CRÍTICA DA CULTURA DO DÉFICIT DE ATENÇÃO
(trechos selecionados)
Christoph Türcke
Universidade de Leipzig
Tradução de Eduardo Guerreiro Brito Losso
Universidade Federal do Rio de Janeiro
edugbl@msn.com
Tradução de José Pedro Antunes
UNICAMP
zepedro@fclar.unesp.br
Seleção e organização de Eduardo Guerreiro B. Losso
Resumo: Os trechos do livro Hiperativos! Crítica da cultura do déficit de atenção (Hyperaktiv! Kritik der Aufmerksamkeitsdefizitkultur) selecionados examinam a ligação essencial entre a faculdade de atenção, a imaginação e o surgimento do sagrado no processo de hominização. A reflexão sobre as origens do espaço mental humano enfatiza o papel dos “pronomes demonstrativos itinerantes” para a formação da atenção e seu nexo com a experiência da epifania. Manifestações atuais de culto religioso em práticas profanas e inevitáveis contaminações profanas em esferas sagradas corroboram o nexo originário entre atenção e epifania na atividade ritual.
Palavras-chave: atenção; imaginação; pronomes demonstrativos; epifania; sagrado
Abstract: The excerpts of the book Hyperactive! Critique of attention deficit culture (Hyperaktiv! Kritik der Aufmerksamkeitsdefizitkultur) selected examine the essential link between the faculty of attention, the imagination and the emerging of the holy in the process of human evolution. The reflection on the origins of human mental space emphasizes the role of “wandering demonstrative pronouns” for the formation of attention and its nexus with the experience of epiphany. Current manifestations of religious worship in secular practices and inevitable profane contamination in sacred spheres corroborate the originary link between attention and epiphany in ritual activity.
Keywords: attention; imagination; demonstrative pronouns; epiphany; holy
Trechos retirados do livro TÜRCKE, Christoph. Hyperaktiv! Kritik der Aufmerksamkeitsdefizitkultur. Munique: Beck, 2012.
A atenção se tornou algo especificamente humano quando começou a durar mais que o respectivo estímulo a afetar o sistema nervoso. E isso teve início exatamente quando coletivos de hominídeos começaram a cobrir, com a imaginação de uma instância mais elevada, a repetição compulsiva do horror experimentado. A atenção, que cabe a esta instância, não é apenas reação a um estímulo. Ela é interesse em algo de permanente: algo de sagrado. O sagrado, a princípio, não é senão horror sacralizado: um horror que surge como poder protetor; do qual não se foge, antes busca abrigo junto dele. Vor dem mir graut, zu dem michs drängt (“O que eu temo é o que me atrai.”): eis a formulação de Rudolf Otto para o sagrado. Ele não tinha consciência de que, com isso, ao mesmo tempo estava a produzir uma ótima definição de compulsão à repetição traumática. Teve notícia de Freud tão pouco quanto Freud deve dele, embora, sob a impressão da Primeira Guerra Mundial, e de pontos de partida contrários, ambos estivessem a elaborar problemas muito semelhantes.
E ainda nós devemos uma expressão muito feliz ao psicólogo da religião Otto. Os deuses do deserto da antiguidade árabe, ele uma vez casualmente os denominou “pronomes demonstrativos itinerantes". É uma formulação chave para a arqueologia da atenção. O indicador esticado em direção a algo é um arquétipo da atenção. O pronome demonstrativo (‘da’, ou ‘jetzt’) é apenas uma palavra para esse gesto, no início nem isso sequer, simplesmente um som excitante, uma interjeição. E “da” (aí) e “jetzt” (agora) não estão ainda claramente dissociados. O demonstrativo é um agora existente (jetzt Daseiendes), que faz empalidecer tudo o mais em sua proximidade. Ele tem caráter de ordem categórica (“preste atenção”, “olhe para cá”), é algo absolutamente presente ou, teologicamente falando, uma epifania. Pronomes demonstrativos itinerantes, ao contrário, sobrevivem ao presente. São sedimentos duradouros do horror vivido numa coletividade. Acompanham-no de forma latente e possuem uma configuração sonora fixa, passível de repetição. Quando a compulsão coletiva à repetição do vivido se torna irresistível, eles tornam-se, de novo, presentes: em mais uma epifania.
Essa duração e essa regularidade não surgem por si mesmas. Para isso se requer memória: a capacidade de representar coisas passadas. O verbete latino repraesentare não significa, de fato, outra coisa senão “tornar de novo presente”. E por que é representado o horror passado? Porque, de um determinado ponto de vista, ele não é passado. Ele continua a torturar incessantemente. Por isso, sua representação. Ela o traz de volta. Mas não literalmente. No lugar do horror original, que assalta pavorosamente do exterior, um horror autopromovido entra em cena, tomado, celebrado às próprias custas. É tão-somente uma imagem do original. Toda recordação é imagem do irrecuperável. E rituais sacrificiais são imagens, imagens até mesmo bastante movidas e moventes: encenação do horror passado. Elas dão uma representação dele – como mais tarde trupes de atores darão do vingador Orestes ou do Tirano Édipo. A representação original é performativa, teatral. A representação mental já é um sedimento esquemático – e a princípio certamente esquematizado –, um sedimento interior: recordação de segundo grau. Mas, em todo caso, lembrar significa elaborar a posteriori. E, a princípio, o horror passado foi reelaborado para que cessasse. O passado deveria definitivamente passar: não teria mais que ser recuperado, não precisaria mais ser lembrado.
A recordação surgiu na tentativa de esquecer. A tentativa fracassou redondamente, mas nenhum fracasso foi mais bem-sucedido do que esse. O Homo sapiens deve a ele sua memória específica. Desativar o horror vivido pelo re-buscar [Wieder-Holen] sem resíduo foi um malogro. Mas, no caso, outra coisa foi lograda: a posterior elaboração e reelaboração do vivido em representações interiores ou representantes, que pouco a pouco conseguiram assim abafá-lo, amenizá-lo, transformá-lo, a ponto de ele se tornar suportável, para não dizer, familiar; de certo ponto de vista, interessante, atrativo, estimulante ou até mesmo gratificante. O re-buscar [Wieder-Holen] transfere o vivido imediatamente a outro estado agregado, a imagens interiores e esquemas, que conferem a qualquer outra vivência uma armação, constituindo o assim chamado mental: o equipamento especificamente humano de elaboração da realidade. Esse equipamento domina como nada antes dele a arte da ação posterior. Ele segue elaborando estímulos cujo impulso inicial há tempos se apagou, e realiza assim performances de conversão fomentadoras de cultura. Do horroroso “aqui e agora” [“Jetzt da”], que como violência natural se abatia sobre um coletivo de hominídeos e os punha em dispersão, agitados, aos gritos, balbuciantes, ela faz pouco a pouco um duradouro aí [Da], que se estende sobre o coletivo como um estandarte – como poder mais elevado em cujo regaço ele se reúne. De interjeições ela faz sucessivamente “pronomes demonstrativos itinerantes” – pontos fixos da atenção coletiva.
Fixar a atenção para além do instante: toda criança aprende isso hoje. Mas tal habilidade só se tornou tão fácil depois de milênios. Nos primórdios da humanidade, estava entre as coisas mais difíceis. Era algo que não existia ainda em parte alguma na natureza. Apenas coletivamente ela podia entrar em andamento: quando a repetição compulsiva, ritualizada do horror vivido se direcionava a algo mais elevado – a um destinatário comum. Sua imaginação foi equivalente tanto à inauguração do espaço mental quanto à constituição da atenção humana. E somente ao fortalecerem-se, no exercício da imaginação, todos os membros do coletivo, mutua e incessantemente, só ao remeterem-se conjuntamente ao terceiro por eles distinguido e imaginado, ao “apontarem”-no uns aos outros (o sugestivo gesto do dedo indicador esticado, no caso, não pode ser subestimado), foi que sua imaginação pode se consolidar paulatinamente. Os primeiros pontos fixos da atenção humana são idéias fixas: destinatários do sacrifício. Eles são o absolutamente pretendido: o sagrado, que promove sentido, ao garantir refúgio e salvação.
O sagrado é imaginário e, não obstante, não é mera invenção. O horror é uma amarga realidade natural; sua sacralização, sua conversão em um refúgio, não foi senão obra da imaginação, com a qual teve início o trabalho mental. A atenção especificamente humana constituiu-se na aprendizagem de prender-se a algo, razão única para que se manifestasse o sagrado. Mas tendo-se estabelecido como modo de comportamento humano, em que todo rebento do Homo Sapiens começou a crescer, ela pode então separar-se do sagrado e direcionar-se a tudo quanto fosse possível: variados contextos profanos, que se emanciparam do sagrado e deram início a sua vida própria. E, no entanto, nos duradouros milênios desse processo de separação, ela não se livrou da marca de nascença de seu surgimento. Como sempre, ela tem que se prender a algo, que é estruturado à semelhança do seu campo de visão: com um foco central nítido e margens difusas. O objeto da minha atenção me determina, mas ele consiste em algo que me afeta, e isso em raríssimos casos é uma coisa ou elemento isolado. Instruções como “concentre-se exatamente no ponto preto no alto à direita” provêm do repertório do experimento moderno e são isolações artificiais e tardias de atenção, que ninguém suporta muito tempo. Comumente, trata-se de coisas isoladas em seu meio. A atenção se conforma com constelações, figuras, formas progressivas. Seus objetos são unidades de significado. Ela constrói essas unidades, mas de elementos que para ela significam alguma coisa. [...]
Com efeito: quando hominídeos se tornaram seres humanos, quando deixaram de repetir por tanto tempo e de modo meramente coletivo e por reflexo o que, em erupção traumática, a violência natural lhes causara anteriormente, e passaram a dar a essa repetição uma interpretação, um para quê, um destinatário sagrado, nesse momento, como acima foi mostrado, eles realizaram a passagem do comportamento diádico para o triádico. Com essa passagem, abriu-se o espaço mental para o espaço imaginário do sagrado. Permitir que os companheiros da tribo lhes apontassem esse sagrado, apontá-lo aos demais, um ao outro “mostrar” e aprender conjuntamente a “ver” esse sagrado, como se ele tivesse a visibilidade de montanhas, bosques, animais ou rios: isso se apresentou como o trabalho mental elementar, a ruptura para a imaginação, que a princípio não era distinta da alucinação. Alucinação, como mostrou Freud no sonho, é “atividade primitiva do pensamento”. E a fixação comum do alucinado, sua estabilização em “pronomes demonstrativos itinerantes”: essa foi a constituição da atenção especificamente humana. [...]
Só quando a atenção é partilhada e conjuntamente dirigida a uma coisa é que o bebê adota um comportamento especificamente humano. O potencial ele já traz consigo. Teve mais de cem mil anos para precipitar-se no aparato de elaboração da realidade humana, até que de modo inalienável a ela pertencesse. É história naturalizada que, hoje, depois de nove meses, toda criança saudável começa a reatualizar. Para isso, não tem mais necessidade do sagrado. A verdade é que está cercada de adultos que, por meio de palavras e gestos, chamam-lhe a atenção para coisas inteiramente profanas: um brinquedo, um animal, um raio de luz. E o fato é que este primeiro tornar-se atento a algo, o surpreendente persistir em algo, é um momento de dedicação, na verdade, de devoção, ao qual ela dificilmente teria podido chegar se não tivesse sido antes exercitada no sagrado. Vislumbrou-o Nicole Malebranche, ao chamar a atenção de “uma oração natural” («L’attention de l’esprit est donc une prière naturelle, par laquelle nous obtenons que la Raison nous éclaire.» (Atenção do espírito é então uma oração natural, pela qual se alcança a iluminação da razão). Orar significa dirigir conjuntamente os pensamentos e as palavras a um poder superior e, assim, buscar sua proteção. É preciso ter aprendido já a orar em comunidade, antes de fazê-lo à parte, a sós. Não é diferente com a atenção. Só é possível aprendê-la em comunidade. Mais ainda: somente pela atenção é que se aprende a comunidade especificamente humana. Fato é que o bebê desde o primeiro dia busca comunidade, quando procura o calor e o peito da mãe. Mas essa espécie de comunidade, todos os mamíferos tratam de buscá-la. Especificamente humana, porém, a comunidade só se torna quando um terceiro a promove. Proximidade humana, não apenas físico-emocional, entre os pais e a criança, requer que se voltem conjuntamente a algo que conjuntamente os cative. Por isso, a contemplação conjunta de livros de gravuras, o paciente e repetido nomear dos objetos, recitar ou ler em voz alta textos para crianças pequenas, tudo isso tem importância inestimável. Trata-se, no caso, de nada menos que ritos de iniciação, os quais, de um modo específico, acolhem as crianças na comunidade humana desde o nascimento. [...]
Os jovens, que em seus quartos penduram grandes posters de seus ídolos pop, que em seus fones de ouvido só ouvem a música deles, que no penteado e nas roupas querem ter com eles a maior semelhança possível e, engajadamente, imiscuir-se em seus fãs-clubes na internet: fazem algo diferente de movimentar-se num espaço litúrgico, provido de ícones e reunir-se com outros em torno de um santo? Os fãs, que com seu time de futebol custeiam a dispendiosa viagem ao estádio inimigo, vestidos das cores de seus emblemas e munidos de instrumentos de sopro e percussão, que se somam a sua altissonante e violenta torcida necessária: não se lançam numa peregrinação? Joalherias e butiques não encenam suas vitrines como espaços sagrados, as joias como relíquias, os cachecóis como toalhas de altar? Pseudorreligiosos são considerados esses fenômenos, em todo caso, do alto pedestal das grandes religiões estabelecidas, que só reconhecem como «religioso» o que serve a seu Deus e ignoram quantos jovens mantêm com seus ídolos uma relação mais ardente do que, digamos, um ou outro teólogo rotineiro com Jesus Cristo.
Quão religiosas são, porém, as próprias religiões universais? Eminências eclesiásticas, por exemplo, deixam que suas viagens sejam organizadas de modo semelhante às turnês dos ídolos pop; contratam agências de propaganda, cujo cristianismo eles não põem à prova; complacentemente toleram o merchandising em torno de sua pessoa e não expulsam os vendilhões dos entornos de seu templo. Eles dirigem corporações públicas [Körperschaften öffentlichen Rechts] e, tal qual instituições profanas, contratam e despedem pessoal de acordo com a situação econômica. Não existe mais esfera sagrada que não seja profundamente permeada pelo profano, como, ao contrário, não existe espaço profano imune, destituído de quaisquer sedimentações sacras. A mútua interpenetração de sagrado e profano, bem como de valores e estruturas, precisa levar em conta quem seriamente quer se engajar no contexto multicultural da atualidade. Isso a disciplina Estudos Rituais faria com mais abrangência e profundidade do que tudo quanto até aqui tem sido sugerido.