ULTRAJE, PROFANAÇÃO E REDENÇÃO

Suzi Frankl Sperber

UNICAMP

sperbersuzi@hotmail.com

Resumo: Por que aparecem corpos-mortos em cena em peças teatrais contemporâneas em língua inglesa? O corpo morto cênico — que chamei de corpo-testemunho — é um agente desestabilizador, nestas peças, tanto do sujeito singular, como do social. Análise da função dos corpos mortos cênicos em Buried Child, de Sam Shepard, Blasted, de Sarah Kane, Ariel, de Marina Carr, a partir da noção de ultraje do corpo morto, de sagrado, esperança, e do capitalismo como religião, conforme ensaio de Walter Benjamin.

Palavras-chave: Buried Child; Blasted; Ariel; corpo-testemunho; ultraje do corpo morto.

Abstract: Why do dead bodies appear on the scene in contemporary English and American plays? The scenic dead body — which I called the witness-body — is a destabilizing agent, in these plays, both of the singular subject and the social one. Analysis of the function of the dead bodies present in the scene in Buried Child, by Sam Shepard, Blasted, by Sarah Kane and Ariel, by Marina Carr from the notion of dishonoring the dead body, from the notion of sacred, hope, and capitalism as a religion, as proposed in an article of Walter Benjamin.

Key-words: Buried Child; Blasted; Ariel.

Ao observar a literatura — especificamente a poesia — e apreender o sagrado, ponderei há tempos:

Quando analisamos obras literárias, seja a obra de Clarice Lispector, seja a de Carlos Drummond de Andrade, notamos que aquilo que nos envolve avassaladoramente, às vezes com extraordinária delicadeza, às vezes com violência, é o que há de poético nos textos. Não é o pietismo. É outra coisa. É algo relacionado com a palavra.

[...]

Segundo Octavio Paz, a poesia se caracterizaria pela participação. Esta depende da experiência, que leva para além de si, para além do ser humano. Portanto leva à transformação. E a transformação é uma das características do movimento que conduz ao sagrado. (SPERBER, 2003, p. 888).

O inesperado, então, há muito tempo, foi me dar conta de que a dimensão do sagrado ou o repentino ingresso no sagrado independiam de uma vontade religiosa e podiam comparecer na obra de quem não se reconhecia como temente a Deus, ou como alguém cuja fé o poderia levar à busca do sacrossanto. Mas como a poesia tem uma dimensão que poderia permitir a ela um acesso mais fácil e pleno ao sagrado por trabalhar com mais cuidado com as palavras, levando-a, como explica Octavio Paz, à transformação — do leitor, do autor — talvez outras manifestações literárias não tivessem características semelhantes. Ora, no presente ocupei-me com o teatro contemporâneo. Em tempos da “morte de Deus”, seria possível encontrar o sagrado em peças teatrais? Foi chamada a minha atenção para aspectos do teatro em língua inglesa da chamada, por alguns, literatura pós-moderna. Tais obras, assim como outras formas artísticas referidas como “pós-modernas”, têm sido vistas frequentemente como “paródicas”. A paródia permitiria uma abertura para outras dimensões do conhecimento?

Sandra Luna considera que

[...] a despeito das polêmicas acerca do enquadramento dessa contemporaneidade como “pós-modernidade” e para além das premissas estéticas, éticas ou políticas a guiarem os contendedores, parece haver certo consenso em que investidas paródicas e recursos à autorreflexividade associam-se fortemente na arte do presente como estratégias desconstrutivas, irônicas, desestabilizadoras. (LUNA, 2014, p. 1)

Ao estudar especificamente algumas peças do teatro pós-moderno em língua inglesa, cheguei à fronteira do sagrado. Pretendo, neste ensaio, manter presente algumas características da pós-modernidade — desconstrução, paródia, reinterpretação e reinvenção — para examinar outra marca, sobre a qual me ative graças ao olhar atento e altamente conhecedor da tragédia de Sandra Luna. Em algumas peças do teatro anglo-saxão pós-moderno, uma personagem morre em diferentes circunstâncias quer no início da peça, quer em outros momentos, porém não no fim. A ação transcorre e, perto do fim da peça, o corpo desaparecido é trazido de volta à cena.

Essa revisitação do corpo morto como testemunho de verdade está presente em vários dramaturgos pós-modernistas: Sam Shepard, em Buried Child [...], fará reaparecer ao final da peça o corpo ressequido de uma criança morta pelo pai-irmão (LUNA, 2015, p. 339)

Este corpo morto cênico — que eu havia chamado de corpo-testemunho — é um agente desestabilizador, nestas peças, tanto do sujeito singular, como do social. No teatro clássico, o corpo morto em cena é inaceitável porque antiético. O que significa, então, este corpo que reaparece em cena? Mau-gosto? Mau-gosto que parodia a tragédia e sua necessária catarse, conforme o conceito que nos vem da Antiguidade clássica? A pergunta sobre o sentido do corpo-testemunho — que me levou a pensar sobre o assunto — foi colocada ainda por Sandra Luna.

Pensarei, inicialmente, na função do corpo-testemunho nas peças.

Antes de mais nada, o corpo-testemunho poderia nos levar a pensar na vida humana enquanto ethos debatido em cena.

O fato do qual todo discurso sobre ética deve partir é aquele de que não existe nenhuma essência, nenhuma vocação histórica ou espiritual, nenhum destino biológico que o homem deveria cumprir ou realizar. Essa é a única razão pela qual qualquer coisa como uma ética pode existir: pois é claro que se o homem fosse ou devesse ser esta ou aquela substância, este ou aquele destino, não haveria qualquer experiência ética possível — não haveria senão deveres a cumprir. (LUNA, 2015, p. 339)

Ou pensar na crise da identidade enquanto crise da memória, e também crise da história e da narração, o que seria despertado por este corpo morto. Sem dúvida, esta é uma resposta convincente. Se a dramaturgia contemporânea é marcada pela desconstrução, paródia, reinterpretação e reinvenção, ela teria aspectos paralelos com a profanação, tal como a vê Giorgio Agamben.

A fim de buscar respostas, esmiuçarei perguntas trabalhando com três peças teatrais (Buried Child, de Sam Shepard; Blasted de Sarah Kane e Ariel, de Marina Carr) que se encaixam no período pós-moderno proposto.

O CORPO MORTO QUE REAPARECE: TRANSGRESSÕES ODIOSAS

Um resumo de peça Buried Child aponta questões que alimentam a reflexão. Segundo a Wikipedia, Buried Child apresenta a “fragmentação da família nuclear no contexto da decepção e desilusão com relação ao mito e ao sonho americanos”, fala da “desaceleração econômica e do colapso das estruturas e valores familiares tradicionais da década de 70”. De fato vemos isto na peça. Mas por que ela se chama Buried Child? Qual o sentido especial do retorno, no fim da peça, do corpo da criança assassinada e enterrada em local ignoto? Por que dá nome à peça?

O corpo morto cênico é testemunha do assassinato, do assassino, do silêncio que cerca este fato e que contamina as relações. Ele chama a atenção a respeito da contração e fragmentação dos cidadãos, levando a que o receptor se dê conta da violência, horror, desrespeito, em cidades e famílias burguesas. Antes de mais considerações, o corpo-testemunho corresponderia à volta do recalcado, mostrando como nas ricas sociedades do Ocidente capitalista — que haviam passado a pensar a si mesmas como pacíficas, coesas e igualitárias — civilizadas, no sentido de Norbert Elias (1993) — se desenvolvem as transgressões e o impensável.

A fim de refletir mais e melhor sobre o corpo-testemunho, suspenderei o estudo de Buried child, deixando-o em suspenso para abordar outra peça teatral: Blasted, de Sarah Kane.

BLASTED

Outras peças teatrais apresentam fenômeno paralelo. Blasted é uma delas. A cena se passa em um quarto de hotel de luxo em Leeds. Ian, um desbocado jornalista de tabloide, de meia-idade, levou Cate para passar a noite com ele. Cate é muito mais jovem do que Ian, é frágil, simples e aparenta ser menos inteligente. Ian tenta seduzir Cate, e ela resiste. O tempo todo Ian fala com orgulho de sua misoginia, racismo e homofobia. Depois de longas conversas, afinal Cate faz sexo oral, termina por morder forte o pênis de Ian, vai ao banheiro — e foge pela janela. (Não sabemos como, mas estamos no âmbito da ficção). Ian e o público só saberão da fuga depois da mudança repentina de cena, que acontece depois que o público ouve uma explosão. O espaço cênico é o mesmo (um quarto de hotel de luxo), mas a partir de então o público sabe que fora há uma guerra violenta. Seria a da Iugoslávia? Entra no quarto do hotel um soldado armado, violento, cínico, agressivo — e faminto, a ponto de comer os dois cafés da manhã pedidos anteriormente por Ian para si e Cate. O soldado conta os horrores vistos e cometidos por ele, acaba sodomizando Ian, sente fome ainda, suga e mastiga os olhos de Ian, e se mata. Ian, já cego, percebe que Cate volta ao apartamento com uma criança faminta nos braços. Ele pede que Cate o mate. Cate só pensa em salvar a criança.

O diálogo a seguir tem tons surreais visto que são discursos paralelos. Ao mesmo tempo, entendemos os pontos de vista de um e da outra. Ian assume o discurso da morte, do desejo de morrer, da descrença, do ceticismo. E formula o repetido pedido para que Cate o mate. Cate tem o discurso da vida, de sua afirmação. O pranto do bebê irrita Ian. Cate, ao contrário, acolhe o bebê, aceitando seu choro, ainda que o mundo em que se encontram seja cruel e que falte alimento para todos. Ian revela impaciência, falta de generosidade, autocentramento. A compaixão de Cate é contraposta à ponderação de Ian de que nada adianta, porque estão todos na mesma situação desastrosa. O impulso suicida de Ian é visto como covardia ou fraqueza por Cate. Cate introduz um universo de valores, alguns explícitos, outro não. Ela apresenta Deus como sentido da vida. O ceticismo último de Ian corresponde à convicção da morte de deus - já proposta pelo pensamento filosófico nietzschiano: “Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!” (NIETZSCHE, 1984, § 125). Cate responde com fé tranquila e singela, correspondente ao desejo de sentido último da vida.

Ian — [...]. Você pode fazer esse bebê ficar quieto? / Cate — Ele não tá fazendo nada. Só tá com fome. / Ian — Estamos todos morrendo de fome, se você não atirar em mim, vou definhar até a morte. / Cate — É errado se suicidar. / Ian — Não, não é. / Cate — Deus não ia gostar. / Ian — Não existe Deus. / Cate — Como você sabe? / Ian — Não existe Deus. Não existe Papai Noel. Não existem fadas. Não existem terras encantadas. Não existe porra nenhuma. / Cate — Tem que existir alguma coisa. / Ian — Por quê? / Cate — Se não existir nada, nada faz sentido. / Ian — Deixa de ser uma demente da porra, nada faz sentido de jeito nenhum. Não tem motivo para ter um Deus só porque seria melhor se tivesse. (KANE, s/d, p. 51)

Diante do comentário demolidor de Ian, Cate muda de assunto: “Cate — Achei que você não quisesse morrer.” E assim é retomado o diálogo de surdos.

Ian — Estou cego.

Cate — Meu irmão tem amigos cegos. Você não devia desistir.

Ian — Por que não?

Cate — Isso é ser fraco.

Ian — Eu sei que você quer me castigar, tentando me fazer viver.

Cate — Não quero.

Ian — Claro que você quer, eu também faria isso. Existem pessoas que eu amaria ver sofrendo, mas não sofrem, elas morrem e pronto. (KANE, s/d, p. 51-52)

Este é o ponto de retomada do tema metafísico, a partir do tema da morte.

Cate — E se você estiver errado?

Ian — Não estou.

Cate — Mas e se?

Ian — Eu já vi gente morta. Estão mortos. Não estão em outro lugar, estão mortos.

Cate — O quê você me diz de pessoas que viram fantasmas?

Ian — O quê eu digo? Eles imaginaram. Ou inventaram ou desejaram que a pessoa ainda estivesse viva.

Cate — Pessoas que morreram e voltaram dizendo ter visto túneis e luzes —

Ian — Não se pode morrer e voltar. Essas pessoas não morreram, desmaiaram. Quando você morre é o fim.

Cate — Eu acredito em Deus.

Ian — Tudo tem uma explicação científica.

Cate — Não.

[...] (KANE, s/d, p. 52)

Racionalidade versus irracionalidade, ou fé e razão se contrapõem no debate entre eles, concluído, em certa medida, pela criança que morre — de inanição. Cate é levada a enterrar a criança — no quarto do hotel... E a fabricar uma cruz que finca ao lado da “cova”. Em seguida, reza.

Ian — O que você tá fazendo? / Cate — Rezando. Só para garantir. [...] / Ian — Você está rezando por ela. / Cate — Ela era um bebê. / [...] Cate — Inocente. / [...] / Cate — Não viu coisas ruins nem foi a lugares ruins — / Cate — Não conheceu ninguém que possa ter feito maldades. / Ian — Ela não precisa de nada disso, Cate, ela está morta. / Cate — Amém. (KANE, s/d, p. 54)

[(Cate informa que tem fome e diz que procurará conseguir comida com os soldados que encontrar. Sai. Ian fica só, se masturba, se estrangula, caga, ri, tem pesadelo, abraça o soldado morto, chora sangue, “desenterra” e come a criança, entra no buraco-túmulo aliviado, morre). Cate volta com sangue escorrendo pelas pernas, e com comida. Ela come um tanto.)].

Ela alimenta Ian com o que resta da comida. / Ela põe gin na boca de Ian. / Ela termina de dar comida a Ian e senta longe dele, se encolhe para se esquentar. / Ela bebe gin. / Ela chupa seu próprio dedão. / Silêncio. / Chove.

Ian — Obrigado.

Blecaute. FIM (KANE, s/d, p. 57)

As ações de Ian são incongruentes entre si, na sua sequência como que aleatória, contraditória, feita de horror e nojo. Em seguida ficamos sabendo que Cate seria virgem, visto que se entrega para obter alimento — e volta com comida nas mãos e sangue escorrendo pelas pernas. O apelo aos impulsos baixos do ser humano se contrapõem à humanização final do morto — corpo morto — mortíssimo, que havia vivido a fome e que é alimentado por Cate, a quem o morto agradece, ele, que vivera até então incapaz de gentileza.

Os diálogos apresentam, além da morte de deus, a tematização da questão do sujeito e do seu descentramento. O sujeito descentrado apalpa e aniquila o mundo, tornando-se ele mesmo objeto, ele mesmo consumível, a ponto de se mutilar e comer o outro: antropofagia. A psique adoecida seria condenada à mais abjeta aniquilação. No entanto, no fim da peça aparecem temas como Deus, fé, necessidade da crença, o sentido da vida e do mundo, a oração, generosidade, acolhimento, compaixão e, finalmente, ocorre o que fora negado: o morto revive, após ser alimentado por Cate — Ian ressurge para a vida humanizado, manifestando gratidão. Irascível ao longo de toda a peça, de repente, como última palavra enunciada por ele, última palavra da peça, existe a expressão de reconhecimento — voltando-se para o outro, condição sine qua non da gratidão: “Obrigado.” A personagem fundamental da peça acaba sendo Cate, aquela que resiste, confia, tem fé, é solidária, compassiva, transformando a peça em algo como um ritual. O ritual demanda a comunhão entre os seres e deles com a divindade. É um ritual capaz de humanizar o desumanizado.

BURIED CHILD

Podemos nos voltar, agora, a Buried Child. Uma das perguntas formuladas no início desta reflexão tinha sido: “por que a peça se chama Buried Child?” Vale recordar que nada sabemos de uma criança — enterrada ou não — no começo e nem mesmo ao longo da peça. A “fragmentação da família nuclear no contexto da decepção e desilusão com relação ao mito e ao sonho americanos”, mencionados anteriormente, fica muito clara na peça. E independe de qualquer criança. A crise já ocorrera havia trinta anos e a família que encontramos está estilhaçada — mas reunida quase toda sob um mesmo teto.

No começo da peça ouvimos uma voz que brada para o marido Dodge. É a voz de Halie, a esposa, que recomenda ao marido tomar um comprimido contra dor. O comentário de Halie é incompatível com a indicação de um analgésico para Dodge, seu marido. A reflexão de Halie gira em torno de cristianismo, as posições dos sacerdotes, a ação humana independente das prescrições cristãs. Ouvimos a voz de Halie:

Não é cristão, mas funciona. Isto é, não é que seja cristão. É um comprimido. Não sabemos. Não temos condições de responder a algo assim. Há coisas que os sacerdotes nem sequer podem responder. Eu, pessoalmente, não vejo nenhum mal nisto. Um comprimido. Dor é dor. Pura e simplesmente. Sofrimento é outra coisa. […] (SHEPARD, 2011)

Halie comenta não haver corrida de cavalo aos sábados, como forma de celebração de Deus. Parece ser ética, preocupada com moralidade, generosa e aberta. A voz e entonação contradizem o teor das palavras: seria hipocrisia? Decorreriam do quase falsete das relações muito estremecidas entre marido e mulher? Os pontos de vista de cada um parecem ser bem conflitantes. Afinal, Halie diz

Você sempre imagina o pior sobre as pessoas!

Bem. Estou surpresa de que eles ainda tenham este tipo de legislação. Alguma pretensão à moralidade. É assombroso. […]

Não é de admirar que as pessoas tenham dado as costas a Jesus! [...]

Não espanta que os mensageiros da palavra divina berrem mais alto que jamais o fizeram. Berram para os quatro ventos. (SHEPARD, 2011)

Halie revela ser mais otimista sobre os seres humanos que o marido — mais ciente de um horizonte religioso para si e mais cética com relação à ação dos sacerdotes. Ao longo da peça a ação se contrapõe diversas vezes às asserções enunciadas.

Um dos filhos do casal mora com eles: Tilden. Outro, Bradley, aparece com frequência para cortar o cabelo do pai, fazendo-o radicalmente. Lembra o corte do cabelo de Sansão, porque Dodge sente como que uma diminuição de forças e energias oculto quando seu cabelo é cortado. O desnível entre fala e ação indica que há algo que pode ser revelado.

Quando Vince (que só adiante descobrimos ser o neto do casal, filho de Tilden) traz sua namorada, Shelly, para conhecer sua família, ela inicialmente fica encantada com a casa da fazenda “normal” — que ela compara ao museu Norman Rockwell (pintor e ilustrador americano, que fundou um museu em 1969). Depois ela se dá conta de que os avós de Vince (Dodge e Halie) são alcoólatras, e Tilden, pai de Vince, é um retardado. Bradley perdeu uma perna em uma serra elétrica. Estranhamente, ninguém parece se lembrar de Tilden, num primeiro momento, e Vince e Shelly (e Dodge) o tratam como um intruso. De repente, mais adiante, eles o aceitam como parte de sua família — uma família disfuncional e em verdade violenta.

Pouco a pouco, o sombrio segredo da família começa a vir à tona. Anos antes, Dodge, marido de Halie, havia enterrado um recém-nascido indesejado (o fruto de um relacionamento incestuoso entre Tilden e sua mãe) em algum local não revelado do terreno da fazenda. Desse momento em diante, toda a família — que até então vivera na prosperidade e alegria — passa a viver sob uma nuvem de culpa, finalmente dissipada quando Tilden descobre restos mumificados da criança e os leva lá para cima, para entrega-la à sua mãe, a saber, a mãe de Tilden e a mãe da criança. Este ato parece purgar a família de sua maldição. Os campos da fazenda, que desde a morte da criança não tinham mais sido produtivos, germinam, florescem, produzem milho. A peça termina com uma manifestação de esperança de Halie que diz:

Boa chuva forte. Vai levando tudo para baixo, até bem fundo, até as mais profundas raízes. O resto cuida de si mesmo. Você não pode forçar uma coisa a crescer. Você não pode interferir nela. É tudo escondido. Despercebido. Você apenas tem que esperar até que algo apareça fora do chão. O broto é minúsculo. Um broto branco minúsculo. Todo peludo e frágil. Apesar de tudo, forte. Forte o suficiente para romper a própria terra. É um milagre, Dodge. Eu nunca vi uma safra como essa em toda a minha vida. Talvez seja o sol. Talvez seja isso. Talvez seja o sol. (Tilden desaparece acima. Silêncio. Luzes que vão para o preto.) (SHEPARD, 2011)

Corresponderia este final à esperança de que reviva o sonho americano? Ou de reconstituição da família nuclear? Ou ainda de novo desenvolvimento econômico? As esperanças agora referidas, que recolhi na sinopse já transcrita da peça, seguramente não se referem ao bebê assassinado e enterrado no terreno da casa em que vive a família. Então qual a função da criança enterrada-desenterrada?1

ULTRAJE E REDENÇÃO

O assassinato da criança recém-nascida — não batizada, portanto pagã — e seu enterro sem ritual, sem que sua alma seja encomendada a Deus, é ultrajante. Recordemos que o bebê que morre de inanição em Blasted é enterrado, Cate ora por ela e apõe uma cruz junto ao seu improvisado túmulo. Ian, o protótipo do machão e machista pós-moderno ateu, descrente, infiel tem uma morte ultrajante também, ainda que diferentemente. O ultraje é outro. Não há o morto, ou corpo morto ultrajado. Há o corpo vivo, do protótipo do machão que é repetidamente ultrajado. Cate morde violentamente o pênis de Ian, e ele é sodomizado, cegado e em certa medida comido pelo soldado anônimo, de modo que seu corpo — que seria o que de mais importante tem Ian, já que sua alma não conta para ele, foi conspurcado em vida. O ultraje se aprofunda na medida em que Ian se estrangula (sem se matar, conforme nos indica a peça), se masturba, defeca. Depois ele “ri, tem pesadelo, abraça o soldado morto, chora sangue, “desenterra” e come a criança, entra no buraco-túmulo aliviado, morre”. Estas reações se afastam da escatologia aviltante. A antropofagia final se configura como parte de ritual de todas as religiões. Alimentar-se com o corpo da criança cujo enterro fora sacramentado revela aspectos contraditórios. Por um lado, a fome de Ian o leva a comer o corpo morto, saciando sua fome e ele poderá repousar. Mas é ultrajante. Por outro lado, como o corpo da criança fora encomendado a Deus, a antropofagia configura comunhão. O riso, o pesadelo, indiciam emoções em alguém que se apresentava indiferente, duro, autocentrado. O abraço ao soldado que o sodomizara e lhe arrancara os olhos se abre para o acolhimento do outro, do inimigo, convertendo o ódio, o rancor, em amor. Uma vez morto em um ambiente que primeiro ultraja e depois resgata, Ian — morto — recebe alimento e bebida de Cate. Por quê? Não correspondem exatamente a pão e vinho — mas estão no lugar de pão e vinho. E Ian renasce enquanto espírito, alma, enquanto humano, manifestando sua gratidão — aprendizagem difícil de acolhimento do outro, possível a partir da comunhão. Assim, o corpo-cadáver ultrajado é resgatado. O corpo testemunha não os crimes e ultrajes, mas a redenção.

KÁLOS THÁNATOS

Um achado teórico de Vernant, relativo à bela morte e ao cadáver ultrajado precisam ser recordados:

[...] esta perspectiva de uma pessoa reduzida a nada, perdida no horror, é afastada, contudo, no exato momento de sua evocação. (VERNANT, 1979, p. 62)

Vernant analisou o conceito da bela morte — kálos thánatos — nas epopeias gregas. Também está registrado, nas epopeias, o ímpeto de desqualificar o heroísmo do morto através do ultraje, conspurcando o corpo do herói e, pois, as suas marcas — a honra heroica e a glória imperecível, vinculadas à bela morte. Segundo a tradição, o corpo deve ser preservado de modo a conservar a beleza e a juventude do homem vivo, morto em combate, combate que garante eternizar os valores do herói. O valor de alguém só seria provado “à custa e em detrimento de um rival”.

O “corpo-testemunho” das peças aqui estudadas seria correspondente ao corpo ultrajado, conspurcado, porque não recebeu ritual funerário. Em um caso temos um bebê; em outro um adulto, em um terceiro caso há uma jovem adolescente de 16 anos — e diversas outras pessoas. Nos casos do bebê e da jovem as personagens foram vitimizadas por outros. O bebê é fruto do pecado e vítima da vergonha e da ira, sendo sacrificado pelo avô. Ian, o adulto de Blasted é vítima de si mesmo e de seres que vivem em uma sociedade egoísta, autocentrada, narcísica. Nas epopeias o ultraje é suspendido pelos deuses. Nas peças contemporâneas o ultraje é suspendido pelo retorno do corpo morto — que manterá na memória a presença do morto entre os vivos. E mais: o corpo morto é embelezado, resgatado na sua inteireza e pureza graças à comunhão em dois dos casos (Blasted e Buried Child).

A criança enterrada, filha de Tilden e de Halie, é evocada quando é desenterrada pelas chuvas, encontrada e carregada por Tilden — o pai, que quer mostra-la para sua mãe — e mãe da criança. Seu nascimento é tabu e sua morte é crime. O nascimento, por ser filha incestuosa. Em decorrência do incesto, a criança é assassinada logo depois de seu nascimento: Dodge não suportou conviver com a criança — viva — testemunha do incesto. Enterrou-a sem indicação de local, uma forma indigna de enterro e, pois, de morte. A criança — o corpo morto da criança - passou a ser vil. Tilden, retardado, não teria consciência do interdito. A mãe, Halie, consciente da interdição, aceitou a relação incestuosa. Foi punida por Dodge que lhe infligiu um parto sem apoio médico, um parto de muita dor. A consequência do assassinato foi a profunda depressão de Dodge, com sua decadência humana e consequente decadência da propriedade. Esta passa a corresponder à terra devastada: the waste land. Tilden, capaz de amor, tem a paciência da espera, da confiança e da fé — e olhos aptos para ver o milagre, e as mãos e braços apropriados para colhê-lo e distribui-lo. Ele leva braçadas de milho belo, bem granado; e cenouras: frutos da terra que se tornou produtiva de novo. O milagre da terra — ou do sol, ou das chuvas — se faz ver. “Afagar a terra / Conhecer os desejos da terra / Cio da terra, a propícia estação / E fecundar o chão” (Chico Buarque). O fruto do incesto — assassinado — retorna. A terra fora abandonada — mas também afagada. Afagada pelo persistente amor e esperança de Tilden. Os desejos da terra foram conhecidos e saciados e a estação propícia apresenta o corpo da criança, afagada por Tilden, evocada: memória como fator de vida. Eis o milagre. Diz Vernant: “[...], o ódio, a violência destruidora nada podem contra aqueles que, animados pelo sentido heroico da honra, dedicaram-se à vida breve.” A criança não foi batalhadora como os heróis gregos. Mas, criança, ela representa a pureza, a inocência.

[...] Sua memória é sempre viva: ela inspira a memória do passado que é o privilégio do aedo. Nada pode atingir a bela morte: seu fulgor se prolonga e se funde na fulguração da palavra poética que, dizendo-lhe a glória, a torna real para sempre. A beleza do kálos thánatos não difere da do canto que, celebrando-a, torna-se ele mesmo, na cadeia contínua das gerações, memória imortal. (VERNANT, 1979, p. 62)

Inocente e pura, a criança reencontrada suscita a lembrança e a palavra poética, que frutificam, recuperam a potência da terra. O corpo-testemunho poderá ser celebrado no presente e no futuro, por gerações, sendo o evento imortal. O corpo-testemunho suscita a pulsão de ficção2, canto e conto. Em vez de calar, clama para os céus. Em certa medida, a memória do crime, dos criminosos e da vítima uma vez reconhecidos, apresentados, levam a uma redenção — pelo menos ao perdão. A produção da terra fertilizada é alimento a ser consumido, em comunhão.

Em Blasted, uma criança morre, é enterrada, depois desenterrada e comida. Seu corpo é ultrajado? O horror da misoginia, da violência, do ódio, da guerra, da destruição, da fome, da antropofagia é suspendido por uma pessoa que afirma a vida, apesar do horror. E afirma Deus e a fé... É preciso que o corpo morto seja desenterrado e alimente o ainda vivo, para revelar sua grandeza. Como o adulto que ainda estava vivo se mata, surge outro desafio: o corpo morto em cena já não é o da criança (também é o dela). O corpo morto, conspurcado, semienterrado, é o de Ian. Ele será alimentado. Para que? Por quê? Para mostrar que não estamos completamente cristalizados pelo passado, pela contingência.

Na medida em que somos capazes de dar um sentido à contingência, de mudar relativamente o passado, inovamos, nos projetamos, esperamos, desejamos. Todo projeto (futuro) depende em maior ou em menor medida da situação de cada um em seu tempo. (MÈLICH, 2003, p.8)

Se a cabeça morta de Ian em cena correspondesse apenas ao testemunho do horror, das violências, das maldades, dos preconceitos e desrespeitos, das blasfêmias, bastaria que ela lá ficasse e que acabasse a peça. Em certa medida, a cabeça testemunhará o que ainda sucederá, simbolicamente, pela mera presença. Diferentemente de João Batista, a cabeça que sobra não é a do santo, mas da escória. Aliás, a testemunha de tudo foi Cate, enquanto permanece em cena, Cate, que continua viva. E os espectadores. Que contemplam a redenção.

A cabeça de Ian poderia presenciar a vingança de Cate, que Ian imagina que ocorrerá. Mas não: Cate não se vingou, nem se vingará. Cate — em tempos em que o alimento é escassíssimo e ela o consegue entregando seu corpo virgem a soldados — come um tanto do que conseguiu. O resto, que poderia servir para outra refeição, ela o serve a Ian. Ela sabe que Ian havia morrido: ali estava ele, morto e semienterrado. É o corpo-testemunho. Ele não acreditava em Deus, nem em ressurreição, nem no retorno de mortos à vida. Cate alimenta Ian como a uma criança, servindo-lhe comida e bebida na boca. E o milagre acontece: Ian come! Portanto revive, renasce. Seu renascimento serve para que se alimente — e para que se dê conta do outro, de Cate. O gesto generoso de Cate, de fraternidade (tão fraternal — ou maternal — como o recolhimento e cuidados com o bebê) gesto de sym-pathos (sentir com) para com Ian, desperta Ian para a vida e para o reconhecimento (gratidão), expresso pela enunciação de “obrigado”. A cabeça — de repente viva e falante — não enuncia o que já saberia, memória tautológica3. Ela exprime outra linguagem, relativa a outro tipo de experiência e memória, esquecidas pela história dominante. Ian tornara-se parte dos vencidos, passando a ter a dimensão simbólica da diferença. A gratidão final é ética. Num mundo de arbítrio, violência e injustiça, seu corpo morto-vivo passa a constituir-se como fundamento da justiça — sutil, fugaz. A enunciação de sua gratidão equivale a um grito, ao imperativo bíblico: Zakhor! Recordem! (Deuteronômio 32.7) O que há a ser recordado é o reconhecimento do outro enquanto relação salvadora. É a tradição, a origem, a descendência. São os elos a serem refeitos.

ARIEL

Nos dois casos estudados até agora, o corpo-testemunho se refere a pessoas específicas e singulares. Vale a pena analisar, ainda, Ariel, de Marina Carr.

Marina Carr, autora irlandesa, entretece referências gregas e clássicas em suas obras. Ariel tem como intertexto Iphigenia em Aulis, de Euripides. E Hamlet. Iphigenia foi a filha mais velha de Agamemnon e Clitemnestra, irmã de Orestes e Electra e sobrinha de Menelau e Helena. Ariel é a filha mais velha de Fermoy Fitzgerald e de Frances. Ela é irmã de Stephen e de Elaine, meia irmã de James (primeiro filho de Frances), sobrinha de Boniface e sobrinha neta de Sarah (tia de Fermoy). Ariel é sacrificada em nome da ascensão política e econômica de Fermoy (inimigo político de Hannafin), que imola a filha para que o sacrifício propicie o sucesso do pai. A peça gira em torno deste assassinato sacrificial, da reação dos que ficam sabendo desta intenção e ação desde o início (Boniface e Elaine), cujo silêncio compartilha da culpa, e da reação dos que só o saberão dez anos depois: Frances, Stephen, Sarah. Fermoy não tem salvação. O crime, acrescido de outros anteriores e posteriores, completa o total de horrores da peça, culminado com o assassinato de Frances por Elaine. Há um locus privilegiado: o lago (loch) Cuura. A cena é irlandesa, mas o lago (que não localizei — e que pode ser fictício), justamente por ser fictício e localizado na Irlanda, assim como porque sete corpos são encontrados no fundo dele, além de uma lampreia, ou enguia gigante (pesando 100 kgs), que presumivelmente poderia ter-se alimentado do corpo dos mortos, lembra o Loch Ness. O falso monstro, em verdade peixe, poderia ser incriminado pela morte dos que ali receberam sepultura, mas sabe-se que as mortes não foram de afogamento acidental. O locus privilegiado, por tais características, representa a localidade em que vivem os habitantes citados, cidadãos do Bem, mas provenientes do lugar do Mal. Mais para o fim da peça o lago é dragado e são encontrados os referidos corpos, que incluem o de Ariel. Sandra Luna comenta:

Das águas sujas do lago, Ariel retorna como espírito puro que redime, senão a maldade da vida, certamente o poder, a verdade e a beleza da arte. (LUNA, 2015, p. 339)

Antes de retornar o seu corpo, Ariel havia “telefonado” para o pai, do fundo do lago, pedindo-lhe que a tirasse daquele lugar horrível onde se encontrava, vizinha do peixe imenso que a ameaçava constantemente. Esta estranha ação, introdutora do fantástico, pode aludir ao grande peixe como monstro (Ness), ou advertir o pai de que ainda poderia salvar-se, se a resgatasse, ou ainda sinalizaria que o castigo adviria da desobediência dos mandamentos (“Ouvistes que foi dito aos antigos: ‘Não matarás’; mas quem assassinar estará sujeito a juízo”. Mateus 5: 21), visto que peixe simboliza Cristo.

A jovem Ariel é vítima da cobiça, sendo sacrificada pelo pai (Fermoy, cujo nome, “Fear Mai” em irlandês, sugeriria, em inglês, fer = “for” e Moi = “me”, a saber “For myself”; em português “para mim”). A personagem é ultrajada porque não é enterrada, porque sua morte é violenta, porque a mentira de Fermoy (de que ele sofrera um acidente no qual morrera Ariel) encobre a verdade e impede que se conheça a real dimensão do ser humano Ariel — assim como a real escória que caracteriza o pai Fermoy. A origem do nome Ariel é bíblica. Significaria leão de Deus. Ariel é o nome de um dos chefes que Esdras enviou à procura de filhos de Levi para o santuário.

16 Enviei, pois, Eliezer, Ariel, [...], que eram entendidos.

17 E enviei-os com mandado a Ido, chefe em Casifia; e falei a eles o que deveriam dizer a Ido e aos seus irmãos, servidores do templo, em Casifia, que nos trouxessem ministros para a casa do nosso Deus. (ED 8:16)

Seria também o nome de um anjo ou espírito do ar (cf. a personagem Ariel de A Tempestade, de William Shakespeare). O sentido do nome Ariel aponta para a busca de alguém que possa ser ministro da “casa do nosso Deus”.

O pai de Ariel — Fermoy Fitzgerald — é assassinado por Frances, a mãe de Ariel e esposa de Fermoy, que vinga o assassinato de Ariel. Frances será retalhada — literalmente — por Elaine, que a odiava desde sempre e que vinga, assim, a morte do pai que amava. Os corpos encontrados, no fim da peça, não estão ressequidos como a criança de Buried Child, mas desfeitos pela água, pelos peixes. No segundo ato Elaine, sempre com ciúmes de Ariel, segura a caveira de Ariel e fala com ela. A cena hamletiana não discute vida e morte filosoficamente. Mas aí está a caveira de Ariel: corpo-testemunho. Sabemos que Ariel fizera ouvir sua voz, pedindo ao pai que a retirasse de onde estava. Voz, palavras, a caveira, o caixão de Ariel que está na cena no terceiro ato e o fantasma de Fermoy (que aparece morto e ensanguentado também no terceiro ato) funcionam como corpos-testemunho. E há os outros corpos-testemunho, os do lago Cuura. O que testemunham estes corpos?

Ariel difere de Buried Child e de Blasted. Nas duas últimas peças há renascimento. Em Buried Child o corpo que retorna traz consigo a alegria do milagre da terra produtiva. E a esperança de uma nova vida. Em Blasted, há um milagre também: o instante de vida e a gratidão de Ian, finais. Em Ariel morrem muitos. Os corpos-testemunho do lago Cuura lembram Ezequiel 374:

1. Veio sobre mim a mão do SENHOR, e ele me fez sair no Espírito do SENHOR, e me pôs no meio de um vale que estava cheio de ossos.

2. E me fez passar em volta deles; e eis que eram mui numerosos sobre a face do vale, e eis que estavam sequíssimos.

3. E me disse: Filho do homem, porventura viverão estes ossos? E eu disse: Senhor DEUS, tu o sabes.

4. Então me disse: Profetiza sobre estes ossos, e dize-lhes: Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor.

5. Assim diz o Senhor DEUS a estes ossos: Eis que farei entrar em vós o espírito, e vivereis.

Os corpos das pessoas desaparecidas que se encontravam no fundo do lago Cuura retornam à cidade e evocam o vale cheio de ossos de Ezequiel, 37. Em Ezequiel lembram que o Senhor pede que seja profetizada uma vida nova sobre os ossos. Como os ossos representam a localidade, a profecia servirá para os seus habitantes vivos, e não para aqueles que já morreram há tempo, ou que ainda morrerão no terceiro ato. Ao serem encontrados os ossos, a cidade superará o horror e a perversidade dos crimes hediondos, permitindo a evocação dos que foram vivos. Os corpos-testemunho coletivos de Ariel profetizam renovação e transformação para a comunidade. O tema da religião, da presença e potência divinas são tematizadas na peça, podendo sugerir o resgate das almas.

Afinal, qual o sentido dos corpos-testemunho neste conjunto de peças? Podemos considerar que apontamos para um novo conceito? Minha resposta é afirmativa. Nestas peças pós-modernas, feitas de horror e blasfêmia, violência e perdição, o corpo-testemunho, além de testemunhar as transgressões incompatíveis com a imagem de civilização que os locais em que se passam as peças fizeram de si mesmos, além de corresponder à volta do recalcado, representa a esperança última, a esperança de vida, de redenção, de integridade reconquistada. O corpo-testemunho passa a ser testemunha de redenção, de renovação. É o reconhecimento da alteridade, da diferença. O corpo-testemunho tem a potência de kálos thánatos, a bela morte, que supera a crueldade do cadáver ultrajado. Ele supera o limite de sua singularidade e passa a representar a universalidade dos seres humanos. Esta se particulariza em uma história e em um contexto: a de cada peça teatral. O corpo-testemunho corresponde à memória dos vencidos e humilhados, que repõe o outro, a vida: o irmão. Daí eu achar que é mais do que apenas testemunha de crime. É testemunha da possibilidade auferida de uma transformação a suceder com os sobreviventes — e mesmo de uma abertura para o milagre. Graças à celebração, i.é, ao culto que se torna possível (Ian recebe em certa medida hóstia e vinho; a criança enterrada é fator de frutificação da terra em alimentos). Em Ariel o corpo-testemunho como que exige a punição dos culpados, que não terão o direito à vida. Esta punição corresponderia a um sacrifício ritual legitimado pelo pecado, pela culpa.

As peças em questão são tragédias que, na tradição grega, culminariam com a catarse, de efeito moral e purificador no público. Nas três peças são evocados religião e Deus.

Pode-se definir como religião aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada. Não só não há religião sem separação, como toda separação contém ou conserva em si um núcleo genuinamente religioso. O dispositivo que realiza e regula a separação é o sacrifício: através de uma série de rituais minuciosos, [...] ele estabelece, em todo caso, a passagem de algo do profano para o sagrado, da esfera humana para a divina. É essencial o corte que separa as duas esferas, o limiar que a vítima deve atravessar, não importando se num sentido ou noutro. (AGAMBEN, 2007, p. 59)

Nas três peças a presença do corpo morto marca a passagem — mesmo que momentânea, como em Ariel — do profano para o sagrado, da ocultação para a manifestação, para o aparecimento. Em Blasted — espaço profano por excelência —, já a explosão encaminha a peça — que se passava em Leeds — para uma esfera separada, espacialmente indiciada na peça. Um soldado (de uma guerra que poderia ser da ex-Iugoslávia) invade o espaço do hotel, degrada o que toca, devido à sua fome exagerada, e à sua perda de ética, moral, autocensura, limites. O soldado será fator do máximo horror. Com a mudança de ambiente, a fuga de Cate e com Ian violentado de todos os modos, humilhado, o seu corpo radicalmente profanado, em peça pós-moderna, poderíamos ser levados para o mais radical desespero e a mais absoluta desesperança. No entanto, existe espaço para uma revelação de dimensões desconhecidas em Cate, que acolhe um bebê faminto que fora abandonado, que procura alimentá-lo, sai em busca de comida e acaba alimentando a cabeça de Ian — morto. O ritual da alimentação do fim da peça sublinha o valor simbólico — sagrado — da transformação de Ian. Acentua a revelação do Bem, da Fé, Esperança e Caridade. É a afirmação da potência divina. A potência do ato sagrado — escreve Émile Benveniste (apud AGAMBEN, 2007. p. 60) — reside na conjunção do mito — que narra a história — com o rito, que a reproduz e a põe em cena. Nas três peças estudadas existe um ritual relativo à alimentação, portanto paralelo à tomar a hóstia: o alimento na boca de Ian, em Blasted; o alimento que revive, renasce - trigo, milho, cenouras em Buried Child e em Ariel o renascimento da Palavra de salvação. As histórias das peças estudadas (seus enredos) — ou os mitos, nesse sentido usado por Benveniste — correspondem às características da pós-modernidade, tais como as vê Sandra Luna.

[...] o artista tem sido flagrado como estando a reencenar formas, temas, motivos, discursos, conceitos e valores herdados de uma tradição que ele revisita, reinterpreta, reinventa, valendo-se de estratégias, em maior ou menor grau, irreverentes, transgressoras, desafiadoras [...] (LUNA, 2014, p. 1)

Irreverência, transgressão fazem parte da profanação. Profanados haviam sido os valores digamos que tradicionais da sociedade. Mas a profanação dos valores morais e éticos corresponde à nova religião: o capitalismo.

Segundo Benjamin, o capitalismo não representa apenas, como em Weber, uma secularização da fé protestante, mas ele próprio é, essencialmente, um fenômeno religioso, que se desenvolve de modo parasitário a partir do cristianismo. Como tal, como religião da modernidade, ele é definido por três características: 1. É uma religião cultual, talvez a mais extrema e absoluta que jamais tenha existido. Tudo nela tem significado unicamente com referência ao cumprimento de um culto, e não com respeito a um dogma ou a uma ideia. 2. Esse culto é permanente; é “a celebração de um culto sans trêve et sans merci”. Nesse caso, não é possível distinguir entre dias de festa e dias de trabalho, mas há um único e ininterrupto dia de festa, em que o trabalho coincide com a celebração do culto. 3. O culto capitalista não está voltado para a redenção ou para a expiação de uma culpa, mas para a própria culpa. (apud AGAMBEN, 2007, p. 63)

Agamben prossegue:

Poderíamos dizer então que o capitalismo, levando ao extremo uma tendência já presente no cristianismo, generaliza e absolutiza, em todo âmbito, a estrutura da separação que define a religião. Onde o sacrifício marcava a passagem do profano ao sagrado e do sagrado ao profano, está agora um único, multiforme e incessante processo de separação, que investe toda coisa, todo lugar, toda atividade humana para dividi-la por si mesma e é totalmente indiferente à cisão sagrado/profano, divino/humano. Na sua forma extrema, a religião capitalista realiza a pura forma da separação, sem mais nada a separar. (apud AGAMBEN, 2007, p. 63)

O capitalismo, de maneiras diferentes é re-presentado nas três peças. A separação, que definiria a religião, é explicada por Mircea Eliade como o espaço que não é homogêneo, isto é, diferente do espaço profano, homogêneo.5 “Separação, sem mais nada a separar” corresponde a homogeneizar. Esclareço recorrendo a ensaio de Michael Löwy.

O resultado do processo “monstruoso” de culpabilização capitalista é a generalização do desespero.

[...]

O que o capitalismo tem de historicamente inesperado é que a religião não é mais reforma, mas ruína do ser. (LÖWY, 2006, # 24)

O sagrado introduz a cunha da esperança, juntamente com a fé e a caridade (em termos cristãos, mas com equivalentes em outras religiões). A “religião” capitalista, não. Daí haver com frequência negatividade e desespero em produções culturais marcadas por esta modernidade de sistema econômico. Daí levar tal “religião” para a ruína do ser. Por que ele é produtor de desespero?6 Porque não admite nenhuma alternativa. Culpados de seu próprio destino, os seres não têm direito a nenhuma esperança de expiação, nem de redenção.

Walter Benjamin cita Gustav Landauer, que considera alguns tópicos sobre uma eventual saída para a nefasta religião do capitalismo. Landauer pontua que “para conseguir dar cabo de uma ação contra o capitalismo, é indispensável [...] sair de (heraustreten) sua esfera de eficácia (Wirkungsbereich), porque, no seu interior ele é capaz de absorver toda ação contrária”7. Não nos interessam as soluções econômicas ou políticas neste momento. Entendo que a morte e o corpo morto são introduzidos como uma saída para o mundo capitalista, do consumo, do lucro, do mercado, da prisão. O corpo morto reaparece em cena para simbolizar a encarnação, a redenção, a transformação tornada possível, a comunhão, o perdão — enquanto um dedo sinaliza a esperança que aponta para o sagrado. Não é uma solução para o sistema político-econômico. Mas é uma cunha do sagrado que resgata o que foi ultrajado.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução e apresentação de Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.

AGAMBEN, Giorgio. La potenza del pensiero. Vicenza: Neri Pozza, 2005.

BÍBLIA. Versão: Almeida Revista e Atualizada. Disponível em: <http://biblia.com.br/joaoferreiraalmeidarevistaatualizada/>. Acesso em: 20.05.2015

CARR, Marina. Ariel. Oldcastle, Co. Meath, Ireland: The Gallery Press, 2002.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Tradução Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993, v. II.

KANE, Sarah. Blasted. Tradução Laerte Mello; Revisão Giana Maria Gandini Gianni de Mello. s/n, s/d. Disponível em: <http://docslide.com.br/documents/blasted-sarah-kane.html>. Acesso em: 29.06.2015.

KANE, Sarah. Blasted. s/n, 1995. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/61072107/Sarah-Kane-Blasted#scribd>. Acesso em: 29.06.2015.

LANDAUER, Gustav. Aufruf zum Sozialismus. Berlin: Paul Cassirer, 1919, p. 144.

LÖWY, Michaël. « Le capitalisme comme religion: Walter Benjamin et Max Weber. ». Raisons politiques 3/2006 (nº 23), p. 203-219. Disponível em: <www.cairn.info/revue-raisons-politiques-2006-3-page-203.htm>.

LUNA, Sandra. Dramaturgia e “pós-modernismo” no teatro anglo-americano: ação e caracterização em confrontos paródicos com a tradição. 2014. Projeto (Pós-doutorado) — Faculdade de Letras, Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, Campinas, 2014.

LUNA, Sandra. Dramas do pós-modernismo no teatro anglo-americano. Parodização e “profanação” na cena contemporânea. 2015. Relatório de pesquisa. Universidade Federal da Paraíba. 2015.

MÈLICH, Joan-Carles. “Memoria y Esperanza”. Barcelona: Universidad Autónoma de Barcelona, 2003. Disponível em: <https://pt.scribd.com/doc/64879402/memoria-y-esperanza-Melich>. Acesso em: 20.05.2015.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Lisboa: Guimarães e C.ª, 1984.

SHEPARD, Sam. Buried Child. New York: Vintage Books, 2006.

SHEPARD, Sam. Buried Child: Final Script 12/12/2011. Disponível em: <https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwj_nPTerJnNAhWJlZAKHY_6BJMQFgghMAA&url=http%3A%2F%2Fam774.com%2F12zt%2Fimages%2FBuried%2520Child%2520FINAL%2520Script%252012.12.2011.doc&usg=AFQjCNHF3Omcm-Tp3NCu1rBeHJOMSFkU4g&sig2=bxl1UiwibVHdeCor3r7_tA>. Acesso em: 29.06.2015.

SPERBER, Suzi Frankl. “O espaço do sagrado e a poesia: A outra margem de Drummond”. In: MATOS, Edilene; CAVALCANTE, Maria Neuma et allii (orgs). A presença de Castello. São Paulo: Humanitas, 2003, p. 887-898.

SPERBER, Suzi Frankl. Ficção e Razão — uma retomada das formas simples. São Paulo: HUCITEC/ Aderaldo & Rothschild/ Fapesp, 2009.

VERNANT, Jean Pierre. “A Bela Morte e o Cadáver Ultrajado”. Discursos, n° 9, São Paulo: USP, 1979.


  1. Luna já concluíra que o final da peça apresenta purificação, mas não comenta o corpo-testemunho: “Impressiona como a fragilidade do bebê, sua condição indefesa, o tom benevolente do afeto de Tilden, o aconchego das suas mãos, o ritmo tranquilo do seu discurso, tudo isso converge para subverter o sentido aterrorizante do próprio tabu, afastando por um instante o estigma para exibir no cerne das desventuras o valor incondicional e a sublimidade da vida, ainda que por via de um corpo mortificado em sacrifício. Seja como for, a purificação há de advir ao final da peça, como condição à restauração da ordem. Uma vez desenterrada a verdade, prenuncia-se em cena um doloroso rito de passagem. Vince, o neto, herdará a casa, saltando a geração perdida, enquanto, a pedido do próprio Dodge, seus arreios, cabrestos, martelos, ferros de solda, cinzéis, ferraduras e cravos, instrumentos de ação, opressão e controle sobre a vida natural, serão amontoados numa pilha gigantesca e incinerados no centro de seus campos.” (LUNA, 2012, apud LUNA, 2015, p. 354)

  2. A pulsão de ficção corresponde à necessidade imperiosa de contar o evento vivido para lhe atribuir um sentido, corrigi-lo, entende-lo. (Ver SPERBER, 2009)

  3. “Siguiendo a Reyes Mate, sostenemos que hay dos formas de memoria: la tautológica y la alternativa. En la primera se trata de recordarlo que ya se sabe (Sócrates/Platón).” (MÈLICH, 2003, p. 8)

  4. Agradeço a João Carlos de Souza Ribeiro que me deu esta preciosa referência.

  5. “Para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras. ‘Não te aproximes daqui, disse o Senhor a Moisés; tira as sandálias de teus pés, porque o lugar onde te encontras é uma terra santa.’ (Êxodo, 3: 5) Há, portanto, um espaço sagrado, e por consequência ‘forte’, significativo, e há outros espaços não sagrados, e por consequência sem estrutura nem consistência, em suma, amorfos. Mais ainda: para o homem religioso essa não-homogeneidade espacial traduz-se pela experiência de uma oposição entre o espaço sagrado – o único que é real, que existe realmente – e todo o resto, a extensão informe, que o cerca.” (ELIADE, 1992, p. 17)

  6. « Mais pourquoi est-il producteur de désespoir ? » (LÖWY, 2006, # 27)

  7. « Pour pouvoir accomplir quelque chose contre le capitalisme, il est indispensable, avant tout, de quitter (heraustreten) sa sphère d’efficacité (Wirkungsbereich), parce que, à l’intérieur de celle-ci il est capable d’absorber toute action contraire. » Il s’agit, ajoute-t-il, de remplacer la guerre civile par la Völkerwanderung [20] (LÖWY, 2006, # 42).