ARTIGOS

 

Os grupos de mulheres no enfrentamento à violência de gênero: direções éticas

 

Women's groups in gender violence confrontation: ethical directions

 

Los grupos de mujeres en el enfrentamiento a la violencia de género: direcciones éticas

 

 

Luciana da Silva OliveiraI; Kelly Dias VieiraII; Roberta Carvalho RomagnoliIII

IUniversidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil. https://orcid.org/0000-0002-6356-8272
IIPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil. https://orcid.org/0000-0002-2888-7219
IIIPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil. https://orcid.org/0000-0003-3551-2535

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo discute os grupos de mulheres, dispositivos utilizados desde o início dos movimentos feministas para trabalhar questões de gênero, como um caminho para a construção e intensificação de estratégias de resistência junto a mulheres em situação de violência de gênero. Propomos algumas direções éticas que conduzem a práticas micropolíticas capazes de sustentar no grupo aquilo que se multiplica entre suas participantes, inventando possíveis entre impossibilidades e apostando na potência de conexões entre diferentes modos de existência. Grupo ético-estético-político que gera efeitos e que pode favorecer a produção de novos entendimentos e práticas relacionadas às composições de gênero e às relações de poder vivenciadas pelas mulheres em seus relacionamentos e na sociedade. A aposta é que nestes grupos ocorra a articulação entre subjetividade e política e que o espaço grupal permita que as cristalizações de lugares e papéis que as mulheres constroem em suas histórias se desfaçam.

Palavras-chave: Violência de gênero; Grupos de mulheres; Micropolítica; Produção de subjetividade.


ABSTRACT

This paper discusses women's groups, devices used since the beginning of feminist movements to work on gender issues, as a way for the construction and intensification of resistance strategies with women in situations of gender violence. We propose some ethical directions that lead to micropolitical practices capable of sustaining in the group what is multiplied among its participants, inventing possible alternatives between impossibilities and exploring the potency of connections between different modes of existence. It is an ethical-aesthetic-political group that generates effects and that can facilitate the production of new understandings and practices related to gender compositions and to power relations experienced by women in their relationships and in society. The bet is that in these groups the articulation between subjectivity and politics occurs and, besides that, that the group space helps to disappear the crystallizations of the places and roles that women construct in their stories.

Keywords: Gender violence; Women's groups; Micropolitics; Subjectivity production.


RESUMEN

Este artículo analiza los grupos de mujeres, dispositivos que se han utilizado desde el comienzo de los movimientos feministas para trabajar en temas de género, como una forma de construir e intensificar estrategias de resistencia con mujeres en situaciones de violencia de género. Proponemos algunas direcciones éticas que conducen a prácticas micropolíticas capaces de sostener en el grupo lo que se multiplica entre sus participantes, inventando posibilidades entre imposibilidades y apostando por el poder de las conexiones entre los diferentes modos de existencia. Grupo ético-estético-político que genera efectos y que puede favorecer la producción de nuevas comprensiones y prácticas relacionadas con las composiciones de género y las relaciones de poder que experimentan las mujeres en sus relaciones y en la sociedad. La apuesta es que en estos grupos ocurra una articulación entre subjetividad y política y que el espacio grupal permita que las cristalizaciones de lugares y roles que las mujeres construyen en sus historias, se deshagan.

Palabras clave:Violencia de género; Grupos de mujeres; Micropolítica; Producción de subjetividad.


 

 

Introdução

Pautada na violência de gênero, a violência contra a mulher é um fenômeno complexo resultante de construções sociais e históricas que demarcam espaços de poder hierárquicos e assimétricos entre mulheres e homens, normatizando papéis e valores e reforçando relações de poder a serem questionadas (Heilborn, Araújo, & Barreto, 2011). Tal violência efetuada contra as mulheres acompanha o percurso histórico da humanidade e apresenta diferentes conteúdos e formas nas sociedades, se manifestando na esfera privada, de modo que "o lar que em outras situações seria a referência de refúgio e proteção, nestes casos, configura-se como local privilegiado para a prática e a ocultação da violência" (Lucena, Vianna, Nascimento, Campos, & Oliveira, 2017, p. 2).

Embora sua magnitude seja em grande parte invisibilizada, além de ter graves consequências sociais e econômicas, esta violência se configura como um problema de saúde pública. Isso porque os agravos gerados pelas violências são profundos, afetando a saúde e o bem-estar de individualidades e coletividades, sobretudo a saúde física e mental das mulheres. Nessa direção, este fenômeno não pode ser tratado como se fosse restrito a alguns segmentos, pois permeia todas as camadas sociais. Prevenir e enfrentar essa violência necessariamente envolvem a redução das desigualdades de gênero, exigindo o engajamento de diferentes setores da sociedade, para se garantir que mulheres e meninas tenham acesso ao direito básico de viver sem violência (Garcia, 2016).

Os processos de produção de subjetividade de mulheres em situação de violência de gênero se fazem por um conjunto bastante heterogêneo de fatores, como é o caso do medo, dos estereótipos, da discriminação e do silenciamento. Essas marcas que vão compondo o cotidiano da violência atuam afetando e intensificando de modo particular os anseios e dilemas que atravessam essas mulheres. Essas tensões repercutem em diferentes dimensões de suas vidas, como é, o caso das relações familiares, no trabalho, na convivência social, entre outras.

No entanto, mesmo nestes contextos de violência, as mulheres não assumem apenas posições de submissão, podendo transitar para posições de protagonismo e empoderamento, dentro de uma perspectiva de resistência. Nesse sentido, alguns dispositivos de intervenção psicossocial vêm contribuir para a construção e intensificação de estratégias de resistência por parte das mulheres em situação de violência, dentre eles, os grupos de mulheres, que têm sido um dispositivo utilizado desde o início dos movimentos feministas para trabalhar questões de gênero. Neste contexto, o grupo representa um caminho para a construção de estratégias coletivas de resistência (Meneghel et al., 2005).

Ao se fortalecerem entre si, as mulheres reunidas se potencializam na troca de experiências, para além de um simples desabafo, como pontuam Oliveira e Araújo (2018). Acreditamos que, no espaço dos grupos de mulheres, a processualidade dos movimentos subjetivos pode manifestar-se na compreensão de contradições, na construção de novas percepções e no reconhecimento de experiências, dores, potências e estratégias. É nesse sentido que este artigo busca problematizar em que medida o trabalho de grupo pode se configurar como uma micropolítica que dá passagem ao que se multiplica entre suas participantes, inventando possíveis entre impossibilidades e apostando na potência das conexões entre diferentes modos de existência.

Entendemos o grupo como um vetor de processos de subjetivação, processos que comportam a complexidade e o movimento. A subjetividade não é compreendida aqui como estática, pronta, universal, e sim uma composição complexa, heterogênea, processual, que se constitui por meio de elementos das mais variadas ordens. Esses elementos a perpassam, construindo e desconstruindo-a infinitas vezes, de forma imanente e ininterrupta, sem condicioná-la somente a uma de suas facetas, sem reduzi-la a apenas uma condição, mas com afetações e possibilidades infinitas.

Partindo dessa perspectiva, da subjetividade vista "de modo processual e imbricada a operadores ambientais, contextuais, políticos, tecnológicos e socioculturais, que interpelam os corpos cotidianamente", Silva e Carvalhaes (2016, p. 248) nos auxiliam a pensar sobre a importância e potência do trabalho em grupo. Essa modalidade de intervenção é prioritária nas políticas públicas, contexto em que as intervenções que se restringem a propósitos unicamente individuais correm o risco de se tornarem demasiado reducionistas, simplistas ou, até mesmo, nocivas. Isso porque, considerar somente o indivíduo favorece homogeneizações a partir do princípio de que os processos de subjetivação são idênticos para todas as pessoas, produzindo subjetividades estanques, passíveis de ações padronizadas. No grupo, as diferenças são convocadas e se compõem por fluxos, por linhas, influências que se processam em conexões durante o percurso inédito e provisório que a grupalidade percorre. O grupo efetua conexões, deslocamentos das lógicas identitárias, arremessando a subjetividade em processualidades através de agenciamentos com elementos heterogêneos. Composições nas quais o interno e o externo, o dentro e o fora da subjetividade estão unidos, interpenetrando-se continuamente, sustentando outras existências, novos arranjos subjetivos.

Nesse contexto, entendemos o grupo como um intercessor para processos de subjetivação inventivos, suporte para outras formas de lidar com a violência. Nessa direção, este artigo discute os grupos de mulheres como um caminho para a construção e intensificação de estratégias de resistência junto a mulheres em situação de violência de gênero, sugerindo algumas direções éticas para a prática com esses coletivos. Nossa proposta não é discutir a dimensão técnica e metodológica dos grupos de mulheres, mas sim indicar e problematizar algumas pistas, caminhos possíveis, que nos conduzam a práticas micropolíticas. Desse modo, a busca é pela possibilidade de criação de condições favoráveis à produção de novos entendimentos e práticas relacionadas às composições de gênero e às relações de poder vivenciadas pelas mulheres em seus relacionamentos afetivos e na sociedade como um todo, estimulando no espaço grupal outras maneiras de ser, outras corporalidades, outras formas de arranjar a vida, que configurem como resistências aos modos dominantes de produção de subjetividade.

O cotidiano do grupo-dispositivo e seus efeitos

O ponto de partida para essa discussão é a experiência de uma das autoras com grupos em uma política pública de enfrentamento à violência de gênero e as reflexões geradas a partir dessa experiência. Assim, problematizamos os usos e táticas desenvolvidos nos processos grupais com mulheres em situação de violência de gênero, enfatizando como essas apropriações contribuem para a produção de diferentes subjetividades e territórios.

Nossa prática profissional em uma política pública de enfrentamento à violência de gênero, um Centro de Referência da Mulher situado na cidade de Belo Horizonte-MG, compreendeu a realização não só de atendimentos individuais (psicossociais e psicológicos), mas também de intervenções em grupo, que visavam criar condições necessárias para que as mulheres atendidas construíssem, com o suporte do serviço, possibilidades de ruptura com a violência que vivenciavam de forma assídua. Trata-se de um trabalho cheio de riscos e também de possibilidades de criação, posto que não existe uma intervenção ideal, segura e única, dirigida a todas as situações, tampouco uma forma de atendimento considerada mais eficaz diante da complexidade constituinte das situações de violência em questão.

Em todas essas modalidades de intervenção ficava claro que o modo como homens e mulheres se comportam em sociedade corresponde a um intenso aprendizado sociocultural que nos ensina a agir de acordo com prescrições atribuídas a cada gênero. As intervenções também evidenciavam as relações de poder assimétricas e naturalizadas entre homens e mulheres. Além disso, era tangível a angústia que acompanhava estas mulheres diante de situações em que precisavam fazer escolhas: optar por ir ou não ir para um abrigo de proteção com os filhos menores, deixando o restante da família ou mesmo os animais de estimação; se separar ou não do companheiro, para enfrentar uma vida sozinha; denunciar ou não o agressor e sustentar um inquérito policial; mudar ou não de cidade para se proteger do agressor que coloca sua vida em risco para encarar outro cotidiano etc. Como psicólogas, era preciso entender que estes são momentos de impasse diante da escolha de opções, em que as mulheres com frequência expressam angústia, sofrimento, indecisão, hesitação e muitas vezes, de fato, paralisam. São situações em que ao escolher uma alternativa, a mulher toma uma posição, decide ir por um caminho que exclui os demais, envolvendo perdas e a necessidade de novas composições.

Em nossos acompanhamentos percebemos que, mesmo dentro desta lógica social desigual e hierárquica, frequentemente naturalizada, em toda sua complexidade que produz sofrimentos, dilemas e tensões das mais variadas ordens, muitas mulheres construíam estratégias de resistência diversas, tais como: a busca de apoio junto a amigos/as, familiares e outras mulheres em situação semelhante; o silêncio e a contenção de emoções buscando manter a aparência de normalidade diante de situações de maior tensão e às vezes até de risco; a omissão de informações; o enfrentamento verbal; o embate corpo a corpo em defesa dos filhos quando eles também eram violentados pelo companheiro; fugas; entre outras atitudes que em alguns casos chegavam mesmo a trazer a possibilidade de rompimento com a situação de violência.

Nesse sentido, chamava atenção o fato de que muitas dessas estratégias de resistência apareciam com mais intensidade nas intervenções em grupo do que nos atendimentos individuais: o espaço grupal tendia a funcionar de modo mais horizontal e rizomático, sustentando a heterogeneidade e a conexão com múltiplos elementos, mantendo-se num fluxo de transformação constante, como afirmam Deleuze e Guattari (2011). Assim, o grupo favorecia movimentos de força, de solidariedade e unia diferenças. Isso nos faz pensar na importância do coletivo para o enfrentamento de violência de gênero. Com base nas ideias dos referidos autores, o coletivo remete a um plano de intensidades, a uma dimensão "entre" que sustenta conexões, plano de relações, no qual a exterioridade se exerce. Nesse sentido, o coletivo permite a saída do modo-indivíduo ainda tão presente nas intervenções com a violência e dá passagem a outros modos de expressão, favorecendo processos de subjetivação inventivos. No modo-indivíduo, assim designado por Barros (2009), que se contrapõe ao coletivo dos processos grupais, há uma valorização do privado, com ênfase nas habilidades e méritos pessoais, geralmente em ruptura com o social. Esta ênfase impede que a força do coletivo se exerça, que a intensidade da vida seja conquistada. Escóssia e Kastrup (2005) afirmam que este plano intensivo se opõe a uma abordagem dicotômica da realidade, convocando a complexidade e permitindo agenciamentos que alargam os sentidos e permitem a expressão de singularidades.

O espaço do grupo realizado com as mulheres muitas vezes potencializava que seus dilemas, tensões e perspectivas diferenciadas fossem manifestados e problematizados, criando condições para a invenção de novas lógicas sociais e políticas, capazes de promover enfrentamentos frente às situações de violência de gênero. Nesse espaço do grupo e suas conexões ganhavam também consistência as dimensões política, social e cultural do fenômeno da violência de gênero, possibilitando intervenções que remetiam a uma ordem coletiva, múltipla. A complexidade se fazia presente, conectando dimensões distintas e buscando sustentar o intensivo, a força da vida que se movimenta para a criação, e que aflorava em mudanças importantes no cotidiano mediante a participação nos grupos.

Para além dos casos de mulheres que conseguiam romper com a relação violenta ou que não rompiam com o relacionamento, mas rompiam com o ciclo da violência, outras mudanças não menos importantes eram relatadas, como o caso de uma participante que no final de um dos encontros contou que não sentia mais necessidade de tomar sua medicação para ansiedade e depressão, pois sentia o grupo como um espaço terapêutico; outra participante colocou que no grupo se sentia à vontade para falar e que chegava em casa se sentindo fortalecida para dizer "não" ao companheiro quando necessário; a melhora da autoestima também era relatada com muita frequência pelas participantes, que passaram a se valorizar, a se sentirem capazes e a viver melhor, reconhecendo a possibilidade de mudar de postura; outras ainda relatavam que perderam a vergonha em relação a publicização da violência quando era necessário pedir ajuda, por perceberem que outras mulheres passavam por situação parecidas, demonstrando a percepção de que seu problema é um entre tantos outros semelhantes e reconhecendo a violência de gênero como um problema social; a convivência e as novas amizades construídas a partir do grupo também eram citadas com frequência como fator que expandia a força da vida e potencializava as mulheres, dentre outros.

Por outro lado, havia momentos em que existia o risco de prevalecer no grupo um funcionamento totalizante e individualizante, tornando-o pretendente ao lugar de verdade. O modo dominante sobressaia, impedindo conexões, um modo de funcionamento nem sempre fácil de ser desmanchado, que retroalimentava binarismos e dualidades, afirmando concepções fechadas, unitárias, que limitam a experimentação e a produção de novos sentidos, e que pode até fomentar "invenções destrutivas". Referiam-se a momentos em que as mulheres insistiam em permanecer no lugar passivo de vítima; em que reproduziam estereótipos de gênero e sustentavam veementes crenças sociais conservadoras, como a ideia de que casamento tem de ser para sempre; em que pediam "soluções mágicas" para o problema da violência, desejando "receitas prontas" para lidar com o relacionamento abusivo; em que forças reativas e paralisantes emergiam sustentadas pelo sentimento de medo; em que a culpabilização das próprias mulheres pela violência sofrida ganhava eco dentro do grupo; entre outras situações delicadas, que exigiam um manejo atento e cuidadoso por parte das facilitadoras do grupo.

Assim, nesses grupos era possível perceber a emergência tanto de processos de subjetivação reprodutivos, que reiteravam a divisão tradicional de papéis de gênero, quanto inventivos, relacionados ao questionamento, à resistência às prescrições de gênero e à criação de novos territórios existenciais. Reprodução e invenção ganhavam espaço de problematização em processos grupais prenhes em conflitos, tensionamentos, medos, atravessamentos de ordem político-institucional, restrições materiais. Tudo isso fazia com que se instalasse um trânsito entre dimensões reprodutivas e dimensões inventivas da produção de subjetividades, que não se apresentavam de forma antagônica, mas sempre em processos de continuidades e de rupturas, em passagens de uma à outra, em situações cambiantes e parciais.

Nesse sentido, independentemente das metodologias utilizadas nos grupos (rodas de conversa, oficinas, grupos de reflexão, dentre outras), a proposta era de seguir algumas pistas e caminhos que nos conduzissem a processos grupais, ao coletivo. Ou seja, buscávamos situações nas quais prevalecesse a tentativa de superar aquilo que Barros (1994, p. 151) chama de "um certo modo de funcionamento capitalístico", em que há a predominância de "representações universalizantes e totalizantes". Em nossas intervenções, procurávamos ser intercessores de processos grupais em que a multiplicidade e a provisoriedade destacavam-se. A ideia de multiplicidade não tem necessidade alguma de unidade, pois sustenta a diferença e assim, não unifica nem totaliza, não lida com verdades e generalizações. Ao estabelecer conexões entre diversos elementos que possuem dimensões próprias e conservam suas diferenças, a multiplicidade não se refere ao múltiplo do um, ao muito do mesmo: "É somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo" (Deleuze, & Guattari, 2011, p. 23). Grupo como experimentação que busca alterar a hegemonia dos processos de subjetivação em curso, arriscando outros modos de composição (Barros, 2009). Invenção presente, por exemplo, quando as mulheres produziam outras composições com a violência de gênero, quebrando rotinas e certezas, por meio de questionamentos sobre o papel da mulher e do homem na nossa sociedade e nos relacionamentos. Nesse sentido, algumas vezes ouvíamos as participantes do grupo entoarem discursos naturalizados do tipo: "a mulher tem que aguentar a violência do marido", "minha avó e minha mãe sempre aguentaram as agressões do marido, eu também tenho que suportar", "homem é assim mesmo", dentre outros. Ideias e concepções arraigadas que ao longo das discussões no grupo e das intervenções das facilitadoras e das próprias participantes - "Será que mulher tem que aguentar mesmo? Eu não aguento!"; "Será que homem é assim mesmo e a gente tem de aceitar eles desse jeito?" - iam se deslocando, ganhando outras contornos, de modo que novos pensamentos e discursos eram produzidos. Manifestações que produziam efeitos concretos na vida das mulheres.

Entre modelos e obstáculos, encontram-se também deslocamentos, vividos na intervenção grupal, expressando a importância do coletivo e do dispositivo grupal em uma tentativa de convocar levezas e conexões com a vida. Podemos falar de um grupo-dispositivo, quer dizer, o grupo enquanto território - físico e existencial - atravessado e constituído por diferentes linhas de força, por elementos heterogêneos, que podem se articular, acionar certos modos de funcionamento e produzir determinados efeitos (Barros, 2009). Pensar em termos de movimentos e vetores, na tentativa de rastrear o que acontece "entre": entre as mulheres, entre vidas diferentes, entre especialista e usuárias. Perseguir o entre é também estar atento às intercessões: intercessões com os encontros, com as temáticas trabalhadas, com a violência de gênero, com as várias experiências e mundos ali presentes, forças circulando e criando desassossegos entre as mulheres que compõem o grupo.

Pensar e produzir um grupo como dispositivo analítico possibilita que as cristalizações de lugares e papéis que o sujeito constrói e reconstrói em suas histórias, se desfaçam, uma vez que o dispositivo, como descreve Deleuze (1996), é constituído de um conjunto de linhas de natureza diferente, que não demarcam ou envolvem sistemas homogêneos por sua própria conta, como o sujeito, o objeto, a linguagem etc., mas seguem direções, tracejam processos que estão sempre em desequilíbrio, e que ora se aproximam ora se distanciam umas das outras. Qualquer linha pode ser quebrada ou bifurcada, pois estão sujeitas a variações de direção e submetidas a derivações. Os enunciados formuláveis, os objetos visíveis, as forças em exercício, os sujeitos numa certa posição, funcionam como tensores ou vetores. Dessa maneira, o dispositivo é um agenciamento, um processo de conexões e engrenagens, que busca articular elementos que vem de diversas procedências e de diferentes naturezas. Essa articulação se dá em três tipos de linhas: de saber, poder e subjetivação (Deleuze, 1996). Portanto, nele ocorrem processos de produção e de reprodução ligados a relações de saber, poder e processos de subjetivação, ou seja, o dispositivo, nesse caso o grupo de mulheres, é uma máquina de produção de subjetivação, atravessada por linhas de saber e poder. O dispositivo pode ser entendido como uma máquina de produção de discursos e de ações-relações, em que se faz "falar" e se faz "ver", produzindo enunciações, visibilidades distintas, acontecimentos e modos de ser (Deleuze, 1996).

Assim, a busca é por um trabalho de grupo que remeta "a uma micropolítica que implica o intensivo, os processos de constituição de realidades, que abre o atual à pluralidade do socius e qualifica a trans-formação enquanto criação de possíveis" (Aguiar, & Rocha, 2007, p. 660). Grupo que dá passagem ao que se multiplica "entre" suas participantes, inventando outras maneiras de estar no mundo e apostando na potência das conexões entre modos de existência diferentes, que podemos observar, por exemplo, quando as mulheres comentam que chegaram "travadas" no encontro, com dificuldade de falar e mesmo de olhar para as outras pessoas, e que no final estavam se sentindo aliviadas, afirmando que as trocas foram produtivas e que as ajudaram a acreditar nas suas próprias capacidades.

É preciso dizer que, quando nos referimos a uma micropolítica, acreditamos que esta funcione como um plano em que existem "apenas intensidades, com sua longitude e sua latitude; lista de afetos não subjetivados, determinados por agenciamentos que o corpo faz, e, portanto, inseparáveis de suas relações com o mundo" (Rolnik, 2016, p. 60). Ao diferenciar macro e micropolítica, Baremblitt (1996) afirma que a distinção entre elas só pode ser feita num intuito pedagógico, já que micro e macro compõem processos que são imanentes. A macropolítica faz referência àquilo que é evidente, visível, enunciável, em que as unidades, as totalizações se destacam, já a micropolítica, em oposição ao macro, diz do minucioso, do miúdo, do singular que é a dimensão na qual surge a novidade, a produção. Essas duas dimensões estão presentes na violência de gênero, macropoliticamente, nas formas estereotipadas de ser homem e mulher, nas normas sociais que regem a relação entre eles, nas práticas instituídas, nos papéis de gênero, na naturalização das relações de poder, dentre outras e micropoliticamente, de forma invisível mas geradora de efeitos, na diluição das figuras de gênero que se desmancham em fluxos que perdem seu contorno no molecular e se tornam não mais homogeneizados e cristalizados, mas sim, intensivos, desejosos de conectar.

Nesta perspectiva da micropolítica, Romagnoli (2017) aponta, entretanto, que, como a micropolítica é de ordem invisível, molecular, pode funcionar tanto de maneira a sustentar agenciamentos inéditos, fazendo composições com forças potencializadoras dos encontros e da vida, como podem operar por microfascismos para oprimir, ainda que esta opressão se faça de maneira quase imperceptível. Isso porque as divisões feitas na macropolítica se molecularizam, se tornam finas, mas continuam a querer igualar, comparar, submeter e excluir. Acerca do funcionamento do microfascismo, Guattari (2016, p. 172) aponta que:

Todos os sistemas capitalistas conheceram as formas de micro-fascismo psicológico que consistem em desestabilizar interesses, quer em uma direção "negativa" do ponto de vista da libido, direcionando-a contra o indivíduo - sistema de inibição, culpa etc. - quer contra "os outros", tornando assim "positivo" o vetor repressivo - atitudes falocráticas, persecutórias, interpretativas, ciumentas, como um sistema de tomada de poder sobre o entorno (Tradução nossa)1.

Percebemos na vida dessas mulheres os microfascismos presentes nas suas relações consigo mesmas e com os outros. Esses microfascismos se expressavam nas opressões que elas mesmas se impunham, nos modelos de submissão que traziam consigo, nas inferioridades que produziam na convivência, nos julgamentos morais de outras mulheres, na negação da violência.

Mas como sustentar um grupo de mulheres comprometido com práticas micropolíticas que possibilitem a experimentação e que não se associem a práticas microfascistas? Um espaço em que as subjetividades possam se arriscar a outros modos de composição que se configurem como resistência às diversas manifestações da violência de gênero? A seguir buscamos traçar algumas direções éticas (e práticas), caminhos que entendemos como potentes no trabalho com grupos de mulheres nas políticas públicas ou em outros espaços de intervenção que privilegiem uma perspectiva micropolítica ativa e não reativa. A expectativa é que, compondo com práticas outras, essas direções éticas a serem consideradas na atuação profissional com esses grupos, possam contribuir para o alargamento dos territórios existenciais em jogo nos coletivos.

Algumas direções éticas no trabalho com grupos de mulheres em situação de violência de gênero

Considerando-se um grupo de mulheres em situação de violência de gênero no âmbito de uma política pública, podemos dizer que se trata de um espaço no qual se encontram vidas e experiências diversas. São mulheres com idades variadas, de diferentes classes sociais e muitas vezes moradoras de diferentes territórios da cidade. Mulheres casadas, solteiras, viúvas e separadas. Trabalhadoras formais, outras com ocupações não regulamentadas; aposentadas, donas de casa, desempregadas. Negras, brancas, pardas. Algumas são mães, outras apenas filhas. São católicas, evangélicas, ateias, leitoras de autoajuda etc.

No encontro de universos tão heterogêneos, é fundamental o acolhimento de todos os elementos que aparecem no grupo, inclusive as histórias e vivências acompanhadas de sentimentos de dor e sofrimento que muitas dessas mulheres carregam. Afinal, inicialmente a única coisa que sabemos que essas mulheres têm em comum é o fato de já terem vivenciado ou vivenciarem alguma situação de violência de gênero, linha dura que faz segmentos homogeneizantes de dor e sofrimento, macropolítica que se reproduz e que se ampara também em uma micropolítica reativa mantida por medos e inseguranças. Em um trabalho de grupo cuja violência de gênero é o principal tema aglutinador, é esperado que os afetos e emoções das participantes sejam mobilizados e venham à tona no espaço grupal, onde eles devem encontrar disposição para serem ouvidos e estímulo à livre expressão. Assim, uma primeira direção ética para um trabalho em grupo com mulheres em situação de violência diz respeito ao acolhimento das multiplicidades, buscando composições entre as diferenças. Acolhimento dos segmentos, dos endurecimentos e dos ciclos reprodutivos e também do que escapa a isso para fundar novos possíveis.

Pelbart (2008) nos traz algumas contribuições para pensar os grupos de forma múltipla e acentrada, levando em conta as singularidades e a potência das composições. O autor remete-se à noção de Espinosa de que cada indivíduo pode ser definido por um grau de potência singular e, por conseguinte, por um certo poder de afetar e ser afetado e que não sabemos a priori sobre este poder, portanto, é sempre uma questão de experimentação. Nesta perspectiva, um grupo se define enquanto encontro de corpos em relações de afeto, potência de subjetivação. Esta concepção desmonta o ideal de um grupo homogêneo, marcado pela igualdade e identidade entre seus membros, visto que os graus de potência dos indivíduos são singulares e consequentemente as composições que se efetuam também serão diversas. Assim, no caso dos grupos de mulheres em situação de violência de gênero, é fundamental que os diversos saberes, afetos, sentimentos, experiências e disposições das participantes encontrem permeabilidade no grupo. É preciso dar visibilidade para as múltiplas lógicas coexistentes nesse espaço de enfrentamento à violência de gênero, buscando garantir que elas se encontrem. E ainda é necessário que nesse encontro as diferenças se abram para a possibilidade de dialogar, de se agenciar, dando lugar a novas composições.

Nesse sentido, em termos práticos, é importante buscar a circulação da palavra, garantindo que todas as participantes sejam escutadas, valorizando as diferentes perspectivas, potencializando as singularidades e buscando seus pontos de conexão e diálogo. As pessoas responsáveis pela facilitação do grupo devem estar atentas para as possíveis hierarquias entre as participantes, de modo a tentar evitar que algumas participantes tenham o monopólio da palavra no dispositivo grupal. Isso pode acontecer, por exemplo, quando algumas mulheres têm maior facilidade de se colocar no espaço do grupo: aquelas que já conseguiram romper com a situação de violência há algum tempo em relação àquelas que ainda se encontram em relacionamentos abusivos e com dificuldade em romper com o mesmo; aquelas que já participam dos encontros do grupo há mais tempo em relação àquelas que iniciaram sua participação recentemente; aquelas que transitam com maior facilidade entre as instituições que compõem a rede de proteção à mulher (delegacia, defensoria, promotoria etc.) em relação àquelas receosas de acionar qualquer uma dessas instituições etc. Quando essas hierarquias aparecem no grupo é importante acompanhar o modo como elas se estabelecem, para tentar desmontá-las. Isso não significa silenciar posições contraditórias, com receio das tensões que elas criam. É preciso ter cuidado para não cair em um funcionamento grupal totalizador, homogeneizador, legitimador de uma única verdade. Várias histórias circulam no espaço grupal, diversas verdades, que não devem ser temidas por gerarem mal-entendidos e contradições. O grupo deve ser lugar para explorar tais contradições, compreendidas como multiplicidades que coexistem e não se opõem, compondo assim uma miscelânea de diferenças.

Podemos encontrar algumas pistas que nos ajudem a trabalhar as contradições e mal-entendidos que aparecem nos grupos na diferenciação que Foucault (2010) faz entre polêmica e problematização. A polêmica não abre espaço para uma discussão num mesmo plano, o polemista não vê no outro um interlocutor, mas "faz do outro um inimigo portador de interesses opostos contra o qual é preciso lutar até o momento em que, vencido, ele nada mais terá a fazer senão se submeter ou desaparecer" (Foucault, 2010, p. 226). Já a problematização enquanto trabalho específico do pensamento diz respeito à elaboração de uma dada questão, a transformação de um conjunto de complicações e dificuldades em problemas para as quais diversas soluções tentarão trazer uma resposta. O autor dá destaque para o fato de que para um mesmo conjunto de dificuldades, diversas respostas podem ser propostas. De fato, diante das dificuldades vivenciadas nas situações de violência doméstica, as mulheres propõem soluções diversas: denunciar o companheiro e terminar o relacionamento; não denunciar, mas romper com o relacionamento abusivo; tentar continuar no relacionamento, mas assumindo uma posição não mais de oprimida, mas de empoderada, numa tentativa de reconstruir o relacionamento sob outras bases que não a da submissão e da violência etc. No grupo, ao invés de partirmos de uma perspectiva moral e homogeneizante e elegermos uma dessas soluções como melhor ou mais indicada para todas as mulheres presentes, excluindo-se as outras saídas apresentadas, é mais potente produzir e estimular perguntas na seguinte direção: Como puderam ser construídas essas diferentes soluções para um mesmo problema? O que torna todas essas soluções possíveis? Como cada uma dessas soluções decorrem de uma forma específica de pensar, de problematizar a situação de violência, de acordo com os processos vivenciados por cada mulher? Quando questões desse tipo são exploradas no grupo, abrimos espaço para discussões problematizadoras que dão destaque à multiplicidade, evitando assim cair em discussões guiadas pela polêmica, que esvazia toda potência do pensamento, esteriliza o debate e não permite que novas ideias surjam.

Para abrir passagem à expressão das multiplicidades, a emergência do intensivo, do plano coletivo, nos grupos de mulheres também é fundamental estar atento a atitudes e posicionamentos culpabilizantes e infantilizantes, que trazem o modo-indivíduo e a reprodução, buscando desmontá-los. Esse tipo de postura expressa impaciência com as dificuldades alheias e a necessidade de produzir julgamentos, que muitas vezes acabam reproduzindo atitudes dos agressores e desencorajando aquela que tenta romper com a situação de violência.

Falar sobre vivências dolorosas e em alguns casos silenciadas por longos períodos exige um espaço em que as mulheres se sintam protegidas para narrar suas histórias e experiências, o que nos coloca uma segunda direção imprescindível para o trabalho de grupo: a ética do cuidado. Pautadas pela leitura que Deleuze faz de Espinosa e apoiadas pelas discussões propostas por Foucault em relação a biopolítica e cuidado, Romagnoli, Neves e Paulon (2018), ao discutirem as intercessões possíveis entre psicologia e produção de cuidado nas políticas públicas, nos alertam para o fato de que essa ética do cuidado só é possível se sustentada em intervenções que promovam em suas práticas processos singulares que colaborem com a autonomia das(os) usuárias(os) e não intervenções que de forma patologizante, prescritiva, tutelar e irresponsável, sirva à gerência da vida e das subjetividades em uma postura acrítica às imposições da lógica capitalista, naturalizando as desigualdades sociais e favorecendo à cisão entre social e político em sua prática. O grupo pode constituir espaço de confiança e proteção para as mulheres quando é composto por relações de cuidado experimentadas coletivamente através da abertura e disponibilidade para perceber, acolher e acompanhar os processos umas das outras.

No caso de mulheres em situação de violência, a tentativa de romper com uma relação violenta, geralmente, é em si um processo muito difícil, um caminho longo, muitas vezes tortuoso, cheio de dúvidas e hesitações, de idas e vindas, avanços e recuos, tentativas e desistências, pois envolve uma trama complexa de elementos e forças que não se desfaz de forma simples e imediata, pois se constitui de: afetos diversos e até ambivalentes com relação ao agressor (amor e ódio; raiva e pena etc.); riscos reais que demandam todo um planejamento para que a mulher consiga sair da situação de violência em segurança; algumas vezes dependência econômica ou mesmo emocional do parceiro; medo e vergonha de pedir ajuda etc. Ou seja, o processo de rompimento de uma relação violenta pode ser ainda mais difícil e demorado, durando meses ou anos, dependendo do grau de envolvimento emocional, dos riscos a serem enfrentados e sobretudo do apoio recebido dos amigos, familiares e profissionais com quem a mulher entrar em contato (Soares, 2005). O grupo pode ter um papel fundamental no apoio a essas mulheres quando se afirma como um espaço de acolhimento não culpabilizante ou infantilizante, entendendo que é comum que quem se encontra em uma relação afetiva violenta oscile deste modo, e que um dos maiores desafios está na configuração de um espaço em que as mulheres se sintam acolhidas para compartilhar seus processos sem julgamentos morais que podem dificultar ainda mais a construção de soluções para as dificuldades que enfrentam.

Esse cuidado presente na disponibilidade do grupo em acompanhar cada mulher em seus processos, se efetiva primeiramente quando se oferece uma escuta atenta, ativa e solidária, em que se busca transmitir à mulher que fala de suas vivências a certeza de que ela está de fato sendo ouvida, compreendida e respeitada em sua singularidade, permitindo que ela construa uma relação de confiança com o grupo. Estabelecemos assim uma relação de cuidado com o outro em que nos mostramos sensíveis às dificuldades enfrentadas pelas participantes e destacamos e valorizamos as conquistas que cada uma vai compartilhando com o grupo. Nesse sentido, a disponibilidade em acompanhar os processos das mulheres em sua complexidade, multiplicidade e movimento, exige certo tipo de presença, que afirma uma disposição em compor com as mulheres e valorizar as singularidades em jogo. Trata-se de estar presente e em sintonia com o outro, tentando compor com o seu movimento, criando outros possíveis. Vale ressaltar que, em um grupo dispositivo essas relações não devem estar referenciadas apenas na figura da(s) pessoa(s) que está(ão) como facilitadora(s), mas devem se fazer de forma conjunta, em uma experimentação compartilhada.

É, pois, fundamental que, a partir da abertura para a multiplicidade e de uma ética do cuidado que diz respeito a uma disponibilidade para acompanhar os processos umas das outras, as singularidades em jogo no grupo sejam valorizadas, o que acontece efetivamente quando reconhecemos a potência de cada mulher presente no grupo. Ou seja, os processos de diferenciação permanente da subjetividade, os diferentes modos como as mulheres conectam os elementos da subjetividade dispondo-os em arranjos próprios, que podem se manifestar em outras sensibilidades, outras maneiras de ser, outras corporalidades, outras formas de arranjar a vida, configurando-se como resistência aos modos dominantes de produção de subjetividade, precisam ser estimulados e intensificados no espaço do grupo. Assim, valorizar as singularidades do outro por meio do reconhecimento de sua potência, torna-se uma terceira direção ética para o trabalho com grupos de mulheres e significa reconhecer que cada participante do grupo tem a potência para construir seu caminho. Na experiência de uma das autoras como facilitadora desses grupos foi percebido que desde o primeiro encontro as mulheres apresentavam muita necessidade de falar e um grande respeito em escutar as outras, o que demonstrava não só uma disponibilidade para acompanhar os processos de cada uma, mas também um reconhecimento das singularidades umas das outras. E em alguns momentos era possível perceber que algo era comum em meio às singularidades, principalmente quando havia algum alívio, alguma diversão, algum reconhecimento, alguma epifania. Isso acontecia de múltiplas formas: uma palavra de acolhimento; uma brincadeira; um conselho de outra participante ou uma amizade cultivada; uma pergunta que virava reflexão. Não seriam essas formas de reconhecimento da potência do outro? Não seriam essas algumas das diversas composições possíveis de se efetuarem por meio dos encontros que se dão no espaço grupal? Não seriam afetações recíprocas que se produzem por meio das experimentações que se efetuam em um espaço de encontros?

Pensar o grupo como espaço de experimentação compartilhada, onde multiplicidades e singularidades encontram a possibilidade de comporem e se recomporem a todo momento, abrindo e inventando novos possíveis a partir de um "estar-com", implica num reconhecimento da potência do outro e não somente uma falta. Por meio desse reconhecimento é que as mulheres são convidadas a modificar o grupo e a modificar-se a partir do encontro de experiências e perspectivas múltiplas, que permitem que elas se aproximem de novos territórios existenciais e produzam novos agenciamentos subjetivos, novos processos de singularização. Consequentemente, são produzidas novas formas de enfrentar o viver, nas quais as mulheres podem produzir novos entendimentos e práticas para lidar com as violências e opressões presentes em seus relacionamentos afetivos.

 

Considerações finais

A abertura para a multiplicidade, buscando composições com as diferenças; uma ética do cuidado, entendida como disponibilidade para acompanhar os processos umas das outras; e a valorização das singularidades, por meio do reconhecimento das potências, são aqui apresentadas e discutidas como três direções fundamentais para o trabalho com grupos de mulheres em situação de violência de gênero. Essas direções possibilitam uma abertura para se aproximar do outro, para um "estar-com", que além de engendrar múltiplas experimentações e composições, permite que as mulheres, mesmo que gradativamente, comecem a entender a violência não apenas como uma questão pessoal, de cada uma delas, mas como um problema amplo, que atinge muitas mulheres, mesmo existindo diferenças entre elas, passando a inserir a violência de gênero também num contexto mais amplo, no contexto social e político em que vivem. Para além de fortalecer os vínculos entre as mulheres e o sentimento de pertença ao grupo, a percepção de que suas histórias têm pontos comuns também favorece a conexão de elaborações individuais a uma subjetivação coletiva, desenvolvendo a sensibilidade para a diferença e possibilitando transformações tanto individuais como coletivas, que muitas vezes estão relacionadas com o ganho de autonomia que as relações, trocas, experimentações e composições engendradas no espaço grupal podem gerar.

No entanto, perceber as trajetórias, os deslocamentos que algumas mulheres vão fazendo dentro de um grupo, a invenção e composição de novas formas de conduzir as suas vidas, e toda potência presente nesse trabalho de grupo, pode nos conduzir a armadilha de romantizar esse dispositivo de intervenção. Não podemos nos esquecer que, como discutido no início deste artigo, produção e reprodução, abertura e fechamento são movimentos imanentes de um mesmo grupo, que trazem modulações diferentes para o processo grupal, que ora é atravessado por situações mais rígidas e estabelecidas, ora por forças que podem instituir novos territórios existenciais. Nesse sentido, há sempre o risco de o grupo cair em um funcionamento totalizador, reprodutor e até fundamentalista. O desafio está em buscar favorecer a prevalência de um modo de funcionamento ético-estético-político, comprometido com a multiplicidade e com a provisoriedade; construir condições para afirmação de um dispositivo de enfrentamento à violência de gênero que consiga articular subjetividade e política, gerando efeitos no sentido de favorecer descristalizações de lugares e papéis que as mulheres constroem em suas histórias.

Também é importante entender o trabalho desenvolvido nos grupos de mulheres como mais uma prática de produção de vida entre outras. Entender o grupo, as conexões e as intervenções que se produzem nesse espaço, como mais um elemento de um rizoma, de uma rede de sentidos, que as mulheres agenciam com suas histórias e experiências, nos deslocamentos, nos movimentos de resistência que elas vão produzindo nas situações de violência que vivenciam em seus relacionamentos, em suas casas, em suas vidas.

Nesse sentido, os profissionais que atuam no âmbito do atendimento e do enfrentamento à violência de gênero, mais especificamente com o planejamento e facilitação do espaço grupal, devem estar atentos aos efeitos de suas intervenções. É fundamental problematizar a todo o momento quais movimentos contribuem para expansão da potência no grupo, quais práticas os grupos de mulheres têm posto em funcionamento, quais efeitos políticos esses espaços têm produzido e, principalmente, que modos de existência esses grupos têm fomentado.

 

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Endereço para correspondência:
Luciana da Silva Oliveira
oliveira.luu@gmail.com

Kelly Dias Vieira
diasvieirakelly@gmail.com

Roberta Carvalho Romagnoli
robertaroma1@gmail.com

Submetido em: 16/09/2019
Revisto em: 28/02/2020
Aceito em: 05/03/2020

 

 

1 No original: «Tous les systèmes capitalistiques ont connu les formes de micro-fascisme psychologique qui consistent à faire basculer alternativement la balance des intérêts soit dans un sens <<négatif>> du point de vue de la libido, en la retournant contre l'individu - système d»inhibition, de culpabilization, etc. - , soit contre <<les autres>>, rendant ainsi <<positif>> le vecteur répressif - attitudes phallocratiques, persécutives, interpretatives, jalouses, comme système de prise de povoir sur l'entourage».