E ao final, a personagem se revela grande, forte, sem limites: “Enfim, enfim quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era.” (LISPECTOR, 2009, p. 178)

A personagem é pura entrega, ultrapassa as fronteiras do humano, sorri. Confia no mundo, não se prende mais a qualquer conceito. Ela é e não é ao mesmo tempo. Retornando ao prefácio, vemos o diálogo intencional que ocorre entre G.H. e o leitor. Clarice diz que dedica o livro para:

Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém.

A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil, mas chama-se alegria. (LISPECTOR, 2009, p. 5)

AS APRENDIZAGENS

Como pode ser percebido, há uma significativa proximidade temática nas obras elencadas. Diversos conceitos presentes na analítica existencial de Heidegger (tais como a consciência como apelo da cura, a falação do impessoal e o ser livre para a morte) dialogam com os quatro romances apresentados. Em Sidarta, por exemplo, o Om pode ser visto como metáfora da fala da presença decidida que apela para o seu poder-ser mais próprio, a cidade grande como o impessoal que carrega em si mesma a medianidade e a cotidianidade, e a experiência na árvore de Bodhi como a liberação do personagem para a sua própria morte.

Uma questão importante é a intransmissibilidade (Verschwiegenheit) dessa experiência: “a sabedoria não pode ser comunicada. A sabedoria que um sábio quiser transmitir sempre cheirará a tolice.” (HESSE, 2013, p. 164). “As descobertas naquele estado [de graça] eram indizíveis e incomunicáveis” (LISPECTOR, 2011, p. 135). “(...) de quase tudo o que importa não se sabe falar” (LISPECTOR, 2011, p. 100). Por mais que um conjunto de conceitos heideggerianos dialogue com os romances elencados, segundo Heidegger “a fala da consciência nunca chega a articular-se” (2012, p. 377). Nunes afirma que a contingência de narrar na obra de Clarice se apresenta como um verdadeiro drama da linguagem (NUNES, 1995, p. 53).

É preciso compreender, entretanto, que essa fala não é realmente apresentada nos romances, mas apenas o é uma aproximação: por exemplo, ela é metaforicamente construída como o canto de um alegre pássaro no peito de Sidarta. A análise de A Paixão Segundo G.H. também deixa isso bastante claro. Utilizando paradoxos, Clarice tenta quebrar com os limites da linguagem para aproximar-se ainda mais do apelo da cura, o que abre justamente a possibilidade de seu vislumbre pelo leitor, na medida em que essa figura de linguagem guarda em si mesmo a característica marcante do vazio de Iser. A construção literária dos autores e seu consequente vislumbre pelos leitores é uma possibilidade efetiva que reside na construção sempre não toda da abertura, deixando espaços para o leitor se colocar e preenchê-la com o que seria a sua própria ideia de abertura, correlacionando-se ao seu poder-ser mais próprio.

Bastante interessante é o fato de que, enquanto Clarice constrói esses espaços para o leitor majoritariamente através de um trabalho com a linguagem, Hesse o faz principalmente através da estrutura narrativa. Em O Lobo da Estepe, a estrutura é marcadamente paradoxal: o próprio Tratado do Lobo da Estepe, encontrado por Haller e que disseca a sua própria psique, nos diz: “‘o lobo da estepe’ também é uma ficção” (HESSE, 2011, p. 67), em uma estrutura de mise en abyme que chama a atenção do leitor atento. O sonho de Haller no qual ele discute com Goethe, ou ainda o Teatro Mágico, acessado através de uma porta invisível em um muro, e suas possibilidades infinitas, caso não sejam simplificadas como “um eufemismo para a prática de drogas” (BARROSO, 2011, p. 8), podem ser vistos como um trabalho estrutural para permitir o mesmo tipo de construção não toda da abertura operada por Clarice. Esse trabalho estrutural é marcante em Sidarta, onde a natureza é utilizada como elemento central de espacialização do processo de abertura do personagem central: “Nesse rio, submergia o velho, o exausto, o desesperado Sidarta. Mas o novo Sidarta, tomado de profundo amor a essas águas que lá corriam, resolva não se separar delas por muito tempo” (HESSE, 2013, p. 118).

Essas diferenças se desdobram na construção da verossimilhança. Enquanto Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres e Sidarta guardam verossimilhança interna e externa, O Lobo da Estepe que também as guardava perde-as no Teatro Mágico e nas passagens relacionadas. Por outro lado, A Paixão Segundo G.H. guarda uma verossimilhança interna, mas o absurdo da deglutição da barata mata a verossimilhança externa. Essa construção só é possível pela forma utilizada — um diário repleto de paradoxos, o que faz com que o leitor mergulhe no romance sem a retração intrínseca do contato com uma narrativa como essa. O drama da linguagem se afirma neste último muito mais profundamente do que nos outros três.

O Lobo da Estepe, por outro lado, é singularizado pelo tipo de aprendizagem que passa o personagem central, uma aprendizagem do ordinário, do comum. A busca do sublime é associada neste romance como algo não suficiente em si mesmo, em oposição às construções dos outros romances analisados. Essa aprendizagem é reforçada pelos personagens secundários que funcionam como guias e suporte rumo a esse processo de abertura — Pablo, Maria e Hermínia — pessoas que sabiam dançar, rir, viver, aproveitar coisas naturais, ordinárias, que Harry havia perdido em sua busca. Nos outros romances, os personagens secundários possuem uma estruturação que direciona os personagens centrais à busca do sublime. Ulisses é o professor por excelência, aquele que já trilhou o caminho e que ajuda outras pessoas a trilhá-lo. Sidarta aprende muito das pessoas à sua volta, incluindo Vasudeva, até ouvir o rio e conseguir ser o seu próprio guia. G.H. não consegue narrar sem imaginar alguém que esteja segurando a sua mão — o próprio leitor também dá a mão a G.H. ao acompanhar o seu purgatório.

O olhar para esse interlocutor imaginado nos permite observar uma particularidade relevante em A Paixão Segundo G.H. Em oposição à tradicional oposição de movimento descendente (de multiplicação de ideias) e ascendente (de diminuição até o silêncio) presente na descrição da experiência metafísica (Losso, 2007, p. 265), a temporalidade particular da personagem mostra que ao narrar a experiência ela está passando por uma segunda ascensão. Isso pode ser percebido ao se analisar a evolução do romance, que pode ser representada conforme diagrama a seguir (baseando-nos na concepção esquemática de representação narrativa utilizada por Umberto Eco, 2010, p. 39-46)

Figura 1 — A Narração Factual em A Paixão Segundo G.H.

Tn → T0 → T1 → T2 → ... → Tn-1

Enredo

A princípio, é de se esperar que a personagem G.H. seria basicamente a mesma no início e no fim da narrativa (Tn e Tn-1), na medida em que são tempos que factualmente se aproximam. Mas não é o que percebemos na descrição da personagem. No primeiro capítulo, ela se coloca como frágil, dependente, com medo, forjando um interlocutor para se dirigir enquanto relata a experiência que teve, mas ao final é G.H. quem conduz o interlocutor através desta experiência:

E agora não estou tomando tua mão para mim. Sou eu quem está te dando a mão. Agora preciso de tua mão, não para que eu não tenha medo, mas para que tu não tenhas medo. (LISPECTOR, 2009, p. 170)

Percebemos que há uma evolução de G.H. na medida em que é relatada a experiência pela qual a personagem passou. Sendo narrado em primeira pessoa, é como se a personagem, por relatar a experiência pela qual passou, tivesse uma segunda experiência, evoluindo ainda mais. O tempo de evolução da personagem seria dessa forma melhor ilustrado assim:

Figura 2 — A Evolução de G.H.

Dessa forma, apesar de o tempo cronológico do material narrado no primeiro capitulo do livro se aproximar daquele do último capítulo (Tn e Tn-1 no primeiro diagrama), o tempo de evolução da personagem se desenvolve linearmente através do livro, estando o primeiro capítulo o mais afastado possível do último capítulo (Tn e Ty no segundo diagrama).

A questão fulcral que daí se origina é que a construção de uma experiência mística com ascensões repetitivas na literatura (e não de experiências individuais de ascensão-descenso) é extremamente adaptada a um quase-personagm. Nos outros romances analisados, vemos personagens completos — com nome, passado, descrições biográficas mais detalhadas etc. — e, com isso, a construção de suas experiências metafísicas está marcada por um paradigma de progressão/regressão: Lóri em seu antegozo até o clímax na realização do desejo, Sidarta em seus momentos de epifania e queda, até o definitivo despertar, e Haller, em uma descida quebrada por Hermínia que traz o antegozo do baile, mas termina com uma nova queda presente na última fala de Haller: “Da próxima vez, aprenderia a rir. Pablo me esperava. Mozart também.” (HESSE, 2011, p. 235). O uso de um quase-personagem como G.H., sem nome além das iniciais, sem um passado muito bem definido, sem outros personagens concretos com quem dialogar, além de facilitar o momento de desagregação metafísica (há pouco material a ser desagregado), permite que na sua reagregação narrativa ocorra literariamente a primeira agregação efetiva, transmitindo ao leitor a noção da solidez da segunda ascensão. Essa estrutura particular — um quase-personagem narrando a um interlocutor imaginário a experiência pela qual passou e nesse processo passando por uma segunda ascensão — permite uma percepção única ao leitor do próprio conteúdo de uma experiência metafísica.

Além de ter o paradoxo como elemento central, esta obra possui uma estrutura formal particular pelo fato de se iniciar de modo abrupto “— — — — — — estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender.” (LISPECTOR, 2009, p. 9), e terminar justamente com a questão da falência da linguagem unida à experiência de abertura: “A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro. — — — — — —” (LISPECTOR, 2009, p. 179). Ademais, o recurso de continuidade que é utilizado na passagem dos capítulos — a primeira oração de cada capítulo é sempre a última oração do anterior, sendo a divisão muitas vezes utilizada apenas para tornar o material mais legível, na medida em que recorrentemente não há mudança temática ou estilística — nos coloca de frente com a dificuldade de (auto-)narrar a própria epifania de G.H.

Esse jogo formal clariceano também está presente em Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Diferentemente de A Paixão Segundo G.H., neste a narrativa não possui um caráter estritamente monocêntrico (utilizando o conceito de Benedito Nunes), mas a busca de sentido é mediada pela relação ao mesmo tempo próxima e distante entre Lóri e Ulisses. Este romance é construído por uma alternância de unidades monologais e dialogais (NUNES, 1995, p. 79).

Narrado em terceira pessoa, fluidos movimentos de passagem da terceira para a primeira pessoa ocorrem dentro de um mesmo parágrafo. A catarse, cuja narração é iniciada pelo narrador onisciente, se transforma em torrente de emoções quando Lóri toma a voz: “Pensar no seu homem? Não, era a farpa na parte coração dos pés. [...] E se o Deus se liquefaz enfim em chuva? Não. Nem quero. [...] Quero que isto que é intolerável continue porque quero a eternidade.” (LISPECTOR, 2011, p. 24)

Especialmente no primeiro capítulo, essa catarse é marcada não pela mudança da pessoa narrativa, mas sim por uma fluidez aplicada na alternância de parágrafos. Por exemplo, “o modelo seria o seu próprio corpo mas // enfeitar-se era um ritual que a tornava grave:” (LISPECTOR, 2011, p. 16). A própria conjunção adversativa ‘mas’ que liga duas orações está, nesse caso, fazendo um elo entre dois parágrafos. Os parágrafos não encerram um sentido completo, nesses momentos há uma estreita continuidade entre eles. Para Nunes, essa estrutura inicial é a marca de um autocomentário lírico que “funde a voz do narrador com a intimidade da personagem” (NUNES, 1995, p. 80).

Outro importante traço formal é marca de início e de fim do romance. Ele se inicia com uma vírgula: “, estando tão ocupada, viera das compras de casa porque a empregada fizera às pressas porque cada vez mais matava serviço, embora...” (LISPECTOR, 2011, p. 13), e termina com “— Eu penso, interrompeu o homem e sua voz estava lenta e abafada porque ele estava sofrendo de vida e de amor, eu penso o seguinte:” (LISPECTOR, 2011, p. 159). Ainda mais do que os seis travessões que iniciam e terminam A Paixão Segundo G.H., a vírgula e os dois pontos reforçam a ideia de algo que precede o romance e algo que continua após seu fim. Paradoxalmente, é como se os personagens construídos narrativamente fossem maiores do que a própria narrativa, sendo esta apenas um retrato fugaz de um curto período de tempo em suas vidas.

A metáfora básica aqui utilizada é o romance como apresentação de um instante fugaz, como tentativa de capturar o momento e transmiti-lo da forma mais pura, apesar de toda a dificuldade de transmitir o tipo de experiência pela qual os personagens estão passando: “embora de olhos secos, o coração estava molhado; ela saíra agora da voracidade de viver [...] mas nada se passara dizível em palavras escritas ou faladas” (LISPECTOR, 2011, p. 15). Ou ainda em “O que se passara no pensamento de Lóri naquela madrugada era tão indizível e intransmissível como a voz de um ser humano calado. Só o silêncio da montanha lhe era equivalente.” (LISPECTOR, 2011, p. 35). Tanto essa incomunicabilidade quanto a estrutura particular no início e no fim do romance reforçam a ideia de que nossa verdade é sempre parcial, não sendo possível atingir-se uma verdade total.

Além de possibilitar a consciência do nosso limite do conhecer, a anterioridade marcada no início pela vírgula e a continuidade marcada no fim pelos dois pontos traz em si mesma uma noção de não-morte dos personagens, paradoxalmente oposta ao fim da própria narrativa e da morte ficcional daí oriunda (lembremo-nos da morte como fundamento da autoridade do narrador em Benjamin). A nota introdutória de Clarice, mostrando-nos que o livro é maior que a própria autora, nos permite vê-lo como se expandindo para além da possibilidade de narrar. A morte é apenas um primeiro passo, há um renascimento dos personagens dentro da própria narrativa que se estende muito além da capacidade de representação do suporte livro.

Clarice utiliza por vezes Ulisses como seu duplo (ou, utilizando os conceitos de Maingueneau, como duplo da imagem de autor que ela buscou construir), asseverando opiniões gerais sobre o próprio ato de escrita e a importância de comunicar: “Depois você aprenderá, Lóri, e então experimentará em cheio a grande alegria que é de se comunicar, de transmitir” (LISPECTOR, 2011, p. 93). Ou ainda: “Nós, os que escrevemos, temos na palavra humana, escrita ou falada, grande mistério que não quero desvendar com o meu raciocínio que é frio.” (LISPECTOR, 2011, p. 93). Essa crítica à intelectualização, priorizando a experiência em si mesma, é ainda mais forte em Hesse: “Quem matasse o eu casual dos sentidos e, em compensação, alimentasse o eu igualmente casual do pensar e da erudição não alcançaria nenhum objetivo” (HESSE, 2013, p. 63). É interessante ver uma crítica dessa natureza na voz de escritores que eram eles mesmos considerados como intelectuais. Tal posicionamento nos leva a supor que a leitura de suas obras almejada por esses escritores seja uma leitura não intelectual, mais focada na experiência mesma, alinhada dessa forma com a presente tentativa de análise que busca o agenciamento de possíveis sentidos narrativos através do diálogo travado no próprio ato de leitura, quando então essa experiência pode ser experimentada pelos leitores.

A APRENDIZAGEM

Em Clarice a preponderância da catarse e da autorreflexão é marcante em sua escrita, tipicamente epifânica e com poucos personagens, enquanto que Hesse possui uma narrativa mais estruturada marcada pelo simbolismo dos elementos inseridos. Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres alterna momentos mais narrativos e simbólicos com momentos catárticos, enquanto que A Paixão Segundo G.H. está basicamente centrado na experiência de G.H., sendo construído através do uso de paradoxos que marcam a limitação da língua de abarcar tal experiência.

Esse processo de aniquilamento da narrativa factual encontra seu ápice em outro romance de Clarice, publicado posteriormente, denominado Água Viva. Da mesma forma, a construção simbólica hessiana encontra seu ápice em O Jogo das Contas de Vidro. Esses romances icônicos da produção de ambos os autores podem colaborar com a compreensão da forma narrativa construída por cada um, mas não foram elencados para o presente estudo em razão de seu caráter prioritariamente exploratório.

Apesar das particularidades individuais, todas as quatro obras analisadas possuem alguns elementos que as aproximam: por exemplo, a experiência metafísica é apresentada em um momento de clímax da narrativa que deve ser precedido de um purgatório. Harry flerta constantemente com o suicídio até conseguir verdadeiramente exercer todas as suas possibilidades no tão esperado baile, seguido do Teatro Mágico, um lugar quase idílico onde tudo é possível. “É preciso saber morrer para chegar à imortalidade” (HESSE, 2011, p. 73). O inferno é explicitamente citado neste romance: “Hermínia me chamou. Está no inferno.” (HESSE, 2011, p. 179). Apesar de diversas vezes tomar uma decisão em direção ao seu próprio eu, Sidarta recorrentemente decai no sansara até junto a Vasudeva escutar a voz do rio e atingir a plenitude, finalmente estando livre para a sua própria morte. Sidarta opera diversas mortes e renascimentos em si mesmo até conseguir cessar de lutar contra o Destino e atingir a unidade. Lóri sofre para conseguir uma existência autêntica. Entretanto, auxiliada por Ulisses, que já fizera esse caminho, ela consegue atingir um estado de conexão com o todo, ocorrendo uma fusão amorosa de ambos os personagens. Ela se desarticula, vive a própria paixão pelo mundo e por Ulisses, tem várias quedas (“como as de Cristo que várias vezes caiu ao peso da cruz”, LISPECTOR, 2011, p. 27), até atingir o seu estado de graça, quando via-se profunda beleza e sentia-se o finíssimo resplendor de energia de tudo o que existe. G.H. escuta sua fala mais autêntica e promove a ‘redenção na coisa’, ocasionando um novo nascimento, um novo modo de relação consigo mesmo e com o mundo, simbolicamente representado no gesto antropofágico de comer a barata. G.H. atinge um estado de graça marcado por uma largueza após seu purgatório: “por eu ter mergulhado no abismo é que estou começando a amar o abismo de que sou feita” (LISPECTOR, 2009, p. 146). Mais uma vez, a metáfora do inferno é explícita: “O inferno pelo qual e passara — como te dizer? — fora o inferno que vem do amor.” (LISPECTOR, 2009, p. 133). Todas essas construções podem ser remetidas ao conceito de angústia heideggeriana: a existência autêntica é uma conquista. A tendência natural do Dasein é a decadência causada pela falação do impessoal que sempre possui uma compreensão mediana. A cotidianidade nos retira da abertura de modo próprio e tal abertura demanda um esforço intencional, não sendo uma conquista absoluta. Entretanto, o Dasein decidido, passando pela angústia, atinge uma liberdade para a morte que permite uma vida autêntica. O sujeito se reapropria de si e se emancipa.

Dessa forma, a grande questão que perpassa todos os quatro personagens principais e também os conceitos heideggerianos agenciados é ser quem se é:

‘Se eu fosse eu’ parecia representar o maior perigo de viver, parecia a entrada nova do desconhecido.

No entanto, Lóri tinha a intuição de que, passadas as primeiras perturbações da festa íntima que haveria, ela teria enfim a experiência do mundo. (LISPECTOR, 2011, p. 129)

G.H. caminha para a sua própria liberdade (LISPECTOR, 2009), Haller liberta sua personalidade (HESSE, 2011, p. 141) e Maria lhe diz: “você não pode ser diferente do que é” (HESSE, 2011, p. 153). Sidarta é alguém que caminha rumo a si próprio: “Aprenderei por mim mesmo; serei meu próprio aluno; procurarei conhecer-me a mim e desvendar aquele segredo que é Sidarta!” (HESSE, 2013, p. 55). ‘Ser quem se é’ em termos heideggarianos é a abertura do Dasein de modo próprio, marcada por uma liberdade para a morte que é sempre sua. A busca de um modo de vida autêntico é o elemento central de toda a produção problematizada. Sua construção possui nuances próprios intrínsecos da visão de cada autor, o que ressalta ainda mais o fato de que a fala da presença decidida é sempre minha. Resta-nos simplesmente escutar esse canto que cada um de nós tem e que só ocorre no silêncio (das Schweigen).

CONCLUSÃO

A tentativa de narrar uma experiência metafísica contém em si mesma o seu próprio fim. Empreendimento impossível por sua própria contradição constitutiva, sua impossibilidade não é sinal de fracasso. Sua impossibilidade — marcadamente presente no paradoxo clariceano — é o desafio a ser enfrentando para ultrapassar a língua e comunicar algo que ela, em princípio, não abarcaria.

A experiência aqui discutida está fundada no ser quem se é, modo de abertura do ser onde o exercício pleno das possibilidades é em si mesmo emancipatório. Para a sua construção literária, os autores elencados utilizam ferramentas específicas que foram problematizadas em função do efeito de leitura que provocam.

Tal como a morte, a abertura é sempre minha, e os romances analisados deixam brechas para que o leitor entenda a abertura do personagem como um duplo do seu próprio processo. O próprio Hesse faz através da fala de Haller um autocomentário sobre essa questão: “o que se passa comigo nos meus raros momentos de júbilo, aquilo que para mim é felicidade e vida e êxtase e exaltação, procura-o o mundo em geral nas obras de ficção; na vida parece-lhe absurdo” (HESSE, 2011, p. 41). Entretanto, é justamente na interação entre o material ficcional e a vida do leitor que este pode sair da perdição do impessoal para começar a encontrar-se. “A presença [o Dasein] necessita do testemunho de um poder-ser si mesma que, como possibilidade, ela já sempre é” (HEIDEGGER, 2012, p. 346), e os romances analisados guardam justamente essa característica de testemunho, nos remetendo ao conceito de arte como pôr em obra da verdade (HEIDEGGER, 2010, p. XXI-XXII). Sendo lidos no modo da escuta (entendida como o “estar aberto existencial da presença [do Dasein] enquanto ser-com os outros”, HEIDEGGER, 2012, p. 226), eles permitem ao leitor efetivamente apropriar-se do material lido. Ao entrar em contato com um personagem que se torna si mesmo, não é apenas o personagem que faz esse processo. A narrativa cujos vazios estão preenchidos pelo leitor torna-se uma nova narrativa, apropriada pelas próprias possibilidades do Dasein que ele mesmo é. Através desse processo o leitor abre a possibilidade do encontro com a sua essência — a existência como poder-ser.

A angústia do personagem é também, pela relação dialógica entre leitor e romance, do leitor. “O fundo ameaçador da angústia — a essência do perigo — não é, portanto, uma possibilidade qualquer, mas o poder-ser si-mesmo da existência” (NUNES, 2012, p. 111). Mergulhando nessa possibilidade, o leitor experiencia a angústia como vertigem da liberdade e tendo sentido o seu doce gosto, pode construir a sua própria narrativa rumo a si mesmo.

Referências

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  1. A única exceção a esse modo de leitura escolhido será no momento da validação da equação comparativa. Não obstante, a análise propriamente dita prescindirá de dados biográficos.

  2. Para uma maior discussão sobre essa postura de não utilizar dados biográficos, que vai de encontro ao paradigma do retorno autoral contemporâneo (cf. Compagnon, 2012), ver Frankel (2014). Nesse mesmo texto está detalhado o uso feito no presente artigo sobre o conceito de vazios em Iser.

  3. Há uma discussão acadêmica sobre o antissemitismo de Heidegger e sua atuação no regime nazista (vide, por exemplo, Nunes, 2010, onde este autor se posiciona contrariamente à afirmação de que a teoria de Heigegger é estruturalmente fascista ou nazista). Não buscaremos defender uma posição acerca dessa discussão. Destacamos, entretanto, que no campo conceitual deste autor agenciado neste trabalho (representando, naturalmente, apenas uma parte de sua produção) não identificamos aspectos que validem qualquer teoria antissemita ou fascista.

  4. Dasein, termo central no pensamento heideggariano, representa o ser-em-relação-a (traduzindo literalmente, o ser-aí). Diferentes tradutores de sua obra optam por diferentes soluções (Márcia Schuback, por exemplo, traduz Dasein por presença), enquanto Nunes mantém Dasein. No presente estudo o termo será mantido no original alemão.

  5. Por questão de espaço, no presente trabalho tal construção não poderá ser didaticamente detalhada para o neófito em Heidegger. Para maior aprofundamento, ver Ser e Tempo (HEIDEGGER, 2012), Heidegger & Ser e Tempo (NUNES, 2010), ou ainda uma interpretação acerca dessa construção no capítulo “Venha a ser o que tu és! A abertura privilegiada da presença” (FRANKEL, 2015).

  6. Sansara (ou samsara): “as vicissitudes do mundo, da vida e da morte da existência humana; a instabilidade e a efemeridade das coisas; a agitação do mundo; a vaidade e a inquietude da vida humana” (CARO in HESSE, 2013, p. 95).

  7. É importante ressaltar, entretanto, o caráter meramente metafórico de ‘interioridade’. Leiamos Heidegger em Os Problemas Fundamentais da Fenomenologia: “Mundo só há se e por quanto tempo um Dasein existe. Pode haver natureza mesmo na ausência de todo Dasein. A estrutura do ser-no-mundo revela essa particularidade essencial do Dasein, a saber que ele se projeta um mundo, não depois e acessoriamente, mas de tal sorte que o projeto de mundo pertence ao ser do Dasein. Com esse projeto, o Dasein já sempre sai de si, ele existe (ex-sistere), ele é no mundo. É por essa razão que nunca há alguma coisa como esfera interna. Se reservamos o conceito de ‘existência’ ao modo de ser do Dasein, é porque o ser-no-mundo pertence a esse ser” (grifo nosso, HEIDEGGER in NUNES, 2010, p. 53). Dessa forma, o Dasein constrói o mundo na sua própria existência e a imagem do pássaro dourado ou da voz interior de Sidarta é aqui entendida como apenas simbólica.