MORRO COMO UM PAÍS, DA KIWI CIA DE TEATRO
Alexandre Villibor Flory
Universidade Estadual de Maringá
alexandre_flory@yahoo.com.br
Resumo: Esse artigo pretende analisar alguns aspectos da peça Morro como um país, da Kiwi Cia de Teatro. Embora tenha apenas uma atriz em cena, não se trata de um monólogo voltado para a subjetividade, antes mira o questionamento da sociedade burguesa e de suas instituições, o que é formalizado pela sua mediação com o comentário cênico e com o teatro documentário. Ponto de fuga do projeto é expressão cênica da necessidade da atualização histórica da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), período compreendido como uma materialização da lógica irracionalista do capitalismo, questão mais atual do que nunca.
Palavras-chave: teatro épico-dialético; teatro brasileiro; teoria do teatro; teatro e sociedade; teatro como médium-de-reflexão histórica.
Abstract: This paper aims to analyses some aspects of the play Morrocomo um país (I die like a country) by Kiwi Theatre Company. Although it has just one actress on stage, this play is not a monologue dealing with subjectivity, but a questioning of bourgeois society and its institutions, what isformalized by its mediation with scenic comment and with documentary theatre.The project discuss on stage the need of historical update of the Brazilian civil-military dictatorship (1964-1985), period understood as the materialization of the irrational logic of capitalism, more actual than ever.
Keywords: epic-dialectical theatre; Brazilian theatre; theatre theory; theatre and society; theatre as a medium of historical reflection
Qualquer crítica da peça Morro como um país, da Kiwi Cia de Teatro, projeto iniciado em 2012 com subtítulo“A exceção e a regra”, que se tornou depois“Cenas sobre a violência de estado”, leva em conta que há apenas uma atriz em cena, o que aponta para a forma do monólogo. Não se trata, evidentemente, de se tentar chegar a uma caracterização definitiva do conceito e sua aplicação à peça em questão, mas de recuar à história da crise do drama e entender que o monólogo é uma das formas de sua expressão. O rompimento com a tradição do teatro dramático calcado em personagens autônomos e conscientes que, pelo diálogo, entram em conflito com outros sujeitos pode se dar tanto pela concepção de um sujeito construído socialmente, que nos remete à história e às questões coletivas — tendência épica — como pelo recuo à esfera intrassubjetiva, questionando a partir de dentro o estatuto desse sujeito — tendência lírica. Nos dois casos o diálogo perde importância e a ação não é mais o motor da dinâmica teatral, colocando a autossuficiência do drama em cheque. Essas duas possibilidades não são autoexcludentes; Rosenfeld já ensinava em 1965, em O teatro épico, que o recurso ao lírico causa uma interrupção momentânea da ação, retardamento esse que tem efeito épico.
Mas nosso interesse está, sobretudo, na atualidade e na utilidade do teatro épico em perspectiva dialética, calcado no materialismo histórico, e que tem como ponto incontornável a obra de Brecht, tanto teórica quanto prática, com recepção produtiva no Brasil a partir dos anos 1960. Essa discussão está fortemente enraizada num grupo como a Kiwi, o que os subtítulos do projeto em tela atestam. Essa tradição crítica, contudo, vem sofrendo fortes e severas críticas de todos os lados: seja pela sua suposta superação pelo final da experiência soviética em 1989, seja pelo vencimento de sua validade pela voga do teatro pós-dramático, seja pela incorporação das ‘técnicas brechtianas’ do distanciamento e do didatismo como meros instrumentos teatrais frios, objetivos e neutros, sem qualquer necessidade de crítica materialista— este talvez o pior dos ataques por sua natureza subterrânea e insidiosa.
Bem afins aos tempos pós-utopia e de pensamento único, essas formas revisionistas se voltam para o sujeito esfacelado em um mundo sem sentido como lugar por excelência da crise e das possibilidades de sua expressão, de tal modo que toda e qualquer objetividade remonte a esse estatuto ontológico. Mesmo críticos que se consideram próximos da perspectiva dialética contribuem para esse novo posicionamento, como se vê por uma obra de fôlego como a de Lehmann (2007). Se essa já é a postura em relação às peças dialéticas, pode-se imaginar o quanto formas como o monólogo servem a esse propósito de desarmamento crítico, pela solidão do ator/personagem em cena. Aqui não tomamos o monólogo como um subgênero, com características específicas, nem como monodrama, mas como situação monológica, ou seja, em que o diálogo com outro personagem não está em primeiro plano. Em sentido lato, entendemos o monólogo, de acordo com Pavis, como “discurso que se distingue do diálogo pela ausência de intercâmbio verbal e pela grande extensão de uma fala destacável do contexto conflitual e dialógico.” (PAVIS, 2007, p. 247)
O monólogo, portanto, tendencialmente se refere a um sujeito e suas idiossincrasias. A expressão das crises que vivemos como primeira e primordialmente voltadas para o sujeito pode levar ao travamento crítico pelas mãos de um subjetivismo autocentrado e autofundante. Mesmo a discussão importante em torno do conceito de teatro íntimo — que não se reduza um teatro intimista —, realizada por Jean-Pierre Sarrazac, desvaloriza o teatro épico-dialético e restringe significativamente seu espaço e relevância. Para Sarrazac, o teatro intimista “significa fechamento, enclausuramento, restrição da ação dramática à esfera ou à barreira fantasmática da “vida privada”, enquanto que, no teatro íntimo, o interior, o espaço de dentro, manifesta uma aspiração social e cósmica ao exterior.” (2013, p. 22) O teatro íntimo volta-se para fora e se torna “indiscreto”, derrubando a “parede da vida privada” que protege o indivíduo moderno. “O teatro íntimo (...) não cessa de denunciar essas trincheiras ilusórias.” (idem, p. 23) Essa passagem explicita o teor crítico e não moralista do teatro íntimo, o que corrobora sua modernidade e o aproxima do distanciamento épico. Porém esse movimento para fora não toma como princípio o campo social, mas a esfera interior, concebida como uma irredutível condição humana universal, um fundo comum de angústias ancestrais, subtraindo-se à dinâmica histórica ou, ao menos, subordinando-a à subjetividade primeva. Isso o distancia do teatro dialético, e faz com que esse seja visto em chave redutora.
Esse caráter de indiscrição do teatro íntimo não nega sua origem no sujeito, no “espaço de dentro”, lugar preferencial de sua especulação estética — para dizer o mínimo. O teatro íntimo não admite sequer por hipótese que a objetividade das condicionantes sociais e culturais possa contribuir para a constituição do sujeito. Isso leva Sarrazac a afirmar: “(...) podemos dizer que dramaturgia épica de Brecht representa a negação do íntimo e de seu teatro” (2013, p. 48), ou que “A maternidade de Pelagea Vlassova (A mãe) e a de Mãe Coragem são inteiramente apanhadas pelo processo histórico, revolução de 1917 ou guerra dos Trinta Anos; melhor dizendo, elas são produto disso.” (2013, p. 48, negritos nossos)
A seguir esse argumento, para Sarrazac qualquer subjetividade que irrompa das condições materiais de existência deve ser negada. Em outras palavras, Vlassova se tornaria unicamente uma revolucionária, esquecendo seu amor pelo filho e pela sociedade, e a Mãe Coragem não precisaria chorar em silêncio após fingir não reconhecer seu filho morto — afinal de contas, “Brecht substitui a relação de proximidade, a tensão intersubjetiva — sem falar das tensões intrassubjetivas, completamente ausentes do teatro épico — pelo afastamento generalizado (...)” (2013, p. 50). Porém, a nosso ver, que o teatro brechtiano não perca nunca a distância expositiva de seus materiais não significa que mecanize seus personagens, que os torne reféns de um determinismo tacanho. A subjetividade tem raízes e pode ser estudada a partir das condições sociais, objetivas, mas não inteiramente reduzida à dimensão objetiva. O que a discussão em torno do teatro íntimo parece não aceitar é que o teatro dialético expõe as contradições tanto internas quanto externas aos sujeitos.
Os personagens alegóricos e típicos de Brecht só à golpes de retórica podem ser vistos como “ “monstros”, criaturas de estatura supra-humana.” (2013, p.51).O problema de sua argumentação se situa numa avaliação equivocada da dialética do materialismo histórico. Isso porque o que Sarrazac chama de “cosmogonia marxista” (2013, p.50) brechtiana não procura uma totalização pela organização do mundo a partir de uma ordem hierárquica universal e absoluta, mas compreende as contradições em todos os níveis da vida social que irrompem da forma totalizadora do capitalismo, totalização negativa que é a base para seu questionamento sistemático. Não se trata, portanto, de uma cosmogonia, mas de uma perspectiva dialética e, nesse sentido, a aproximação com Claudel e sua “cosmogonia católica” expõe a fragilidade do argumento: Sarrazac busca um fundo comum entre uma visão de mundo absolutista e dogmática (da cosmogonia católica) e o projeto brechtiano, antidogmático por excelência.
Embora de leitura instrutiva e produtiva, o ensaio de Sarrazac, quando toma como objeto o teatro dialético parece atribuir à razão crítica que organiza a cena e a recepção do texto brechtiano uma sisudez objetiva que não conheceria nem ao menos Freud. Talvez o crítico e encenador francês não tenha dado a atenção devida à dialética da exposição das contradições em Brecht. Assim podemos entender que repita o mantra pós-dramático para o qual “no teatro épico brechtiano, o dramatúrgico tem precedência sobre o cenográfico” (p. 49), esquecendo-se de ao menos comentar a avaliação contrária e bem fundamentada de Benjamin, a respeito dos aparelhos teatrais dos anos 1930, especificamente da forma cênica:
Essa falta de clareza sobre sua situação, que hoje predomina entre músicos, escritores e críticos, acarreta conseqüências graves, que não são suficientemente consideradas. Acreditando possuir um aparelho que na realidade os possui, eles defendem esse aparelho, sobre o qual não dispõem de qualquer controle e que não é mais, como supõem, um instrumento a serviço do produtor, e sim um instrumento contra o produtor.” Com essas palavras, Brecht liquida a ilusão de que o teatro se funda na literatura. Isso não é verdade nem para o teatro comercial nem para o brechtiano. O texto tem uma função instrumental nos dois casos: no primeiro, ele está a serviço da preservação da atividade teatral e no segundo, a serviço de sua modificação. (BENJAMIN, 1996, p. 79, negritos meus)
Mais adiante, Benjamin continua: “O teatro épico é gestual. Em que sentido ele também é literário, na acepção tradicional do termo, é uma questão aberta. O gesto é o seu material, e a aplicação imediata desse material é sua tarefa” (Benjamin, 1996, p. 81) Disso advém que não se deve reduzir Brecht à literatura dramática, nem sua razão à instrumental burguesa, mas compreender sua dialética materialista. Em Brecht ou Benjamin um ‘sistema literário’, mesmo que construído apenas como recurso didático, aparece sempre em mediação com a vida social, dialética essa que preside e organiza em profundidade seus escritos. Em suma, Sarrazac faz uma retomada importante dos estudos de Szondi, e suas teses funcionam bem com autores como Strindberg, Maeterlinck, Tchekhov e Pirandello, mas perde a mão — a nosso ver — por não dar o devido crédito ao motor mesmo do pensamento crítico, o materialismo dialético — e daí não acertar com Hauptmann e Brecht.
O texto de Sarrazac, embora parta de Szondi, se afasta dele exatamente quanto ao método dialético. A lição de Szondi (2001) deve ser retomada: é preciso retornar ao terreno historicizado, ainda mais em tempos em que o inimigo não para de vencer, de modo que nem os mortos estão a salvo (Benjamin). Para ir adiante é preciso voltar um passo no percurso dialético, retornar a Brecht, atualizar a crítica materialista em descrédito com os arautos do pensamento íntimo-cósmico. A teorização de Sarrazac a respeito de um teatro íntimo tem por princípio e fim o sujeito, embora despedaçado, fraturado, perdido. Como expressão de um mundo sem saída e marcado por crises em todos os âmbitos da vida social e psíquica, não há dúvida de sua pertinência, mas se limita ao negar o caráter objetivo dessa situação e da sua remissão última aos desdobramentos da totalização capitalista.
Noutra vertente, mesmo o assim chamado teatro pós-dramático recorre ao monólogo em sua luta contra o drama tradicional e contra o teatro dialético — este último sumariamente inventariado como drama em Lehmann (2007). O projeto é ambicioso a ponto de chegar à negação da história, mesmo quando o assunto histórico se impõe, como no projeto Peep Classic Ésquilo, de Roberto Alvim. Nele se encenam as sete peças de Ésquilo que chegaram até nós em três noites, cada uma com duração de uma hora, reduzindo drasticamente o texto original. O projeto objetiva “depurar” Ésquilo de seus elementos conjunturais, buscando uma linguagem essencial, assim sumarizado por Ramos em sua crítica: “Quando o mínimo é o máximo.” E continua: “Dialogando com a arte contemporânea”, a adaptação feita por Alvim do “fundador da dramaturgia ocidental” subtraiu “todos os elementos mitológicos (...) e minimizou o papel do coro, diluindo sua função narrativa.” Com isso, “as falas desobrigam-se de contar histórias e tornam-se substantivas, soando como poemas inaugurais.” Mais adiante: “Os atores estão quase estáticos ou invisíveis. Potencializados como emissores, resgatam o que há na obra de Ésquilo de oracular sobre a condição humana.” (RAMOS, 2012)
Os longos trechos narrados nessas encenações se configuram como monólogos épicos. Com atores imóveis na penumbra sem qualquer interação entre si, eles nem sequer tomam consciência da presença dos demais: cada um está enclausurado em seu discurso. São enunciados projetados por corpos oraculares, míticos, ahistóricos. A tensão entre a tradição e os homens que querem assumir seu destino é abandonada em virtude de uma suposta dicção arquetípica do humano e da linguagem, não conspurcáveis pela história. Difícil dizer o que resta da tragédia grega nessa idealização de uma arte total minimalista. A busca das falas “substantivas”, ou seja, autorreferenciais e autônomas, miram um caráter mítico e absoluto, como “oráculo da condição humana”. Esse projeto faz parte da ‘dramática do transhumano’, que consiste, entre outras coisas, na
[...] invenção de outros, de infinitos modos de subjetivação, aparentemente impossíveis, imprevisíveis. significa a criação de novos moldes arquetípicos, a serem preenchidos por pulsões que teremos que inventar, expandindo nossa experiência em veredas insuspeitadas (ALVIM, 2012, s/p).
Não se pode negar seu caráter épico-narrativo, nem tampouco monológico, mas a perspectiva é oposta à dialética. Essa linguagem universal ‘transhumana’ se coloca na contramão da concepção de uma linguagem localizada, histórica, que radicasse na linguagem o lugar apropriado para a luta ideológica, como já ensinou Bakhtin. Não é à toa que Iná Camargo Costa, em outro contexto e falando de outras coisas, coloca como subtítulo de seu excelente livro Nem uma lágrima(2012) uma explicação necessária: teatro épico em perspectiva dialética (negritos nossos). Aqui se trata, no estudo sobre Morro como um país, de trazer de volta para o terreno historicizado e dialético uma forma atual e útil como o monólogo, mas com o cuidado de não se render ao íntimo regressivo nem ao absoluto formal. Nosso propósito é mostrar como Morro como um país se insurge contra esse estado de coisas, tomando da forma mais propícia ao recuo subjetivo para fazer teatro dialético.
Segundo texto da própria Kiwi, Morro como um paísé um “trabalho cênico que debate temas como “estado de exceção”, violação dos direitos humanos, ditadura civil-militar brasileira, regimes autoritários do cone sul e o papel da arte e da cultura nas sociedades contemporâneas.”(KIWI, 2012)
Embora isso já adiante algumas linhas de força em torno das quais faremos nossa argumentação — a remissão às ditaduras, o estado de exceção nas ditaduras como nas democracias, o papel social da arte, da imaginação como resistência, a base no teatro documentário, ainda está longe de apresentar como a peça é construída, ou seja, pouco fala sobre o plano formal da obra.
O primeiro bloco, que funciona como uma espécie de apresentação da estrutura da encenação, inicia com um vídeo onde se vê um ataque americano a um carro civil em guerra. Logo depois, a atriz Fernanda Azevedo se dirige ao público e pergunta se ele já se recompôs das muitas escadas para se chegar ao espaço cênico: agora a peça vai começar, diz ela. Ela se apresenta como “Fernanda, nascida em 1973, carioca, há sete anos em São Paulo, que trabalha quando consegue como atriz, e que tem dois sobrinhos que não sabem o que significa a palavra ditadura.” As imagens que vimos ao entrar, diz ela, são de um ataque em 2007 a um carro civil em Bagdá; os EUA disseram ser um contra-ataque a forças militares, até que o wikileaks vazou a filmagem. Após isso, troca de assunto e diz que, em 1964, — eu, Fernanda, que nasci em 1973, tinha menos 9 anos — um negro americano fora preso e violentado sem reagir, por eles. “Eles eram a lei, a ordem, o Estado, a polícia”. Dito isso, em meio à repetição incansável da frase final do garoto americano, ela retira mais de vinte camisetas que vestia com fotos de assassinados e desaparecidos da ditadura brasileira, com calma e serenidade, dobrando-as com carinho; fim do bloco.
Ele é muito significativo por vários motivos. Quem fala é Fernanda, a atriz; não chega a assumir uma personagem propriamente dita. A perspectiva da peça é localizada nela, de certo modo análogo ao paulista de 1967 que faz o Coringa em Arena conta Tiradentes, de Boal e Guarnieri. De cara limpa, em registro realista, esses poucos minutos conferem à peça sua dinâmica e apontam para sua estrutura. A fragmentação e montagem das cenas, o bombardeio criminoso vazado pelo wikileaks, a falta de confiança nas instituições estabelecidas, a ditadura brasileira, a violência da regra, a lembrança dos nossos assassinados políticos. A alienação dos nascidos e crescidos durante a ditadura, o absurdo de não discutirmos esses assuntos que se impõe historicamente, a crítica à ordem estabelecida que se deita sobre cadáveres insepultos, tudo isso será visto a partir do momento atual e de Fernanda. Aparentemente sem motivação, ao lembrar dos sobrinhos o único comentário é que eles não sabem o que é ditadura. Paradoxalmente, a remissão algo arbitrária é o único qualificativo que merece menção, indicando ser uma questão primordial para a formação deles.
Embora a dimensão subjetiva esteja ativa pela Fernanda, toda a construção dessa dimensão se deu objetivamente, coletivamente. Não há a expressão da intimidade de Fernanda, mas se apresenta sua construção histórica. Isso se vê no modo mesmo como apresenta sua idade em relação a 1964: eu tinha menos 9 anos. Ou seja, ela já era, antes de nascer. A irrupção da ditadura mexeu, obviamente, com as forças sociais, com as formas de organização da vida, com a educação, contexto no qual a sua subjetividade se formou. Desse modo, fica fácil compreender a diferença decisiva, embora sutil, entre ‘faltavam 9 anos para eu nascer’ e ‘eu tinha menos 9 anos’. A lógica é análoga à compreensão de que um evento histórico não elaborado socialmente, como a ditadura brasileira — já chamada pela Folha de S. Paulo por ‘ditabranda’ — seja determinante para uma formação apropriada dos jovens. Nessa pequena passagem introdutória, o tom já está estabelecido pela relação de confidência com o público — embora não de uma subjetividade, mas da objetividade do mundo que a forma.
Pode-se perceber, também, que não se trata apenas da ditadura militar brasileira, mas ela será compreendida como um momento representativo das ditaduras do cone sul (1), do papel do imperialismo americano (2) e da subsunção desse processo à lógica da valorização irracional do capital (3), esse último pela crise estrutural das instituições da suposta paz burguesa (“eles”). Esse processo é importante pois atesta nossa participação no “concerto das nações”, capítulo da infeliz modernidade de nosso atraso. Os materiais usados são o vídeo, a narração, o áudio, o corpo engordado da atriz pelas camisetas sobrepostas, materializando uma das assertivas mais importantes da peça: ‘eu sou os que foram’ — ainda não pronunciada, mas já vista.
Numa cena posterior, Fernanda toca bateria. O tom crítico vem tanto do riso jovial da baterista quanto pelo longo texto que interrompe a cena, cujo tema é uma avaliação materialista da luta por justiça: “Sem justiça nossa fome cresce até que devoremos a Terra; Quando não há passado, nenhum futuro; nenhuma origem; (...) A imaginação é mais lógica do que a razão. (...) Como podemos transformar o crime em justiça? É fácil: o reverso de todas as leis é a justiça.(...) Então?” Isso vale para qualquer estado de exceção, inclusive e principalmente dos tempos de suposta liberdade. Após a interpelação direta do público, ela volta à bateria e diz: “O que pode fazer uma pobre moça a não ser tocar numa banda de rock?” e, comentando a própria frase, pisca para o público.
Essa é a deixa para que ela se sente numa cadeira e passe 17 minutos narrando trechos de Morro como um país. O título se refere a um romance de 1978, escrito por Dimitris Dimitriadis, sobre a ditadura grega (a ditadura dos coronéis) que vai de 1967 a 1974. Esse texto, “entre o ficcional e o documental, dá o testemunho desta experiência, tanto na sua expressão individual como coletiva, vivida pelo povo grego. A linguagem alia certa objetividade na descrição da violência e dos horrores do período, com imagens poéticas e invenção estilística.”(KIWI, 2012) Há tanto o plano individual quanto o coletivo, objetividade e subjetividade, descrição e invenção: noutras palavras, não se nega a dimensão subjetiva, emotiva e imaginativa para a construção social, mas ela é perspectivada objetivamente. Novamente estamos diante de um fragmento que aponta para o projeto da peça como um todo, como é típico da fragmentação do primeiro romantismo alemão, aqui mediada pelo materialismo histórico. O trecho fala da morte de um país e de como isso provoca uma morte também da subjetividade, da identidade, de justiça, de liberdade, de pertencimento.
Detesto esse país. Devorou minhas entranhas. Essas palavras são as últimas que receberá de mim. (...) Eu não quero ser um país. Eu não sou um país. Eu não quero ser este país. Este país é necrófilo. Gigolô. Assassino. (...) mas esse país não me deixa querer. (...) Como um câncer, devorou meu cérebro, meus intestinos. Conspurcou tudo. Sua história me faz tremer da cabeça aos pés. (...) Todo o esperma de todos os homens da Terra não poderia reanimar esse oco no meu corpo, de onde começa a vida humana. (...) Já não sou mais mulher e você não é mais homem: ele nos levou tudo. Mas o que sobrará dele sem nós? A sua terra tomou a minha forma, o meu corpo tem agora as suas dimensões, eu tenho em mim o seu destino. Morro como um país. (KIWI, 2014)
A morte subjetiva é remetida à coletiva, do país. De fato, o processo descrito por meio de uma linguagem criativa e descritiva, ao mesmo tempo, indica a construção objetiva da subjetividade, sem que essa perca qualquer dimensão lírica ou psicológica. No sentido contrário do que vimos a respeito do teatro íntimo, o ponto de partida via cultura, via crítica do sentimento pátrio, a partir das crises do mundo, determinam o sujeito, mas não o limitam nem impedem que ele pense criticamente, nem o tornam mecânico. Mostra uma possibilidade de expressão dessa relação entre a subjetividade e o mundo. Estamos diante de um anti-hino de louvor à pátria e às instituições.
Merece destaque, também, o uso do boneco articulado no fundo do palco. Antes da cena começar, Fernanda vai até o boneco e o veste com um quepe militar, batendo continência. São posições que, cristalizadas, ganham significado nas cenas; nesse caso, diz diretamente da guerra e da ditadura, como quadro fixo composto pelo corpo humano. Durante certas projeções do vídeo, o boneco está de braços abertos, de sorte que a sombra de seu braço seja projetada contra a imagem, numa acepção indicativa.
Numa cena posterior, Fernanda se monta como Carmen Miranda, e assim apresenta trechos do manual de interrogatório da CIA, de 1963, discorrendo sobre estratégias para minar a resistência dos presos. Entre elas está o uso de uniforme, às vezes maior que o número do prisioneiro. O mesmo ocorre com a Carmen Miranda / Fernanda, que não consegue cantar Disseram que eu voltei americanizada porque, quando levanta as mãos, a saia cai. O processo de desmontagem subjetiva passa, aqui, pela ideologia do imperialismo. Para se compreender a complexa dialética em jogo, pode-se fazer uma aproximação com Roda-Viva, de Chico Buarque. Quando a revista americana TIME decide que a moda era a música popular, de cor local, o Anjo da Guarda de Benedito Silva, mistura de marketeiro e agente, cria o personagem afeito ao tipo que a indústria cultural imperialista pedia, e como Benedito Lampião vai aos EUA cantar no Carnegie Hall. Desse modo, o popular é criado a partir de seu apelo mercadológico, para ser fogo fátuo nas modas dos países centrais. Ainda na peça de Chico, interessa notar a contrapartida disso, ou seja, o Capeta, a mídia nacional, desprestigiada pelo sucesso de Benedito Lampião, acusa-o de se vender aos americanos. Há um embate entre os que defendem que ele levou nossa música “autêntica” ao centro do mundo e os que o chamam de vendido: esses vencem, afinal.
Processo dialético similar pode ser pensado em relação à figura controversa de Carmen Miranda: de fato, não importa de que ângulo se veja, a subserviência aos interesses da indústria cultural é completa, cabendo a crítica à lógica do sistema. Carmen Miranda como produto americanizado, sendo criticada por quem também se dobra às injunções da lógica do capital no campo da cultura — ou seja, a classe dominante brasileira — é uma contradição que remonta à nossa condição periférica e à nossa inserção subordinada às lógicas que parecem universais. Nosso torcicolo cultural é apresentado sem meias palavras e sem uma chave interpretativa direta e imediata. A Carmen Miranda de Fernanda Azevedo é estilizada, estridente, e seus movimentos marcados pela limitação da calça maior que seu número, equivalente a um uniforme ideológico; por outro lado, a letra da música ataca os seus críticos até mesmo pela hipocrisia de seus argumentos, partindo de quem vem o ataque.
O processo rápido em Morro como um país é constituído por várias etapas: Fernanda se maquia cantando uma música pop americana, depois explica estratégias de cooptação da CIA, canta como Carmen Miranda (o estridente exagerado é comentário da Fernanda), expressando assim com o mínimo aspectos do longo processo de nossa modernização conservadora, que se equilibra numa “dialética rarefeita entre o não-ser e o ser-outro, na formulação de Paulo Emílio Salles Gomes” (PASTA, 2010, p.15).Ou seja, situa-se entre a não-formação do sujeito burguês e o desejo de macaquear o modelo de fora, expressão das ideias fora do lugar de Roberto Schwarz. Já que o capítulo fala de nossa formação histórica capenga e conservadora, o comentário de Fernanda que fecha o quadro é certeiro: “o tempo avança recuando”.
Esse quadro adota uma forma alegórica muito efetiva. A alegoria permite, ou exige, a busca de dinâmicas afins e significados históricos mais amplos, o que o material documental bruto dificilmente alcança. Na peça, portanto, essa cena tem papel-chave. Isso não desmerece o fato documentado, pois o modo como esse surge na peça o potencializa, mas deve-se notar a grande diferença dessa cena em relação às demais. Ela é um dos poucos momentos em que Fernanda se veste, pinta e canta como um personagem. No entanto, como vimos, a atriz Fernanda não se apaga por essa alegorização, primeiro pela própria estrutura da alegoria, segundo pela forma da peça, que já guardou espaço cativo para a Fernanda se imiscuir entre os materiais.
Noutro quadro, slides com documentos secretos da CIA são mostrados, a respeito da participação efetiva dos EUA no golpe civil-militar de 1964, documentos nos quais são mencionados 6 tanques, 10 aviões cargueiros, 110 toneladas de munição, quatro destroyers, 6 fighters, capítulo esse muito pouco discutido com respeito à instauração da ditadura brasileira. Essas relações, já de conhecimento público, não são de interesse da maior parte da elite dominante e, mesmo hoje, permanecem à margem, assim como o papel da própria imprensa brasileira no golpe.
Noutro capítulo de atualização da história, que continua viva como potência até que um momento presente em perigo a signifique, Fernanda mostra uma folha de papel onde se lê: UNE-1964 / Favelas-2012. Nos dois casos, incêndios interromperam discussões e processos vivos de luta contra as forças dominantes. Em 1964, o prédio da UNE, com o teatro onde se ensaiava Os Azeredo mais os Benevides, de Vianinha, foi incendiado pelos militares; em 2012, um mapa da valorização imobiliária em São Paulo e do incêndio em favelas mostrou “uma notável convergência” (NASSIF, 2012), relacionando as garras das forças da ditadura com as do capital. O comentário de Fernanda, no sentido do perigo que atualiza a destruição da UNE e, mais uma vez, remete à mediação entre a ditadura civil-militar e a lógica do capital, processo que ocorre tantas vezes que alcança na peça a estatura de forma, com novo comentário elucidativo: “Quantos incêndios são necessários para se contar uma história?”
Mais adiante assistimos a um vídeo intitulado Brasil: estado de exceção.Temos uma montagem que mostra índios catequisados e índios acorrentados pelo pescoço; pau de arara nos escravos e na repressão da ditadura; escravos do XIX e negros do XXI presos por cordas no pescoço; tropa de choque, Alckmin, MST; Lula e Sarney: Pedro Bial; Chacrinha; Jango discursando para os militares; Getúlio Vargas; Costa e Silva, Geisel; Juscelino com presidente americano; O Brasil ganha a copa de 1970; Jairzinho comemora com o ditador Médici; Blatter mostra que a copa de 2014 será no Brasil. Nesta e noutras sequências expondo contradições históricas de modo direto, Fernanda comenta ausentando-se da cena, recurso diametralmente oposto ao de sua caracterização como Carmen Miranda.
Quem permanece indicando a cena é o boneco, cuja mão é recortada pelas imagens. Condizente com o percurso até agora, são questões que surgem no nosso passado mais remoto mas que continuam atuais. A tropa de choque em São Paulo, em plena democracia, a questão da escravidão e do espaço social dos negros, o fisiologismo do PT com Sarney, a manipulação ideológica do futebol pela ditadura e, agora, pela FIFA e pelo mercado internacional do futebol. Embora a rapidez dos fotogramas impeça uma análise quadro a quadro, fica claro por essa listagem o interesse em mostrar o estado de exceção não apenas nos períodos de ditadura, mas também da atualidade e atitude neoliberais. Os momentos de totalização são fugidios, porém recorrentes e dão sustentação à estrutura, embora não ganhem a mesma atenção da remissão à ditadura.
Em sequências seguintes isso se explicita: Fernanda dubla Eu te amo meu Brasil, canção que fez sucesso em 1970 com Os incríveis, uma patriotada composta de versos difíceis de engolir, repletos de clichês e lugares-comum, uma absoluta glorificação da cegueira e alienação político-ideológica. Fernanda a canta como títere e, então, coloca um saco plástico no rosto, índice da tortura, enquanto continua cantando o refrão.
Outro quadro representativo encena um diálogo utilizando-se de cartas trocadas entre o general-ditador Geisel e dois interlocutores. Geisel é interpretado pelo boneco articulado, que veste um elmo medieval. O assunto deles é a eficiência do assassinato de militantes da esquerda revolucionária para o fortalecimento da ditadura e para a preparação de uma suposta abertura lenta, gradual e segura para o governo civil, sem abrir mão do AI-5 nem dos assassinatos da resistência. “General: Melhorou mesmo quando nós começamos a matar. Geisel: Olha, matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser.” O sangue que sai do livro em que estão as cartas corre pelo seu braço, em comentário silencioso porém eloquente de Fernanda.
Chegando perto do final, uma menção direta à Antigona de Brecht, com o intuito de discutir a função da arte em tempos sombrios:
Creonte trava uma guerra de pilhagem com a longínqua Argos; eu, Antígona, enfrento o desumano, quero enterrar o meu irmão; ele, Creonte, me aniquila. Mas a sua guerra, agora desumana, escapa a seu controle; eu peço a vocês que busquem na memória ações semelhantes no passado recente, ou a falta de ações semelhantes. Então vocês verão porque nós, atores e atrizes, pisamos nessa pequena arena de jogo (...)(KIWI, 2014)
Ela retoma os movimentos com os braços que fecharam o primeiro bloco da peça, mas agora sabemos seu caráter de interpelação e para estabelecer relações: apontam para o público, para Creonte, para Antígona e para Fernanda. Não eram meros movimentos coreográficos soltos, mas indicações e interpelações. O jogo da luta contra a opressão hoje, em que arena é jogado? Qual o papel do público, qual o papel de cada um de nós? Na cena seguinte, uma militante da esquerda brasileira, exilada na Alemanha, conta a tortura que sofreu e a importância da imaginação como instrumento da luta, depois Fernanda conta do teatro dos presos políticos na ditadura: todos quietos, ouvindo em silêncio e com olhos fechados uma narração, interrompida ao menor sinal da entrada dos carcereiros, terminando com a palavra “Cortina”, e com palmas em silêncio, uma obra de arte que ajudava os presos a se manter vivos. Ela coloca de novo as camisetas com as fotos dos desaparecidos e mortos da ditadura, retoma: “eu sou os que foram” e, mais adiante, cortina.
Retomando pontos importantes, a peça é construída sem a presença do dramático, sem personagens e conflitos da esfera privada e que atuem em nível intersubjetivo, nem mesmo o mergulho intrassubjetivo imotivado pelo mundo objetivo. Sendo assim, categorias como o diálogo, a ação, curva dramática, não têm lugar. Não há lugar sequer para a criação de um universo ficcional qualquer, pois todas as idas e vindas no tempo e no espaço estão ancoradas no presente enunciativo, referem-se a ele tanto quanto às situações nas quais ocorreram. Isso se dá pelo modo como é construída a relação entre Fernanda, os materiais e o público. Todos os recursos dramatúrgicos e cênicos corroboram com essa perspectiva: do figurino simples à luz fria e geral, passando pelo estilo naturalista e algo distanciado da atriz ao se relacionar com os personagens, ou melhor, mostrá-los, ao espaço despido de qualquer ambientação específica. Não há, também, um fio dramático em torno de um tema único, mas a apresentação de situações históricas, colocadas em perspectiva em relação a hoje. Outro ponto de destaque é a concepção da arte como médium-de-reflexão de grande alcance, a partir de um conceito de materialismo histórico de matriz benjaminiana, que não se mede cronologicamente ou tomando o passado como factual e morto, mas como vivo e em luta com a ideologia que está na linguagem, nas instituições, na cultura e, como não, nos sujeitos históricos. Daí a importância do modo como Fernanda organiza a forma da peça, pela montagem dos materiais e o modo como são apresentados, pelos seus comentários pontuais interpelando o público e a pressão da vida social criando uma paradoxal teatralidade, que é tanto criação estética quanto apelo à vida e à rememoração.
A peça não se fecha sobre o terreno inextricável da subjetividade. Ela parte do mundo objetivo, que reflui sobre a subjetividade que, depois, pode agir sobre esse mundo. Embora Fernanda esteja sozinha em cena, a estrutura da peça nos leva para o oposto de uma remissão última à subjetividade impotente, pois historiciza e perspectiva esse recuo como momento ímpar do processo ideológico, o que faz a partir da identificação e relação das aporias e impedimentos objetivos. Fernanda funciona como uma espécie de comentadora das cenas apresentadas por ela mesma, em relação às quais ela se posiciona, antes como representação coletiva do que subjetiva, sem perder, com isso, a dimensão subjetiva — a reconstrução histórica a contrapelo que a peça propõe, buscando seus pontos de apoio históricos para a compreensão das aporias e crises do presente, exige uma localização do discurso, uma posição subjetiva construída objetivamente. O comentário interrompe a narração, ou antes perspectiva-a, trazendo para a peça outro elemento de distanciamento. O mergulho identificatório que alguns materiais potencialmente propiciariam é bloqueado por essa instância organizadora.
O comentário de Fernanda pode estar num gesto, numa frase, numa entonação, na caricatura de alguns personagens como Geisel e Carmen Miranda, no modo de se mover no palco, na iluminação, como também na montagem que às vezes justapõe, noutras coloca simultaneamente, ou situa como síntese, contradições e relações da vida social, sob o signo do choque. O comentário também faz ver que o conceito de história tradicional, que a compreende como sucessivos eventos que preenchem um tempo homogêneo e vazio, marcado pelos feitos de grandes homens ou países, é ideológico já por essa estrutura. A peça propõe o salto entre épocas com afinidades eletivas, em que um tempo cita outro e contribui para que se compreenda tanto as aporias do presente como as do passado. Como a boa lição do materialismo dialético já cansou de provar, a razão capitalista repousa sobre a valorização irracional do capital, que acaba por tocar todos os campos da vida social, e só se pode compreender momentos e áreas específicos desse complexo se houver a tentativa de se estabelecer as relações que levam à essa razão primeira. Marcas dessa atitude em relação ao passado são o relógio que avança recuando, o boneco articulável que faz uma determinada posição — quase um gestus — permanecer fixo como um quadro ao longo das cenas, como também em comentários sintéticos como ‘Nós não estamos em paz’, ‘Eu sou os que foram’, ‘Eu odeio esse país’, ‘Eu tinha menos nove anos’ (em 1964), ‘O reverso de todas as leis é a justiça’, ‘Morro como um país’, ‘O tempo avança recuando’, já consideradas ao longo dessa análise e que tratam da urgência de uma revisitação da história para a compreensão do presente.
Não se trata de comentários que conduzam com mão de ferro os espectadores. Há ilações e injunções que exigem muita mediação crítica, embora também haja a apresentação de situações facilmente compreensíveis, de modo que o maior trabalho crítico está no estabelecimento de relações entre situações distantes no tempo. Tomando por base o verbete Comentário, escrito por Kuntz (2013), “o comentário situa-se num entre-dois, entre o drama e o espectador. (...) Pode impor um sentido ou estimulá-lo [o público] a construir outro comentário, que não seja a simples redundância do que foi feito no palco.” (p. 52) Segundo ela, esse traço pode ser aprofundado de modo que o comentário deixe de estar à margem para ocupar o centro da estrutura formal da peça, aproximando-o da estética brechtiana, segundo a qual a interpretação da peça torna-se a tarefa principal do teatro, condição essa que deve estar inscrita na própria tessitura formal da peça, como um processo que já é estabelecido pelo próprio teatro.
Essa perspectiva encontramos nos comentários de Fernanda, que organiza como uma Comadre de Revista de Ano que passasse a história do Brasil em revista. Qual raisonneur às avessas, ela exerce explicitamente o papel de desmontar e expor o abuso e a exploração das instituições burguesas. Se Frivolina, comadre de O tribofe, revista de Artur Azevedo de 1891, se envolve com a especulação financeira no Encilhamento, como anti-heroína, Fernanda procura o ponto de vista das classes baixas, com a lição de Brecht e de Weiss sobre o teatro documentário, e daí se aproxima do público, mantendo a distância necessária para a crítica. O ato de mostrar e de comentar a cena apresentada ascende ao nível do que Brecht chamou de Grund-gestus, ou Gestus-base: “Para o ator, “historicização” constitui uma “atitude interpretativa fundamental”, o que Brecht chama de Grund-Gestus.” (Ocamorana, 2014)
A peça trabalha sobre o eixo da exposição das contradições do modo mais cru possível; não há um espaço neutro, mas sempre interessado e olhando de esguelha. Para isso a aproximação com os espectadores, que em tese compartilham as avaliações feitas pela peça, em chave didática de formação. Essa aproximação cuidadosa e algo tímida não é ingênua, mas está atrelada ao teatro documentário e, ao menos em parte, sua validação enquanto documento. Com Peter Weiss, no teatro documentário o assunto pode ser o documento intocado, mas não a forma de sua apropriação e expressão cênicas, sendo o intuito não a apresentação de uma fotografia, mas das relações entre fatos históricos não transmitidos nem discutidos pela imprensa e pelo discurso dominantes. O teatro documentário está em busca de sentidos latentes esperando para serem salvos do esquecimento e ganharem vida, contribuírem para um melhor conhecimento da prática de encobrimento e apagamento ideológicos. Para que isso se efetive, a postura não é de enfrentamento direto ou de sedução sentimental, mas a construção de uma distância segura sem perda do contato.
Essa é a segunda ancoragem teórica fundamental da peça, o teatro documentário. A lição de Peter Weiss é a que mais nos ajuda a compreender o alcance do projeto da Kiwi. Em primeiro lugar, a própria presença da Fernanda atriz alude à matéria social imediata, ao não-apagamento da teatralidade pela vida social que se imiscui nos demais materiais. Além disso, documentos, cartas, entrevistas, notícias de jornal são utilizados, sem alteração no conteúdo, mas elaborados formalmente para uma exposição das contradições históricas e a inserção brasileira na lógica do capital internacional, ontem como hoje — na peça, aliás, mais ontem que hoje. Importante também, nesse sentido amplo de teatro documentário, a utilização da obra de arte como documento com “autenticidade estética”, na expressão de Weiss: seja a Antígona de Brecht, seja a importância da imaginação para a resistência contra um sistema opressor, seja a ideologia explícita na música dos Incríveis, ou no teatro nos presídios, a arte formaliza questões cruciais de um determinado contexto histórico e tem enorme função mediadora, já um material formado que serve como ponto de partida para o pensamento crítico. Benjamin utiliza a obra de Baudelaire para discutir os sonhos do capitalismo na Paris do século XIX, já anotando as contradições que fariam seu ocaso teórico e prático no século XX, não obstante o falso tom de vitória do neoliberalismo em 1989, e que ficou às claras em 2008, assim como a força do discurso dominante torcendo a interpretação para que a culpa caísse sobre os Estados gastões ou sobre determinados gestores inescrupulosos, e não na sanha pós-desregulamentação dos mercados financeiros.
O teatro documentário critica o “encobrimento”, o “caráter velado”, a “falsificação da realidade” e a “mentira” (termos de Weiss, 1968, tradução nossa). Weiss argumenta que as forças dominantes tem um projeto consciente de manipular a verdade de acordo com seus interesses, o que consegue efetivar pelo controle da grande imprensa, do rádio e da televisão. Já em 1968 dizia que a historiografia burguesa minimiza ou despreza, por vezes,todo um período histórico, não apenas pela veiculação de notícias incompletas, mas principalmente pela sua teoria da história, também interessada ao pressupor que os fatos isolados têm valor epistemológico completo em si mesmos. Isso subsidia o modo fragmentado de um jornal televisivo, fragmentação negativa pois rechaça a relação significativa entre as notícias apresentadas, no plano sincrônico como no diacrônico. O acúmulo de informações desencontradas torna-se mera coleção, mas nenhum sentido. O teatro documentário se coloca contra tais tentativas de apagamento da história, tanto pela escolha dos materiais, seu modo de exposição e as mediações entre eles. Peter Weiss enfatiza que esse teatro tem tendência política, sendo solidário com o lado dos explorados e dos perdedores. Percebe-se que a concepção de história e de crítica esteticamente formalizada em Morro como um país tem afinidade com essas considerações. Sendo assim, tanto o conteúdo como, especialmente, a forma da peça (comentário, presença do plano de enunciação da atriz e o teatro documentário) conferem relevância especial a essa peça.
Como foi visto, embora possamos discutir a peça a partir do conceito de monólogo, por conta da atriz estar sozinha em cena, em Morro como um país há uma subversão completa do monólogo seja como forma apropriada para o teatro íntimo ou o intimista, e mesmo do monólogo épico de projetos pós-dramáticos que pretendem buscar novos moldes arquetípicos em nível ontológico. Se é verdade que estes três casos acima citados escapam ao terreno limitado da dramática tradicional, eles têm também em comum o afastamento estético do plano histórico como lugar para a compreensão do homem no mundo hoje, seja subsumindo-o a um plano subjetivo fundante, seja pela busca do “transhumano”, que como se percebe também é “transhistórico”.
A peça funciona como exemplo crasso da tradição do teatro dialético, já bem sedimentada no Brasil. Nesse sentido ocorre uma espécie de usurpação da forma da dramaturgia não-dialética para o campo do materialismo histórico, perspectiva crítica essa decisiva ao exigir a historicização dessas categorias teóricas contemporâneas, hoje dominantes, como é o caso do teatro íntimo e da estética pós-dramática. O processo de acumulação teórica do campo dialético não pode abrir mão de lidar com essas formas modernas de arte, que em sua limitação à série estética (história das formas literárias) tomada como autônoma, tocam a história como mero instrumento, como tempo vazio, e a partir desse ponto de vista supostamente neutro têm enorme potencial para se tornar reacionárias. Afinal de contas, essa visão de história e de arte isola ambas das mediações que realizam com os demais campos da vida social — afetivo, político, econômico, ambiental, do trabalho — e contribui para sua impotência crítica. Hoje, embora não vivamos o pesadelo idílico do fim da história de Francis Fukuyama, estamos submetidos à lógica implacável do capital e à suposta falta de alternativas para sair das crises que vivemos, o recuo estéril à subjetividade se apresenta como um impedimento para sua superação. A obra de arte tem função decisiva nesse processo, e uma peça como Morro como um país toca nesse nervo doído de modo útil e necessário.
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