GUIMARÃES ROSA: “ESTA É A MINHA MÍSTICA”

Teresinha V. Zimbrão da Silva

Universidade Federal de Juiz de Fora

teresinha.zimbrao@gmail.com

Resumo: Nesse artigo, trabalharemos com duas esferas de conhecimento: Literatura e Mística. Consideraremos determinadas ideias expostas pelo escritor brasileiro, Guimarães Rosa, em entrevistas, cartas e prefácios a fim de explicitarmos alguns aspectos místicos da sua relação com a literatura e a linguagem.

Palavras-chave: Literatura; Mística; Guimarães Rosa

Abstract: In this article, we shall work with two areas of knowledge: Literature and Mystic. We will consider some ideas of Brazilian writer Guimarães Rosa from interviews, letters and prefaces, in order to show mystical aspects of Rosa relationship with literature and language.

Keywords: Literature; Mystic; Guimarães Rosa.

1. INTRODUÇÃO

Sou místico, pelo menos acho que sou.

(ROSA, 2009a, p. XLVII)

Este trabalho é parte de uma pesquisa que tem o objetivo de estudar aspectos místicos da vida e obra de Guimarães Rosa (1908-1967). Note-se que a pesquisa considera a palavra mística no seu sentido amplo. Como lembram os teólogos Leonardo Boff e Frei Betto, “[m]ística é adjetivo de mistério” (BETTO; BOFF, 2010, p. 49), e mistério tem muitos significados, dentre eles, “usa-se a palavra mistério para concluir uma reflexão que esgotou as capacidades da razão” (BETTO; BOFF, 2010, p. 49). Afinal, a realidade é muito maior do que a razão pode compreender, o paradigma da racionalidade é insuficiente para dialogar com todas as dimensões do real.

Contudo, o diálogo não termina por conta desta insuficiência. “Há também outras formas de diálogo, pois as várias culturas e os vários tempos históricos desenvolveram mil formas de conhecimento, seja pelos sonhos, pela intuição, pelos mitos e símbolos, pela reflexão religiosa e filosófica, e outras mais” (BETTO; BOFF, 2010, p. 52). Notemos que o mistério não se opõe ao conhecimento. “Pertence ao mistério ser conhecido. Mas pertence também ao mistério continuar mistério no conhecimento. Aqui está o paradoxo do mistério” (BETTO; BOFF, 2010, p. 52). Por mais que dialoguemos através de mil formas com a realidade, esta continuará misteriosa.

Notemos ainda que o mistério proporciona a experiência mística: aquela atitude profunda de humildade e êxtase face ao que é misterioso na realidade. “Os que experimentam o mistério são os místicos” (BETTO; BOFF, 2010, p. 55) e também os espirituais. “A espiritualidade é uma experiência mística, mistérica” (BETTO; BOFF, 2010, p. 73). Seres místicos e espirituais são, portanto, aqueles sensíveis às dimensões misteriosas do real. Pois, neste trabalho, analisaremos entrevistas, cartas e prefácios de Guimarães Rosa, a fim de explicitarmos alguns aspectos místicos e espirituais da relação do escritor – que até se auto definiu “sou místico” (ROSA, 2009a, p. XLVII) – com a literatura e com a linguagem.

Consideraremos também que Rosa – definindo a si e aos seus livros, como “anti-intelectualistas” (ROSA, 2003, p. 90) e defendendo ainda o “primado da intuição, da inspiração” (ROSA, 2003, p. 90), sobre o “bruxulear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, a megera cartesiana” (ROSA, 2003, p. 90) – é um escritor que se filia a vertentes estéticas que remontam ao Romantismo e ao Simbolismo, estéticas defensoras do retorno ao inconsciente, ao irracional e ao subjetivo, como oposição aos excessos bruxuleantes e presunçosos do racionalismo do mundo ocidental moderno.

2. SEI QUE HÁ MISTÉRIOS DEMAIS...

Sei que há mistérios demais,

em torno dos livros e de quem os lê e de quem os escreve;

mas convindo principalmente a uns e outros a humildade.

(ROSA, 2009b, p. 661)

No prefácio ao seu livro de contos Tutaméia, publicado em 1967, Guimarães Rosa segreda ser um vivenciador de fenômenos espirituais e sobrenaturais: “Tenho de segredar que – embora por formação ou índole oponha escrúpulos crítico a fenômenos paranormais e em princípio rechace a experimentação metapsíquica – minha vida sempre se teceu de sutil gênero de fatos” (ROSA, 2009b, p. 658), e especifica: “Sonhos premonitórios, telepatia, intuições, séries encadeadas fortuitas, toda a sorte de avisos e pressentimentos. Dadas vezes, a chance de topar, sem busca, pessoas, coisas e informações urgentemente necessárias” (ROSA, 2009b, p. 658).

E se a vida de Rosa se teceu de sutil gênero de fatos, como também explicita neste mesmo prefácio, de modo semelhante se deu o processo de criação da sua obra literária. “No plano da arte e criação – já de si em boa parte subliminar ou supraconsciente, entremeando-se nos bojos do mistério e equivalente às vezes quase à reza – decerto se propõem mais essas manifestações” (ROSA, 2009b, p. 658). Rosa sublinha então o aspecto mistérico da criação artística e a compara à reza. E continua: “Talvez seja correto eu confessar como tem sido que as estórias que apanho diferem entre si no modo de surgir” (ROSA, 2009b, p. 658). Eis que mistério, reza e confessar são palavras pertencentes ao campo semântico da mística e espiritualidade e Rosa delas se utiliza para falar de criação literária. Enfim, segue a confissão de Rosa de como suas estórias apanhadas misteriosamente foram cada uma surgindo:

À Buriti (NOITES DO SERTÃO), por exemplo, quase inteira, “assisti”, em 1948, num sonho duas noites repetido. Conversa de Bois (SAGARANA), recebi-a, em amanhecer de sábado, substituindo-se a penosa versão diversa, [...] que eu considerava definitiva ao ir dormir na sexta. A Terceira Margem do Rio (PRIMEIRAS ESTÓRIAS) veio-me, na rua, em inspiração pronta e brusca, tão “de fora”, que instintivamente levantei as mãos para “pegá-la”, como se fosse uma bola vinda ao gol e eu o goleiro. Campo Geral (MANUELZÃO E MIGUILIM) foi caindo já feita no papel, quando eu brincava com a máquina, por preguiça [...]; entretanto, logo me moveu e apertou, e chegada ao fim, espantou-me a simetria e ligação de suas partes. [...] Quanto ao GRANDE SERTÃO VEREDAS, forte coisa e comprida demais seria tentar fazer crer como foi ditado, sustentado e protegido – por forças ou correntes muito estranhas. (ROSA, 2009b, p. 658-659).

Notemos, na descrição de Rosa, o uso de verbos como “apanhar”, “assistir”, “receber”, “cair”, “ditar”, “pegar”, todos dando a entender que as estórias foram lhe surgindo em inspiração pronta e brusca, de modo nem um pouco racional, antes tão misteriosas como uma experiência mística e espiritual. São ainda palavras suas na entrevista de 1965 ao alemão Lorenz: “Não preciso inventar contos, eles vêm a mim, me obrigam a escrevê-los. Acontece-me algo assim como vocês dizem em alemão: Mich reitet auf einmal des Teufel.1 (ROSA, 2009a, p. XXXIX). E em carta de 1963 ao seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, Rosa define a sua escrita como não cerebral e quase mediúnica: “quando escrevi, não foi partindo de pressupostos intelectualizantes, nem cumprindo nenhum planejamento cerebrino cerebral deliberado. Ao contrário, tudo, ou quase tudo, foi efervescência de caos, trabalho quase “mediúnico” e elaboração subconsciente” (ROSA, 2003, p. 89).

Para Rosa, a “vida deve fazer justiça à obra, e a obra à vida”, (ROSA, 2009a, p. XLII). Então, ao se confessar, na carta a Bizarri, um anti-intelectualista, em oposição à megera razão cartesiana, o escritor vai insistir na identidade entre ele mesmo e os seus livros, por sua vez, também anti-intelectualistas: “como eu, os meus livros, em essência, são ‘anti-intelectualistas’ – defendem o altíssimo primado da intuição, da inspiração, sobre o bruxulear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, a megera cartesiana” (ROSA, 2003, p. 90-91). E cita os principais livros da tradição espiritual e filosófica que o influenciaram: “Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e S. Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiroff – com Cristo principalmente” (ROSA, 2003, p. 90-91). Sobre os seus próprios livros, acrescenta a classificação: “Por isso mesmo, como apreço de essência e acentuação, assim gostaria de considerá-los: a) cenário e realidade sertaneja: 1 ponto; b) enredo: 2 pontos; c) poesia: 3 pontos d) valor metafísico religioso: 4 pontos” (ROSA, 2003, p. 90-91).

É verdade que Rosa entra aqui em contradição: denigre a razão, mas se utiliza de um processo racional, a pontuação numérica, para classificar os seus livros. Mas o que importa que notemos neste momento é o seu propósito de acentuar o valor metafísico religioso da sua obra e as influências espirituais e filosóficas que recebeu. A importância da temática espiritual na obra de Rosa também é sublinhada por Suzi Sperber que pesquisou a biblioteca do escritor:

Desses 2000 livros, ao redor de 200 podem ser chamados livros espirituais. O próprio Guimarães Rosa disse a Eduardo Bizzarri que os temas espirituais lhe eram os mais importantes, o que fica amplamente confirmado pela existência de uma pasta preparada para publicação sob o rótulo “Revivência”, contendo apenas textos espirituais. (SPERBER, 1977, p. 17)

Pois notemos, portanto, que alguns aspectos místicos e espirituais da vida e obra de Guimarães Rosa, além de terem sido confessados pelo próprio escritor, constituem tema que já foram estudados pela crítica literária, sobretudo no que diz respeito às correlações entre esta obra e as leituras espirituais rosianas, trabalho desenvolvido de modo muito produtivo por Sperber. O que aqui estamos acrescentando é a explicitação do aspecto místico da relação de Rosa com a literatura e a linguagem. Estamos revelando a face do escritor que declara saber dos muitos mistérios ao redor dos livros, de quem os lê e de quem os escreve, mas convindo a uns e outros a humildade.

3. VEJA COMO O MEU CREDO É SIMPLES...

Mesmo com a melhor boa vontade

Não posso fazer mais confissões,

porque tudo o que possa me acontecer na vida está contido aí,

ou não vale a pena ser chamado de confissão.

(ROSA, 2009a, p. XLII-XLIII).

Na longa entrevista ao alemão Günter Lorenz em janeiro de 1965, Guimarães Rosa discursou sobre muitos temas. Instigado a confessar o seu credo como escritor, sublinhou: “cada homem tem seu lugar no mundo e no tempo que lhe é concedido. Sua tarefa nunca é maior que sua capacidade para poder cumpri-la. Ela consiste em preencher seu lugar, em servir à verdade e aos homens” (ROSA, 2009a, p. XLII). Notemos que Rosa se utilizou então de palavras como confissão, credo e verdade que pertencem mais ao campo semântico da espiritualidade do que da literatura. E ainda especificou: “Conheço meu lugar e minha tarefa; muitos homens não conhecem, ou chegam a fazê-lo quando é demasiado tarde. Por isso, tudo é muito simples para mim, e só espero fazer justiça a esse lugar e a essa tarefa” (ROSA, 2009a, p. XLII).

Humilde diante do mistério da vida e se propondo a servir à humanidade e a fazer justiça à verdade, quase concluiu: “Veja como o meu credo é simples” (ROSA, 2009a, p. XLII), mas ressaltou um dado importante: “quero ainda ressaltar que credo e poética são uma mesma coisa” (ROSA, 2009a, p. XLII). Defendendo a identidade entre o credo do homem e a poética do escritor, insistiu: “Não deve haver nenhuma diferença entre homens e escritores” (ROSA, 2009a, p. XLII). Notemos que não se trata de biografismo, mas da defesa da ideia de um continuum vida-obra: “A vida deve fazer justiça à obra, e a obra à vida” (ROSA, 2009a, p. XLII). Concluiu, enfim: “explic[o] meu compromisso, meu compromisso do coração” (ROSA, 2009a, p. XLII), a literatura “tem de ser a voz daquilo que eu chamo ‘compromisso do coração’” (ROSA, 2009a, p. LII). Misturando semanticamente literatura e espiritualidade na sua confissão, ainda disse: “Outras regras que não sejam este credo, esta poética e este compromisso não existem para mim, não as reconheço” (ROSA, 2009a, p. XLII).

Pois sensível aos muitos mistérios em torno dos livros, de quem os lê e de quem escreve, eis a confissão, o credo, a poética, o compromisso do coração, de servir à verdade e à justiça do escritor e do homem Guimarães Rosa, identidade que este defendeu com paixão nesta entrevista, atribuindo a suposta distinção entre homens e escritores a “uma maldita invenção dos cientistas” (ROSA, 2009a, p. XLII), por demais racionais. Pois este compromisso do coração é um dado deveras importante para se entender melhor a relação do escritor com a linguagem.

Sobre esta relação específica, Rosa comentou haver dois componentes de igual importância em sua relação com a língua: “Primeiro: considero a língua como meu elemento metafísico, o que sem dúvida tem suas consequências” (ROSA, 2009a, p. XLIX). E prosseguiu: “Depois, existem as ilimitadas singularidades filológicas, digamos, de nossas variantes latino-americanas do português e do espanhol, nas quais também existem fundamentalmente muitos processos de origem metafísica” (ROSA, 2009a, p. XLIX). Rosa definiu esta metafísica como “muitas coisas irracionais, muito que não se pode compreender com a razão pura” (ROSA, 2009a, p. XLIX). Pois a língua não é somente “o espelho da existência, mas também da alma” (ROSA, 2009a, p. LVI). Notemos que metafísica, nesta definição de Rosa, está mais próxima da semântica da mística e espiritualidade do que da filosofia.

Para Rosa, “o português-brasileiro é uma língua mais rica, inclusive metafisicamente, que o português falado na Europa” (ROSA, 2009a, p. XLIX), sublinhou ainda o fato de que é incalculável o seu enriquecimento por razões etnológicas e antropológicas, resultantes da mistura com elementos indígenas e negroides. O português brasileiro “tem a vantagem de que seu desenvolvimento ainda não se deteve; ainda não está saturado. Ainda é uma língua jenseits Von Gut und Bösel [sic]2” (ROSA, 2009a, p. XLIX).

Notemos o quanto Rosa, ao falar da sua relação com a língua, misturou de novo os campos semânticos de literatura, mística e espiritualidade. E sem desconsiderar todo o seu trabalho sobre a língua - de limpar cada palavra das impurezas da linguagem para reduzi-la ao seu sentido original - insistiu na importância ainda maior da metafísica: “Mas ainda mais importante para mim é o outro aspecto, o aspecto metafísico da língua, que faz com que minha linguagem antes de tudo seja minha” (ROSA, 2009a, p. LI). O que ele já havia explicado na entrevista: “quero voltar cada dia à origem da língua, lá onde a palavra ainda está nas entranhas da alma, para poder lhe dar luz segundo a minha imagem” (ROSA, 2009a, p. LIII). Assim, como Deus deu luz ao homem segundo a sua imagem, Rosa, apropriando-se misticamente da metáfora da criação divina, autodefiniu-se dando luz à palavra segundo a sua imagem.

E, seguindo o seu compromisso do coração, de servir à verdade e aos homens como escritor e também como homem, Rosa que já havia defendido um continuum obra-vida, agora defendeu um continuum linguagem-vida: “Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só.” (ROSA, 2009a, p. LI). Diante dos muitos mistérios ao redor do continuum linguagem-vida, Rosa já havia confessado na entrevista: “Estou buscando o impossível, o infinito” (ROSA, 2009a, p. XLIX). E esta busca dificultosa se dá através do idioma: “O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas” (ROSA, 2009a, p. LI). Humilde, assumiu sua responsabilidade: “Daí resulta que tenha de limpá-lo, e como é a expressão da vida, sou eu o responsável por ele, pelo que devo constantemente umsorgen3 (ROSA, 2009a, p. LI). Para Rosa, o escritor tem o compromisso do coração de cuidar da língua, soprar-lhe a poeira de cinzas mortas para que ela, porta para o infinito, expresse de novo a vida.

Instigado a se pronunciar a respeito de já ter afirmado que, ao escrever, estava, na verdade, querendo se aproximar demasiado de Deus, e a relação disto com a língua, Rosa insistiu: “Isto provém do que eu denomino a metafísica de minha linguagem” (ROSA, 2009a, p. LII). E explicou: “No fundo é um conceito blasfemo, já que assim se coloca o homem no papel de amo da criação” (ROSA, 2009a, p. LII). A criatura arroga-se a blasfêmia de ter o direito de também criar e de se aproximar assim do criador: “O homem ao dizer: eu quero, eu posso, eu devo, ao se impor isso a si mesmo, domina a realidade da criação” (ROSA, 2009a, p. LII). Comparando-se ao cientista, criatura que também tem a arrogância de corrigir o criador, Rosa continuou: “Nós, o cientista e eu, devemos encarar a Deus e o infinito, pedir-lhes contas, e, quando necessário, corrigi-los também, se quisermos ajudar o homem” (ROSA, 2009a, p. LII). Retomando o seu compromisso do coração, defendeu: “O bem-estar do homem depende do descobrimento do soro contra a varíola e as picadas de cobras, mas também depende de que ele devolva à palavra seu sentido original.” (ROSA, 2009a, p. LII).

E revelou o cerne do seu credo como escritor: “Meditando sobre a palavra, ele se descobre a si mesmo. Com isto repete o processo da criação”. (ROSA, 2009a, p. LII). Não só cria ao escrever, como também se recria como homem, devolvendo a si e à palavra, com a sua meditação criadora, o seu sentido original. Sustentando, portanto, a relação entre meditar-escrever, conhecer-se e criar, defendeu-se: “Disseram-me que isto era blasfemo, mas eu sustento o contrário.” (ROSA, 2009a, p. LII). E concluiu com a humildade do servo místico diante dos muitos mistérios em torno da vida, dos livros e dos homens: “Sim! a língua dá ao escritor a possibilidade de servir a Deus corrigindo-o, de servir ao homem e de vencer o diabo, inimigo de Deus e do homem” (ROSA, 2009a, p. LII). E, de novo, o compromisso do coração, a língua como arma para vencer o diabo e ajudar o homem: “A impiedade e a desumanidade podem ser reconhecidas na língua. Quem se sente responsável pela palavra ajuda o homem a vencer o mal” (ROSA, 2009a, p. LII), superar o diabo, servir à verdade e à justiça e assim “conseguir uma humanidade sem falsidades” (ROSA, 2009a, p. LX). E confessou: “Minha língua, espero que por este sermão você tenha notado, é a arma com a qual defendo a dignidade do homem.” (ROSA, 2009a, p. LV). Notemos que sua confissão se assumiu aqui explicitamente como sermão, no qual, ainda defendeu: “Somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo.” (ROSA, 2009a, p. LVI). E concluiu sua confissão-sermão sobre a sua relação com a língua, apropriando-se misticamente da metáfora bíblica: “Deus era a palavra e a palavra estava com Deus”. (ROSA, 2009a, p. LVI).

4. ESTA É A MINHA MÍSTICA...

A língua é a porta para o infinito, para a travessia da solidão. Meditando sobre a palavra, voltando às suas origens nas entranhas da alma e dando-lhe luz segundo a sua imagem, o escritor se conhece, cria e recria a palavra e a si mesmo ao meditar-escrever. Descobre, enfim, na solidão infinita de sua meditação criadora que o diabo não existe e que é possível a felicidade e a renovação do mundo. Eis que diante dos muitos mistérios em torno dos livros, de quem os lê e de quem os escreve, cabe ao escritor assumir com humildade sua infinita responsabilidade para com a palavra, seu compromisso do coração com a literatura, e assim ajudar o homem a vencer o mal e renovar o mundo, colaborando com a arquitetura da alma de uma humanidade sem falsidades, servidora da verdade e da justiça, capaz, portanto, de alcançar o infinito da felicidade. Em suma: “Apenas na solidão pode-se descobrir que o diabo não existe. E isto significa o infinito da felicidade. Esta é a minha mística.” (ROSA, 2009a, p. XLI).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eis então o trabalho sobre Guimarães Rosa, a partir do diálogo entre Literatura e Mística. Esperamos ter conseguido estabelecer relações pertinentes através da análise de entrevistas, cartas e prefácios rosianos, e que tenhamos explicitado de fato alguns aspectos místicos da relação de Rosa com a literatura e a linguagem.

REFERÊNCIAS

ROSA, Guimarães. Ficção Completa, vol. I. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009a, 826p.

ROSA, Guimarães. Ficção Completa, v. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009b, 1167p.

ROSA, Guimarães. João Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, 207p.

SPERBER, Suzi. Caos e Cosmos: leituras de Guimarães Rosa. São Paulo: Duas Cidades, 1976, 210p.


  1. “De repente o diabo me cavalga”.

  2. Título original do livro Além do bem e do mal, de Nietzsche, cuja grafia correta é Jenseits von Gut und Böse.

  3. “Cuidar dele”.