TEATRO E PÓS-MODERNISMO
Olivier Neveux
Université Lyon 2/ ENSATT
Tradução de Alexandre Rosa
PPG de Letras Neolatinas (francês) — UFRJ
Resumo : A partir das investigações de Hans-Thies Lehman e Frederic Jameson este artigo trata de refletir sobre as disputas políticas que a ideologia pós-modernista e as estéticas pós-dramáticas impõem às formas teatrais contemporâneas. Toma-se por corpus as teatralidades europeias e reflete sobre as mutações (militantes, afetivas etc.) que resultam dessa mudança de período assim como que formas pode em consequência assumir — ou, antes, não assumir — as obras que cuidam de manter viva qualquer dissidência.
Palavras-chave: teatro político, pós-modernismo, o teatro pós-dramático, Lehman, Jameson
Resumé : Informé des apports d'Hans-Thies Lehman et de Fredric Jameson, il s'agit dans cet article de réfléchir aux enjeux politiques que l'idéologie postmoderniste et les esthétiques postdramatiques imposent aux formes théâtrales contemporaines. Ce travail prend pour corpus les théâtralités européennes et réfléchit aux mutations (militantes, affectives, etc.) qu'entraîne ce changement de période ainsi qu'aux formes que peut en conséquence prendre — ou plutôt ne pas prendre — des oeuvres soucieuses de maintenir vives quelques dissidences.
Mots clés: théâtre politique, postmodernisme, théâtre Postdramatique, Lehman, Jameson
Foi necessário esperar 2007 para que fosse publicada em língua francesa a importante obra do crítico e teórico marxista Frederic Jameson, Le postmodernisme ou la logique culturelle du capitalisme tardif,1 publicado nos Estados-Unidos em 1991 — o texto inicial do autor, La logique culturelle du capitalisme tardif, data de 1984. O livro começa por um aparente paradoxo: “uma tentativa de pensar o presente historicamente numa época que, acima de tudo, se esqueceu de como pensar historicamente”.2 Esse poderia ser o método de Jameson que, longe de condenar o pós-moderno, tenta apreendê-lo e compreendê-lo. Essa “História” ausente não é sem consequência, como observava o filósofo e militante Daniel Bensaïd: “com a caducidade espetacular da historicidade, é a própria possibilidade da política enquanto pensamento estratégico que se encontra devastada”.3 Político, o trabalho de Jameson sobre o pós-modernismo “deve muito a Baudrillard, assim como aos teóricos aos quais ele era devedor (Marcuse, McLuhan, Henri Lefebvre, os situacionistas, Sahlins, etc. etc.)”.4 Ele afirma que “toda tomada de posição sobre o pós-modernismo na cultura – que pertence à apologia ou à estigmatização – é, simultaneamente e necessariamente, também uma posição política, implícita ou explícita, em relação à natureza do capitalismo multinacional de hoje”5 e se dá como objeto de “avançar a concepção de uma nova norma cultural sistemática e de sua reprodução afim de melhor refletir às formas de política cultural radical que seriam mais eficazes hoje”.6
O pós-modernismo seria o nome da “lógica cultural” do capitalismo tardio. A análise detecta uma nova articulação entre o cultural e a “esfera econômica”. Modificação crucial e essencial que essa mercantilização do mundo, esse novo período de acumulação necessitando a anexação de partes inteiras, ontem ainda poupadas: “Esta nova e prodigiosa expansão do capital multinacional terminou por penetrar e colonizar até esses enclaves pré-capitalistas (a Natureza e o Inconsciente) que ofereciam pontos de apoio extraterritoriais e arquimedianos a uma efetividade crítica”7, nota Jameson.
À exceção de algumas anotações relativas a Brecht, o teatro é ausente do livro de Jameson (o que não é muito surpreendente: seguramente, o teatro não é a arte do pós-modernismo); apesar disso, é possível desencriptar “tendências e aplicações” do pós-modernismo no próprio cerne de sua prática destas últimas décadas. Uma constelação de obras reagrupadas por Hans-Thies Lehmann em um livro legitimamente inevitável e muito fortemente debatido nos estudos teatrais, sob o nome genérico de Teatro pós-dramático8, pode valer como recorte. O autor toma certos cuidados, na introdução, em distinguir o teatro pós-dramático do teatro pós-moderno. Se o adjetivo “pós-dramático” se aplica a um teatro levado “a operar além do drama, em uma época “depois” da validade do paradigma do teatro ao drama”9, é subentendido que o prefixo “pós” caracteriza um dado exclusivamente estético, a cisão sendo poética. Apesar disso, é a esse título que é possível cruzar o pós-modernismo como Jameson o conceptualiza (a lógica cultural do capitalismo tardio) com o “pós-dramático” como Lehmann o tematiza, e de emitir, de fato, a hipótese que o “pós-dramático” designa justamente, no teatro, uma das manifestações do modernismo, sua dominante estética, às vezes até sua expressão militante – como o relata Romain Jobez, sobre o palco alemão, “o triunfo da estética pós-dramática passada do estatuto de vanguarda àquela de mainstream do palco do outro lado do Reno”.10 Certo, não sem contradições, nem exceções.
É necessário explicar porque o recorte de um pelo outro pode ser operado. Após Lehmann, é possível abandonar, momentaneamente, a ideia de um “teatro pós-moderno” e, ao contrário, apreender aquilo que se chama “pós-dramático” como a síntese e a proposição teórica mais avançada até hoje para caracterizar não o teatro pós-moderno, mas o teatro do pós-modernismo, seja pela constelação dominante, apesar de quantitativamente minoritária, de questões e de projetos da sequência histórica caracterizada assim por Jameson. Em um certo sentido, toda obra contemporânea pertence ao período pós-moderno. Em um certo sentido somente, porque as obras dispõem de maneira desigual seus traços constitutivos. Existe, no interior do pós-modernismo, “falhas”, resistências, brigas, contradições, relação de força, tensões. Existem opções radicais que contestam as tendências, mas elas são tomadas na sequência, não há exterior.
Seria, então, possível selecionar algumas obras e lhes acordar valor sintomal:11 elas revelariam um estado do pós-modernismo. Essas obras existem. Seria, no entanto, contornar a dificuldade que reside precisamente na aparente incoerência de todas essas existências. No seu entrelaçamento de estéticas e de orientações singulares, na soma de projetos e de práticas diferentes, na sua heterogeneidade própria, o pós-dramático dá testemunha, justamente, do campo de forças pós-modernistas: de uma rede de questões, de eixos dominantes, mais ou menos integrados.
A exploração por Lehmann da “lógica estética do novo teatro”12 permite identificar página após página os quatro eixos principais que caracterizam, para Jameson, a existência do pós-moderno:
Primeiramente, uma falta de profundidade, uma nova superficialidade que encontra suas extensões na “teoria” contemporânea e em toda uma nova cultura da imagem, do simulacro;
Em seguida, o enfraquecimento da historicidade que resulta, tanto na nossa relação com a História pública que nas novas formas de temporalidade privada, cuja estrutura “esquizofrênica” (segundo Jacques Lacan) determinará novos tipos de sintaxe ou de relações sintagmáticas de estrutura no domínio das artes mais temporais;
Uma tonalidade emocional fundamental de um novo gênero — o que eu chamarei de “intensidades” — e que se apreenderá melhor retornando às antigas teorias do sublime;
As relações profundas e constitutivas que todos esses elementos mantêm com as novas tecnologias, elas próprias figuras de um novo sistema econômico global”.13
Sem dificuldade, se encontrariam inúmeros cruzamentos entre a produção teatral contemporânea europeia, como ela é percebida nos palcos franceses, e os traços aqui enunciados — mas não é tanto a concordância entre esta ou aquela produção artística e o pós-modernismo que importa, do que a preponderância das linhas de força pós-modernistas no teatro, seu futuro dominante ou hegemônico.
As últimas páginas do livro de Lehmann, conforme ele foi publicado na França (seu epílogo), são dedicadas à questão política. Elas são, como tal, importantes porque circunscrevem um conjunto de argumentos capazes de propor uma redefinição da função política deste teatro, ou seja, “a maneira pela qual se estabelece uma possível referência do teatro pós-dramático no campo político”.14 Elas revelam o lugar resistente, dissidente, que entende ocupar o teatro pós-dramático: seguindo seus promotores, seus comentaristas, bem como os artistas, seria recusado, à sua maneira e na sua própria linguagem, da ordem neoliberal, aquilo que acontece nos corpos e nas vidas. Esse posicionamento é deduzido de uma concepção singular e sintomática da política e de suas possibilidades de apresentação. Lehmann sustenta, dessa forma, que as questões políticas “são as que dizem respeito ao poder social”. A sociedade hoje, e com ela suas elites políticas, viu escapar toda relação direta com a realidade, ela mal tem “poder real sobre os processos econômicos”. Então é possível, ele continua, identificar o quanto o “conflito político, como tal, tem tendência a se tornar abstrato, a escapar de qualquer representação concreta e, portanto, cênica”. A única possibilidade, em seu atual estado, de uma inscrição visível é “a interrupção de todo comportamento normativo, jurídico, político, isto é, o não político: o terror, a anarquia, a loucura, o desespero, o riso, a revolta, o associal”.15
Este primeiro tempo, geral, que se inscreve na constatação, defendida ao longo do capítulo, da caducidade das formas e das funções anteriores do teatro político, pede algumas observações. Em primeiro lugar, sobre a novidade do que é descrito aqui. Já em 1962, o diretor Erwin Piscator observou que “um drama histórico não seria mais possível enquanto drama de decisão, sob pretexto que as decisões já não seriam possíveis ao homem vivendo no anonimato, sob a máscara dos dispositivos e das restrições sociopolíticas, na absurda construção de uma existência na qual tudo seria decidido de antemão”.16 Mais profundamente ainda, porque é verdade que os casos anteriores de legitimação — notoriamente de Estado — na Europa se encontraram gradualmente despojadas de suas prerrogativas em benefício de estruturas e de instituições cada vez menos democráticas, a questão da invisibilidade da dominação não pode surgir como um dado novo. A história da “crítica da economia política” e do destaque da questão do fetichismo, por exemplo, enfatiza as inevitáveis invisibilidade e abstração dos processos reais de dominação e de expropriação.17 Há um jogo entre o que se vê e o que é visto; um dos desafios do teatro político foi precisamente de trazer para o visível o que estava excluído/retirado/suprimido, às vezes, por necessidade intrínseca.18
O segundo ponto é de perspectiva. A proposta da interrupção, da fratura, se é pouco satisfatório apresentá-la como única perspectiva é, de fato, interessante. Interromper, quebrar o que é, o que circula, pode permitir tornar visível uma outra situação. Somente esta interrupção é pensada aqui como “não-política”. A resistência ao enfraquecimento e ao eclipse da política seria o não-político. Encontramos ali, dito de outro modo, uma das palavras de ordem mais claramente dominantes do período. A solução para a “perda política” seria a pura e simples supressão da política.
Se é possível concordar que as formas “tradicionais” do teatro político se revelam doravante, em parte, obsoletas, é sobretudo lamentável que esta constatação não esteja sujeita a qualquer demonstração — como quando, para se livrar de um problema, declara-se evidente sua caducidade. Lehmann postula que este teatro não é mais possível, porque ele está, por um lado, ultrapassado, por outro, em disputa com os novos meios de comunicação. Em suma, o que listamos por algumas formas e datas se revela ineficaz. É então na sua capacidade mobilizadora e transformadora que este teatro na Europa é contestado. Qual é o problema, de onde vem esta incapacidade? Lehmann observa: “Os poucos exemplos de teatro bem-sucedido sobre temas políticos confirmam a avaliação geral segundo a qual a verdadeira possibilidade do teatro consiste em um recurso muito mais indireto aos temas políticos”.19 Assim, a “avaliação geral” teria sido correta, sem que se saiba bem de qual sucesso se trata (nem qual é sua extensão): política? estética? No entanto, pode-se opor contraexemplos a essa avaliação que preferiu especificamente se dirigir “direto ao público”, como escreveu Asja Lacis20 — sem negligenciar fabulação, nem dramaturgia, nem a potência dos artifícios teatrais — e eram, não obstante, “bem-sucedidos” ...
Mas é verdade que, no final do século XX, o resultado do teatro político é, em si, pouco convincente. Uma visão crítica sobre esses ensaios, no entanto, pressupõe classificar previamente os critérios. Parece, portanto, injusto culpar esse teatro de não ter transformado o mundo, nem mesmo, talvez, alguém. De não ter tido “sucesso” onde milhões de pessoas, organizadas ou não, têm, há décadas, “falhado”! Lembremos das reservas feitas pelo crítico Émile Copfermann que, já em 1967, respondia a este tipo de questionamento:
“A reprovação maior, no que diz respeito ao teatro político, é de não provocar a “atividade” do público ou, se preferirmos, de não acabar em um comício e manifestação. [...] Essa desaprovação é também baseada naquela que consistiria em esperar de um livro que ele provoque por si só a revolução, de um meeting que ele se se encerre com a tomada do poder. Um livro, mesmo sendo um manual de guerra de rua, não tem outras virtudes que de ser um bom ou um mal manual. É o uso que será feito que é decisivo, e este uso não pressupõe somente o valor do livro, mas sim da organização revolucionária, da sua eficácia”.21
Copfermann designa justamente a indecidibilidade da eficácia de uma forma artística — a menos de cair na lógica avaliadora que, de alguns parâmetros recolhidos, determina o sucesso ou o fracasso. Este teatro — que não se trata especialmente de defender — por sua vez pode ter incidências surpreendentes, irredutíveis à representação ao vivo, pois pode contar com o tempo mais longo das maturações. Nele, como em toda obra, alguma coisa — felizmente, e isso aliás talvez seja o que lhe há de mais precioso — escapa a todo dirigismo, produz em seu próprio ritmo, inesperado, o que nunca foi esperado nem mesmo imaginado. No entanto, o valor deste critério (a que ele serviu?) não poderia ser descartado.
Trata-se, então, de uma constatação e de uma certeza eventualmente compartilhadas e que difunde H.T. Lehmann: “Não é então pela tematização direta da política que o teatro se torna político, mas pela significação implícita de seu modo de representação”.22 Para continuar a análise, Lehmann recorre a uma redefinição de termos: “Existe uma fratura intransponível entre o político que dita a regra e a arte que — para dizê-lo simplesmente — é sempre exceção: exceção a toda regra, afirmação da não-regra, mesmo na própria regra”.23 Esta é uma das pedras angulares da crítica sistemática da política em seus ajustamentos com a questão artística. Porque, se é contestável que a arte é sempre uma exceção à regra (de cópias a modelos, a história da arte nos ensina sobretudo o oposto), pode ser acordado, como uma definição genérica, que a arte é sempre exceção emergente no coração da regra. Isso, no entanto, não acontece sem colocar problemas: uma tal caracterização reduz consideravelmente o que é arte. Mas por que não? Uma abordagem discriminante como essa, o que equivale a identificar obras proclamadas de “arte” e, contrariamente, sem “arte”, obras que não seriam “exceção”, ignorando a dificuldade de reconhecimento (de fato, quem é o juiz?), ignorando a reabilitação um pouco rápida (mas por que não?) de uma arte aurática, pode revelar-se fecunda. A dificuldade surge, no entanto, de não conceber a política, a contrario, como uma regra (ou imposição de uma regra). É fazer pouco caso de uma outra política que é exceção, surgimento, fratura, quebra. É atribuir uma concepção puramente gestionária da política longe daquilo que perturba e modifica a lógica policial (no sentido que Jacques Rancière lhe dá24). Em conformidade com a concepção dominante daquilo que ela é (e daquilo que ela pode), a política como a formula Lehmann na sua definição implícita não é o que emancipa, ela é o que lhe dita a (sua) lei.
Por isso, que dizer de um teatro político, quando a política não é outra coisa que um Estado de direito e de imposição da lei? Ele só pode ser, insiste logicamente Lehmann, transgressivo. Isto é o que torna arte e isto é o que eventualmente o torna, contra a política, “política”: “O teatro é político na medida em que interrompe e destitui as categorias do político, em vez de apostar em novas leis, mesmo que fossem concebidas com as melhores intenções”.25 A tese é forte, que liga a possibilidade política ao desenraizamento do indivíduo para a esfera social e as suas regras. No entanto, a tese permanece problemática por confundir a política e a legislativo. O que está em jogo é enorme: é que a palavra “política” abre ou fecha, por sua vez, o campo dos possíveis. Se a política é reduzida à lei, só resta, efetivamente, favorecer intensas transgressões, a soma de experiências esfareladas e provisórias de desenraizamento a esta mesma lei. Não existem mais políticas emancipatórias. Resta apenas ataques ocasionais, isolados e “não-políticos”.
É necessário colocar isso em conexão com o que, por Lehmann, não pode mais ser dito pela dramaturgia sobre a experiência social e política — e que permite compreender a mutação, segundo ele, inevitável, das formas prévias de teatro político. Lehmann observa de fato o quanto a realidade parece ser desdramatizada, a impressão de que “todo conflito é decidido em outro lugar — em blocos de poder. Quanto às questões reais, os nomes dos protagonistas são intercambiáveis na prosa da vida”.26 Esta constatação é importante para a definição da própria política:
Dificilmente podemos sufocar a suspeita de que a sociedade não pode ou não quer mais se permitir uma representação complexa e aprofundada de conflitos e de situações dilacerantes que abordam a substância própria das coisas. Ela interpreta a comédia ilusória de uma sociedade que aparentemente não apresenta mais esses conflitos. A estética do teatro também reflete involuntariamente algo nesse sentido. Uma certa paralisia do discurso público sobre os fundamentos da sociedade aparece. [...] Mas, ao mesmo tempo, se encontra apenas poucos indícios sobre a capacidade da sociedade de “dramatizar”, ainda que seja de forma incerta, seus problemas básicos e suas fundações, que sabemos fortemente abaladas. O teatro pós-dramático é também um teatro de uma época de imagens de conflito esquecidos.
Este é o ponto nodal: o teatro está, então, em sintonia com a política e com suas mutações “pós-modernas”, o que é, no caso, ausência de todo entendimento do conflito, até mesmo de qualquer hipótese conflitante. Ausência política na época do “consenso”. A partir de agora, triunfa um mundo onde o conflito (mas não as guerras) está ausente, apagado, os paradoxos e as ambiguidades substituídos pelas contradições. A política (de emancipação) teria se tornado outra, em ruptura com todo um amontoado “arcaico” de significantes e de modelos: partidos, organizações, luta de classe, estratégia, unidade, etc. O que é essa outra política? Uma não-política, responde Lehmann, em linha com os discursos recorrentes de uma reinvenção da política que se distancia da política, agora dispersa, redutível a uma guerrilha subversiva, disseminada, espalhada, feita de ataques desorganizados, portando golpe após golpe contra uma Dominação absoluta inclassificável.
Para as artes do espetáculo, escreve Lehmann, a saída para a política (concebida como uma regra, ordem, imposição) reside na invenção de uma “estética de risco” que necessita da “transgressão” da “racionalidade”, a partir de agora, hegemônica: “a sociedade contemporânea sabe pouco ou nada sobre o que ela poderia discutir racionalmente”,27 o que produz algo como “o declínio contínuo de reações diretamente afetivas”.28 Esta deflação dos afetos chama, em retorno, por um “treinamento” da emocionalidade imaculada de pré-considerações racionais”.29 Não se trata, muito pelo contrário, de negar que o teatro — e de forma mais ampla, a arte — poderia ter algumas responsabilidades no desenvolvimento de afetos e de faculdades pouco solicitados. Lembremo-nos da reflexão do filósofo Günther Anders, propondo, à sombra de Hiroshima, que “não estamos, com a nossa imaginação e nossos sentimentos, à altura de nossas próprias produções e de seus efeitos”.30 Diante desta “insuficiência do sentimento”, ele conclamava a “trabalhar para dar uma maior extensão às operações habituais de sua imaginação e a dos sentimentos [...], fazer exercícios para transcender à medida humana supostamente imutável de sua imaginação e sentimentos”.31 Um desafio emocionante e vital, mas talvez já perdido: “Se o nosso destino é viver em um mundo produzido por nós, que foge por sua desmedida à nossa imaginação e aos nossos sentimentos e torna-se, por este meio, uma ameaça de morte para nós, então temos de tentar compensar essa desmedida “, escreveu Anders no mesmo texto.32
A corrida para alcançar os excessos em que a arte pode ter seu lugar pleno: tanto para designar a urgência, mas também e principalmente para aumentar um imaginário à medida da desmedida. Mas a descrição (prescritiva) de Lehmann testemunha, ao contrário, que o “treinamento da emotividade” proposto é para si mesmo seu próprio fim; ele opõe ao imperialismo da razão, seu contrário:
No século da racionalização, do ideal calculador, da racionalidade generalizada do mercado, é incumbência do teatro atuar — com ajuda de uma estética de risco — com os extremos do afeto que detêm sempre, inclusive, a possibilidade da dolorosa ruptura do tabu. Isso acontece quando você obriga o público a reagir ao que está acontecendo em sua presença já que não existe a distância tranquilizadora que parecia proteger contra o abalo da diferença estética. [...] Cabe a sua essência própria perceber um medo, uma violação dos sentimentos, uma desorientação que encontra, precisamente, a atenção do espectador sobre a sua presença por meio de processos que podem parecer “imorais”, “associais” e “cínicos”: a experiência “política” por excelência. Ao mesmo tempo, o teatro não retira nem o humor nem o choque do reconhecimento, nem a dor nem o prazer que são as razões pelas quais continuamos a nos encontrar no teatro.33
É com estas palavras que se termina a versão francesa do Teatro pós-dramático.
Assim, no esquema de intervenção artística que propõe Lehmann, o artista é creditado de um saber: ele sabe, de alguma forma, o que o espectador ignora ou se dissimula. Ele conhece suas alienações; ele conhece a verdade dolorosa do mundo. Devemos, então, fazê-la aparecer, desvelá-la, revelá-la a um espectador que a ignora e cuja vida sensível está atrofiada.
No final do Festival de Avignon de 2005, o diretor Jean-Pierre Vincent revela, irritado sobre o espetáculo L’empereur de la perte do artista visual e coreógrafo Jan Fabre, artista associado àquela edição: “Do espetáculo emanava, objetivamente, um pensamento bem confuso sobre a humanidade e o mundo. O que aplaudiam, eles? Talvez o fato de que o artista não estava mais avançado que eles sobre as questões que se colocam hoje aos habitantes da Terra, e que ele ousou dizer. O fato de Jan Fabre estar convencido de saber mais sobre isso, é um outra questão”.34 Nota severa, mas que tem o mérito de lembrar, sob o muito consensual e pós-modernista relativismo, que uma obra pensa e que é possível, de volta, pensar este pensamento. A (bela) liberdade (supostamente) acordada aos espectadores de ver o que eles querem e de perceber, conforme suas associações, que o que pode não estar lá, não dispensa, no entanto, o palco: coisas, corpos, ações que são representadas. E isso pode ser confuso, opaco, vertiginoso, irracional, mas isso pensa. Se Jan Fabre neste caso assume uma função de transmissão — “Estou convencido de que eu tenho uma mensagem a transmitir, que eu posso contribuir com algo para o mundo. E aqui estão, ideias do passado”35 — o pensamento proposto por uma obra se revela muitas vezes, em suas intenções, refratário a qualquer discurso, à lógica argumentativa de posições políticas; ele não é, de longe, necessariamente da ordem da “mensagem”, mas alguma coisa é dita ou tenta se dizer — incluindo às vezes (bastante vezes) que tudo isso é indizível. O artista, aqui, sabe, ou percebe ou apreende alguma coisa do mundo, de sua condição, o que gera a obra.
Parece que o que é perseguido então é tornar sensível, por todo um jogo de imagens e de choques, as pulsações, os devires, as fundações e as visões do mundo, para um público “ignorante”, sensivelmente analfabeto e ileso das brutalidades da época. Ele vai ser violentado, surpreendido, agredido, desorientado. É preciso romper com o seu conforto, abrindo seu olhar, incomodando sua frigidez, o jogar no mundo: uma “estética de risco” (é sob o título “A prova do risco” que foi publicado o número de Alternatives théâtrales anunciando o Festival Avignon de 2005) para se opor “politicamente” à política. “Nós não fazemos teatro político, nós queremos agitar os espectadores que já não sentem mais nada, esparramados na frente da TV”, proclama assim a trupe catalã La Fura del Baus.36
A política não-política proposta por Lehmann deixa perplexo. Porque é difícil não ler nas perspectivas recomendadas como o eco próprio daquilo que domina hoje. Que os procedimentos teatrais possam ser “imorais”, “associais” e “cínicos”, não induz evidentemente a nenhuma condenação (o teatro não tem de se pautar pelo Catecismo do Bem e dos laços sociais), mas a observação de que, talvez, esteja ali precisamente nosso cotidiano. Então, qual é o sistema que nos rege se já não é um sistema governado pela imoralidade, pela associabilidade e pelo cinismo? Da mesma forma, como não ver nas emoções propostas — “medo”, “violação dos sentimentos”, “desorientação” — os afetos já dominantes da época?
A proposta de uma “estética do risco” não é apenas a continuação de uma “sociedade do risco” por outros meios. O projeto de um confronto com o risco foi, ainda ontem, veiculado por algumas vanguardas, produtivo, rico na denunciação por ato que ele propunha, daquilo a que a vida foi reduzida. Era necessário um choque para estremecer, maltratar e desestabilizar um espectador pensado como “um covarde ou um traidor”, tal qual o formulará, para o campo político, lapidar, Frantz Fanon, ou considerado, na sequência do situacionismo, como um ser passivo, larval, demissionário. Daí a necessidade reivindicada de fazê-lo viver uma certa brutalidade ou crueldade.
Mas hoje? Pensa-se, entre outros exemplos, ao edificante e emblemático posicionamento de François Ewald, antigo assistente de Michel Foucault, antes de ser conselheiro do MEDEF (Movimento das Empresas da França).37 Pascal Michon lembra assim a substância do seu percurso teórico: “Nos textos de Ewald, por exemplo, a genealogia foucaultiana da questão dos riscos e das técnicas de individuação implicados nos suportes sociais partilhados pelo Estado-Providência, em parte, justificada quando essas técnicas tendem a normalizar os indivíduos em nome de imperativos biopolíticos (O Estado-Providência e Filosofia do Direito), foi transformada nos anos 1990 em uma crítica mordaz da suposta obsessão das populações contemporâneas de escapar de qualquer risco e, como corolário, porque é o lugar onde nós queríamos chegar, em uma defesa do modelo do empreendedor “riscófilo” suposto representar o ideal de comportamento a ser estendido a uma sociedade que tornou-se de forma abusiva riscófoba”.38
A inversão em seu contrário da noção de “risco” alerta sobre modificações substanciais que a tocam e sobre a necessidade, em uma ótica política, de pensar sua evolução e sua instrumentalização. Só hoje se pode reconhecer que o risco, o medo, a fragilidade, a precariedade são integrados, naturalizados e constitutivos do funcionamento do mundo que é o nosso? Parece que, longe de ser transgressivo, este teatro poderia certamente ser redundante tendo em conta os afetos da dominação, persistindo em precipitar na vida intensa e frágil, dolorosa e agitada, dos indivíduos que, todavia, já estão nela. Este teatro labutaria para arruinar (em vão) a distância que separa as palavras e as ações, a vida de sua contemplação insensível, mesmo que ele não exista mais hoje a distância, como uma “realidade em excesso”, nas palavras da escritora Annie Le Brun: “Aqui estamos diante de uma realidade que não se opõe a nada nem a ninguém. Mais: ela não cessa de vir em nossa direção. E é por nunca ficar no lugar que ela se tornou tão invasora”.39 E que isso talvez seja o principal problema.
Edição brasileira: Frederic Jameson. Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 2002.↩
Frederic Jameson, Le Postmodernisme ou la logique culturelle du capitalisme tardif, op. cit., p. 549.↩
Daniel Bensaïd, Le Spectacle, stade ultime du fétichisme de la marchandise. Marx, Marcuse, Debord, Lefebvre, Baudrillard,, prefácio de René Schérer, Nouvelles Éditions Lignes, Paris, 2011, p. 31.↩
Ibid., p. 36.↩
Ibid., p. 39.↩
Frederic Jameson, Le Postmodernisme ou la logique culturelle du capitalisme tardif, op. cit., p. 97.↩
Consultar, por exemplo, Christophe Bident, “Et le théâtre devint postdramatique : histoire d’une illusion”, in Olivier Neveux, Jitka Pelechova e Christophe Triau, Théâtre/Public, n° 194 (“Une nouvelle séquence théâtrale européenne ? Aperçus”), 2009 ou Jean-Pierre Sarrazac, “La reprise (réponse au postdramatique)”, in Jean-Pierre- Sarrazac et Catherine Naugrette (dir. ; assistidos de Ariane Martinez, Julie Valero e Jonathan Châtel), Études théâtrales, 38-39/2007 (“La réinvention du drame (sous l’influence de la scène)”), Louvain-la Neuve (Belgique), 2007.↩
Hans-Thies Lehmann, Le Théâtre postdramatique, tradução do alemão de Philippe-Henri Ledru, Éditions de l’Arche, Paris, 2002 (1999), p. 34.↩
Ibid., p. 35.↩
Romain Jobez, “La double séquence du spectateur”, Critique, n° 699-700 (“Le théâtre sans illusion”), août-septembre 2005, p. 572.↩
N. do T.: Utilizamos aqui um termo de Althusser.↩
Hans-Thies Lehmann, Le Théâtre postdramatique, op. cit., p. 22.↩
Fredric Jameson, Le Postmodernisme ou la logique culturelle du capitalisme tardif, op. cit., p. 40.↩
Hans-Thies Lehmann, Le Théâtre postdramatique, op. cit., p. 272.↩
Ibid.↩
Erwin Piscator, “Avant-propos”, in Rolf Hochhuth, Le Vicaire, tradução do alemão F. Martin et J. Amsler, Seuil, Paris, 1963.↩
Consultar, entre outros, na sequência de Jean-Marie Vincent, a obra de Antoine Artous, Le Fétichisme chez Marx. Le marxisme comme théorie critique, Syllepse, Paris, 2006.↩
Consultar, por exemple, Olivier Neveux, “Alors, le lendemain, j’ai ouvert Le Capital”… Un théâtre de la théorie : Emballage d’André Benedetto”, in Jean-Marc Lachaud et Olivier Neveux (textos organizados por), Changer l’art - Transformer la société. Art et politique 2, L’Harmattan, Paris, 2009, p. 113-132.↩
Hans-Thies Lehmann, Le Théâtre postdramatique, op. cit., p. 275.↩
Asja Lacis, Profession : Révolutionnaire (1971), edição alemã organizada por Hildegard Brenner, tradução de Philippe Ivernel, Presses universitaires de Grenoble, Grenoble, 1989, p. 123.↩
Émile Copfermann, “Un théâtre révolutionnaire”, Partisans, n° 36 (“Théâtres et politique”), Éditions François Maspero, Paris, février-mars 1967, p. 14.↩
Hans-Thies Lehmann, Le Théâtre postdramatique, op. cit., p. 279↩
Ibid.↩
Ver Jacques Rancière, La Mésentente. Politique et philosophie, Galilée, Paris, 1995.↩
Hans-Thies Lehmann, Le Théâtre postdramatique, op. cit., p. 281.↩
Ibid.↩
Ibid., p. 287-288.↩
Ibid., p. 293.↩
Ibid., p. 293.↩
Günther Anders, L’Obsolescence de l’homme. Sur l’âme à l’époque de la deuxième révolution industrielle, Éditions Ivrea/Éditions de l’Encyclopédie des nuisances, Paris, 2002 (1956), p. 305.↩
Ibid.↩
Ibid., p. 306.↩
Hans-Thies Lehmann, Le Théâtre postdramatique, op. cit., p. 294.↩
Jean-Pierre Vincent, «… Un souvenir tel qu’il brille à l’instant du péril…”, art. cit., p. 67.↩
Jan Fabre, in Katia Arfara et Georges Banu, “Vers la Terra incognita…”, Alternatives théâtrales, n° 85-86 (“Jan Fabre, une œuvre en marche – L’épreuve du risque”), avril 2005, p. 7-8.↩
La citation date de 1999 mais La Fura del Baus, sans nul doute, pourrait encore l’assumer, ainsi que de nombreuses productions contemporaines (Télérama, n° 588, 15-21 août 1999, citation reprise in Christian Ruby, L’Âge du public et du spectateur, op. cit., p. 56).↩
N. do T. : Equivalente à Confederação Nacional da Indústria (CNI) do Brasil.↩
Pascal Michon, Les Rythmes du politique. Démocratie et capitalisme mondialisé, Les Prairies ordinaires, Paris, 2007, p. 26.↩
Annie Le Brun, Du Trop de réalité, Stock, Paris, 2000, p. 18.↩