RICARDO MARQUES
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL
Palavras-Chave: Poesia Contemporânea; Literatura Portuguesa; Modernidade; Poiesis.
Key Words: Contemporary Poetry; Portuguese Literature; Modernity; Poiesis.
No filme Esther Kahn, lançando mundialmente no fim de 2000 e baseado num conto de Arthur Symons, há um diálogo excepcionalmente interessante entre a protagonista, Esther, e o seu professor de teatro, Nathan, interpretado por Ian Holm. No começo das lições, este revela a Esther o que é a regra principal para se fazer teatro, para se ser um grande actor: fazer os outros acreditar, porque no fim é para isso que se vai ver uma peça. Para tal, há que encontrar um perfeito equilíbrio entre a mentira que se tem de contar de forma real, e a realidade que se tem de passar de forma a não trair o público, a verosimilhança.
Serve este diálogo que nem luva para a outra arte que é a Literatura, bem como para este novo livro de Miguel Martins (MM), naquele que é para nós um dos mais sinceros registos do ano. Se a encenação do eu, já dizia T.S. Eliot num famoso ensaio, é o princípio que está na base do modo lírico, então encontramos aqui nestas cinquenta e sete páginas o caminho por excelência do poético, por meio de variadas subversões. Vejamo-las em pormenor.
Em primeiro lugar, a subversão da macha gráfica – em vez de optar pelo verso clássico, MM aprofunda ainda mais a sua propensão para a narração com o uso de uma prosa poética, que se presta muito mais ao discurso e à prosódia que utiliza (algo que é marca de estilo e que vem continuado de outros livros, como O Taberneiro, edição rara da extinta livraria Poesia Incompleta, de 2010).
Em segundo lugar, o título; lembro que este autor já se havia camuflado por baixo da suposta aparência de “lérias” (Averno, 2011) para nos mostrar a sua visão das coisas mais importantes da vida e que, no fundo, é a matéria poética de qualquer autor. Aqui, outro título de uma só palavra – Cotão – remete-nos para a desconstrução de ideias feitas, o ‘cotão’ que fica do passar e repassar dos pés na casa onde poesia e a vida habitam. No longo texto inicial (pp. 9-11), aponta-nos MM nessa mesma direcção:
A realidade, sabe-o, é inteirinha dentro de si, e só. Isto aqui é bazófia, cotão. A sua vida, essencialmente, também é lá dentro. A sua vida é a sua arte e só sabe ser vista pelos seus olhos. O que cria é bazófia, cotão. O poeta é uma ave metálica, esguia como um arame, que veio a pique desde a ionosfera e parou um milímetro de embater no chão, mesmo quando se apresenta desfigurado pelo raciocínio.
Falava há pouco de subversões. Creio que outra forma de subversão em Cotão atesta-se na própria forma como esta matéria poética é referenciada, na forma como é imiscuído num discurso cuidado, sem qualquer pudor, temas e marcas de oralidade e jargão de rua sem haver nisso qualquer despropósito. Na impossibilidade de salientar vários momentos altos, gostaria de transcrever na íntegra apenas um poema, um dos mais belos do livro (p. 27):
Projecto de vida: Construir uma jangada. Descer um rio calmoso interminável. Alimentar-me das margens: figos de piteira, bagas, codornizes assadas no espeto ou sobre pedras quentes. Ser sempre Primavera - possuir apenas uns calções ligeiros, uma faca. Ser senhor de mim ou nem sequer. Ter o rio por espelho e desabituar-me disso. Esquecer os conluios do carvão e do aço. Assobiar melodias sem história. Foder com a água; depois, orar às estrelas. Saber que é na finitude da vida que reside a sua eternidade. Saber distinguir os sabores de oitenta águas. Saber embebedar-me com ares cegos e brisas e conversar com uma índia ou um cão incorpóreos. Morrer só, devagar, e decompor-me completamente entre chuvas e ramos de salgueiro.
Como vemos, parece haver neste livro um espírito de confronto de duas premissas antagónicas, não no sentido platónico de as resolver numa lei final (apesar de se notar em todo o livro a apetência por formas verbais conjugadas no imperativo) mas sim apenas pelo puro prazer de as confrontar, revelando a validade de cada uma delas. Esta atitude, creio, revela uma tomada de posição contra o maniqueísmo declarado, mostrando que a verdadeira aprendizagem é a de reparar que as coisas são espelho umas das outras. Atentemos, a título de exemplo, nesta página da parte final (p.54), onde quatro aforismos poéticos aparentemente não relacionados, acabam por se relacionar entre si na atitude poética:
Calço o 46. Recuso-me – determinantemente – a usar sapatos 38. Sobretudo, quando há quem, calçando o 38, ande com sapatos 46.
Só revolucionando se restaura a ordem. Do mesmo modo, o suicídio é uma vitória indirecta sobre todas as nossas derrotas.
Gosto de não gostar. Sobretudo, de paradoxos.
Só os suicidas merecem viver.
Faz sentido, assim, que haja uma ligeira intertextualidade para com a obra de outro grande poeta subversivo, Alberto Pimenta, quando, no longo texto que vai da página 21 à 22, se escreve um outro Discurso sobre o Filho da Puta (publicado originalmente pela Teorema em 1980).
Há ainda um último aspecto deste lado subversivo do autor que poderia ser encarado como uma propensão meta-poética provocatória. Esta acontece de uma forma mais ou menos velada um pouco por todo o livro, na medida em que a reflexão sobre o fenómeno poético (e literário, de uma forma geral) surge vinculada ao próprio fazer poético: dito por outras palavras, estamos perante uma prosa que classificamos de poética porque MM escolhe que essa não seja uma prosa qualquer. Mas desengane-se o leitor que pense que essa provocação é feita de forma gratuita, já que, como vemos neste pequeno excerto (p. 23),
Escrever é uma coisa muito séria. Para escrever é preciso estar morto. Escrever é, em certo sentido, o contrário de viver. É viver por fora, para sentir por dentro. E nem é, exactamente, pensar. Não prepara a acção. Prepara, quando muito, a morte alheia. Embala. Reverte à infância, a caminho do útero. Da cova. […]
Seria pouco dizer que este é um dos melhores livros do prolífico Miguel Martins, naquilo que tem de registo autobiográfico, de saber poético e metapoético e de experiência da realidade. Dizia a início, com o exemplo do teatro, que a realidade, tal como já deixou Aristóteles escrito há muito tempo, é um objecto estranho e físico (tanto assim que é um assunto tratado num dos doze volumes intitulados Metafísica), na medida em que é necessário o conhecimento para escrever boa poesia. Em Cotão, essa simbiose está bem patente, criando Miguel Martins uma indissociação deveras poética num livro sobre a realidade, isto é, a experiência.