ARTIGOS

 

Desejo e culpa: a sedução diabólica em Eça de Queiroz

 

Desire and guilt: The diabolical temptation in Eça de Queiroz

 

Deseo y culpa: la seducción diabólica en Eça de Queiroz

 

 

Jacqueline de Oliveira MoreiraI; Andréa Máris Campos GuerraII; Laura Franchini Campos de PinhoIII; Marina de Araújo Ferreira LadeiraIV; Rodrigo Goes e LimaV

IDocente. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil. https://orcid.org/0000-0003-0901-4217
IIDocente. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil. https://orcid.org/0000-0001-5327-0694
IIIPsicóloga. Prefeitura de Belo Horizonte. Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil. https://orcid.org/0000-0003-2468-7743
IVPsicóloga. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil. https://orcid.org/0000-0003-2088-7633
VPsicólogo. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil. https://orcid.org/0000-0002-6769-1569

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto pretende, a partir de visita à obra clássica de Eça de Queiroz (1880/1963), O mandarim, localizar elementos deste romance fantástico que possam nos oferecer pistas de trabalho, em ato literário, para compreender alguns conceitos da teoria psicanalítica freudo-lacaniana. Considerando que a associação entre o desejo inconsciente e a sedução diabólica é desde Freud uma constante, interrogamos, a partir do recurso do pacto, utilizado por Queiroz, as implicações e os desdobramentos clínico-teóricos a partir de três pontos conceituais. São eles, em particular, a questão das movimentações narcísicas que marcam um sujeito no interior do par dialético insatisfação e busca de realização; o conceito de gozo como o que se inscreve, além do princípio de prazer; e a dimensão da culpa que se realiza via masoquismo face à não assunção do sujeito pela responsabilidade quanto ao seu desejo e que se localiza no personagem principal do romance no campo do masoquismo moral.

Palavras-chave: Psicanálise, Diabo; Culpa; Desejo; Eça de Queiroz.


ABSTRACT

The present article intends to identify elements in Eça de Queiroz's O mandarim (1880/1963) that could offer working clues for the comprehension of some of the concepts in the Freudian and Lacanian theories. Taking in consideration that the association between the unconscious desire and the diabolical seduction is sustained throughout Freud's work, we examine, drawing from the theme of the pact with the devil, explored by Queiroz, the clinical and theoretical implications concerning three concepts, in particular. They are, namely: the question of the narcissistic movements that mark the subject within the dialectical pair dissatisfaction/search for realization; the concept of jouissance as something inscribed beyond the pleasure principle; and the dimension of guilt, that is realized through masochism, in the face of the non-assumption, by the subject, of the responsibility concerning his desire, which locates the main character in the novel in the field of the moral masochism.

Keywords: Psychoanalysis; Devil; Guilt; Desire; Eça de Queiroz.


RESUMEN

El presente texto pretende, a partir de una visita a la obra clásica de Eça de Queiroz, El mandarín (1880/1963), localizar elementos de esta novela fantástica que puedan ofrecernos pistas de trabajo, en un acto literario, para comprender algunos conceptos de la teoría psicoanalítica freudiano-lacaniana. Considerando que la asociación entre deseo inconsciente y seducción diabólica ha sido una constante desde Freud, cuestionamos, desde el recurso del pacto utilizado por Queiroz, las implicaciones y desarrollos clínico-teóricos desde tres puntos conceptuales. Son, en particular, el tema de los movimientos narcisistas que marcan un sujeto dentro del binomio dialéctico insatisfacción y búsqueda de realización; el concepto de goce como aquello que se inscribe, más allá del principio del placer; y la dimensión de la culpa que se produce vía masoquista frente a la no asunción por parte del sujeto de la responsabilidad de su deseo y que se sitúa en el personaje principal de la novela en el campo del masoquismo moral.

Palabras clave: Psicoanálisis; Diablo; Culpa; Deseo; Eça de Queiroz.


 

 

Introdução

O presente texto pretende, a partir de visita à obra clássica de Eça de Queiroz (1880/1963), O mandarim, localizar elementos deste romance fantástico que possam nos oferecer pistas de trabalho, em ato literário, para compreender alguns conceitos da teoria psicanalítica freudo-lacaniana. A associação entre o desejo inconsciente e a sedução diabólica é desde Freud uma constante. Hoje tal associação se tornou um clássico na literatura psicanalítica, especialmente após a retomada do romance de Cazotte (1772/1991), O diabo amoroso, por Lacan (1960/1998) na discussão de seu grafo do desejo. Ali, ele defende que o desejo do homem é o desejo do Outro, no sentido de que há sempre uma dimensão de alienação e construção alteritária na constituição subjetiva. Assim, a pergunta do diabo enamorado ao personagem Álvaro no romance - "que vuoi?" (Cazotte, 1772/1991, p. 180) -, implicaria, para Lacan (1960/1998, p. 829), o retorno do sujeito sobre seu próprio desejo, na formulação do enigma "que quer ele de mim?".

A retomada de romances - como os dois acima citados, ou ainda, Fausto, de Goethe (1808-1832/1999), e Grande sertão veredas, de Guimarães Rosa (1956/2006) -, nos quais o pacto diabólico é a tônica, tem nos servido, assim, para desdobrar a dimensão inconsciente presente na determinação subjetiva de escolhas em diferentes aspectos, centrais tanto para a compreensão da dimensão determinada, quanto do campo de indeterminação que assombra o humano (Moreira et al., no prelo; Moreira et al., no prelo). Deste romance de Eça, destacaram-se, especialmente, três aspectos específicos, a saber: a questão das movimentações narcísicas que marcam um sujeito no interior do par dialético insatisfação e busca de realização; o conceito de gozo como o que se inscreve, além do princípio de prazer, e a dimensão da culpa que se realiza via masoquismo face a não assunção do sujeito pela responsabilidade quanto ao seu desejo e que se localiza no personagem principal do romance no campo do masoquismo moral.

 

Aspecto metodológico

Buscando rastrear as modalidades de uso a partir das quais Freud recorre à literatura para então chegar às "relações possíveis e impossíveis entre a psicanálise e a literatura", Villari (2000) escande dois "movimentos de investigação" (p. 3) presentes na abordagem freudiana, que são resumidos pela vertente aditiva e pela vertente extrativa. Enquanto a primeira consistiria no exercício de se "acrescentar sentidos ao texto literário a partir da interpretação psicanalítica" (p. 3), a segunda estaria "interessada em procurar resgatar do literário a particularidade que pudesse nutrir a Psicanálise" (p. 3). Colocando em evidência então alguns dos usos e apropriações das relações entre psicanálise e literatura feitas a partir de Freud para então assumir um posicionamento a respeito da questão, Villari (2000) distingue, por sua vez, o que seria o "impossível de uma relação" (p. 4), do "possível de uma relação" (p. 6). Se no primeiro estaríamos diante de uma utilização da "teoria psicanalítica no interesse do texto literário" (p. 4), que caracterizaria uma certa via de mão única, limitada à aplicação de uma única dimensão da psicanálise - a teoria - ao texto enquanto objeto, o segundo ofereceria a possibilidade de "utilizar o texto literário no interesse da teoria psicanalítica" (p. 6), o que se apresenta como uma estratégia interessante (e imprescindível) de suposição de saber no texto literário e de questionamento da psicanálise a partir da Literatura, e não seu inverso (p. 6). Nas palavras do autor,

Por isso, o texto literário deve incitarnos, a partir do insabido, à pesquisa, fazendo com que o analista resista aos encantos e à sedução que todo discurso, ainda mais o literário, nos oferece. Ao invés de possuí-lo, fazê-lo falar. [...] Tal posicionamento implica considerar que o saber está no texto, e a ignorância de nosso lado (Villari, 2000, p. 6).

Posicionamento semelhante se encontra já explícito em Felman (1982), que, ao tentar subverter o que acredita ser uma relação de senhor-escravo estabelecido em um determinado uso da psicanálise que subordine o trabalho literário ao corpo teórico e a seu saber, propõe que ao invés de uma aplicação da psicanálise à literatura, haja o que a autora chama de uma relação de implicação. Implicação essa que sugira e reflita uma interioridade inerente entre os dois campos, em vez de uma pretensa relação de exterioridade em que uma viria se aplicar à outra. Reconhecer a ausência de fronteiras "naturais" (p. 9, tradução livre) entre psicanálise e literatura, como indica Felman (1982), significa compreender que uma atravessa a outra, e que "da mesma forma que a psicanálise aponta o inconsciente da literatura, a literatura, por sua vez, é o inconsciente da psicanálise" (p. 10, tradução livre). Tal postura epistemológica se mostra importante ao apontar sempre para uma potência de articulação entre dois campos que abra questionamentos e possibilidades a partir de seu encontro, em vez de fechar respostas e sentidos pré-determinados.

Cientes de tais disposições no que diz respeito à relação entre psicanálise e literatura, procuramos localizar o presente estudo no equilíbrio dos limites de tais posturas metodológicas. Por um lado, supomos saber no texto literário, de forma que, evitando-o toma-lo simplesmente como objeto de análise, o entendemos como interlocutor que interrogue a teoria, incita a pesquisa, e serve de porta-voz da cultura e da subjetividade.

Por outro lado, reconhecemos que, ao utilizar a psicanálise como chave de leitura, oferecemos uma interpretação, não para prescrever sentidos absolutos à obra, mas para apontar convergências e atravessamentos da teoria freudiana com a descrição literária, neste caso, de um encontro com o diabo. Em outras palavras, a tentativa de "decifrar" aspectos da obra tendo como ponto de partida referências teóricas psicanalíticas permite, no avesso dessa operação, identificar os pontos onde a teoria pode melhor avançar e se implicar no texto, fazendo-o falar.

Assim, veremos que a presença do diabo na literatura, no imaginário popular, e mesmo no universo religioso, aparece associada a uma oferta de favores, prazeres e bens, que implicam, em termos freudianos, a dimensão inconsciente e desejante. Se a tentação demoníaca alcança a alma humana, a teoria freudiana irá propor esta tentação no interior da própria experiência subjetiva. Nesse sentido, Freud (1893-1895/2016) revela que:

A psique cindida é aquele demônio do qual a observação ingênua dos velhos tempos supersticiosos acreditava que os doentes estavam possuídos. É certo que um espírito estranho à consciência desperta do doente o governa; mas não se trata realmente de um estranho, e sim de uma parte dele mesmo (p. 356).

Assim, entendemos que a teoria freudiana oferece um lugar teórico para a mitologia popular do diabo e suas tentações. Vejamos, portanto, como, inspirados nesta leitura, nós encontraremos no romance O mandarim (Queiroz, 1880/1963), os desdobramentos das dimensões do desejo e a culpa que se inscreve a partir da não responsabilização da sua posição de gozo. Em outras palavras, acreditamos que a leitura do conto nos auxilia na compreensão de uma possível articulação entre desejo e culpa. O personagem retrata uma possibilidade subjetiva de recuar da posição de responsabilidade em relação ao gozo e se localizar em uma posição culpada. Pensamos, pois, a obra literária, na descrição dos personagens, como uma possibilidade de transmissão da teoria psicanalítica. Nesse sentido, a psicanálise acessa a literatura como uma descrição da psique humana e a literatura contribui para as reformulações, confirmações e reflexões sobre os conceitos psicanalíticos.

 

Sobre o conto

Quem tem medo do Diabo? Como vimos, essa figura da mitologia judaico-cristã fascinou célebres escritores em diferentes momentos da literatura moderna: Cazotte (1772/1991), na França, Goethe (1808-1832/1999), na Alemanha, e Eça de Queiroz (1880/1963), em Portugal. Pretendemos refletir sobre essa presença do Diabo na literatura de Eça de Queiroz, extraindo suas consequências para o campo da psicanálise, especialmente questionando a contraposição entre a presença desse personagem fantástico e a afirmação que considera Eça o paladino do Realismo. Poderíamos pensar que há algo de realismo na sedução do Diabo?

Publicado em 1880, e caracterizada pelo próprio autor como uma história alegórica, a obra O mandarim sustenta-se a partir da relação intertextual em torno do "motivo literário do mandarim assassinado" (Batalha, 2014, p. 71). Na reconstrução de Batalha (2014), o tema foi criado por Honoré de Balzac sob inspiração da obra de René Chateaubriand, Le génie du christianisme, e que encontra reprodução também, por exemplo, em Machado de Assis, no conto O enfermeiro. No romance de Eça de Queiroz, Teodoro é um português, amanuense do Ministério do Reino, impossibilitado, pela vida medíocre a qual seu salário lhe condenava, de usufruir de certos privilégios e "alegrias sociais" (Queiroz, 1880/1963, p. 11) reservados a pessoas de maior poder aquisitivo e prestígio social.

Apelidado de "enguiço" (p. 10) na pensão que divide com outros hóspedes, o personagem, resignado e entediado, ao ler um dos livros com os quais procura aliviar o tédio da profissão e de sua vida inexpressiva, se depara com um trecho que o introduz à seguinte tentação: assassinar o desconhecido e rico mandarim Ti-Chin Fu ao mero toque de uma campainha, podendo se apoderar de toda a fortuna que deixaria o chinês, quando finado. Provocado e seduzido pela figura do Diabo, que lhe aparece logo após a leitura do trecho lhe oferecendo todo o luxo que seu modesto salário nunca poderia lhe proporcionar, Teodoro cede à tentação da vida rica e luxuosa apertando a campainha.

No a posteriori, porém, se vê tomado pela culpa do assassinato, que lhe faz embarcar em uma viagem à China na tentativa de reparar o dano causado. Fracassado na tentativa de estabelecer qualquer reparo e impotente no alívio de sua consciência, Teodoro, devastado, retorna a Portugal concluindo a lição moral que resulta de seu pacto com o diabo, dando fim à proposta de Eça: "só sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim!" (Queiroz, 1880/1963, p. 117).

 

O diabo e suas tentações na oferta de prazeres: desejo, gozo e responsabilidade

Neste artigo, não nos interessa a viagem de Teodoro à China, que se segue no romance. Pretendemos centrar a reflexão no ponto nodal do encontro de nosso anti-herói com o Diabo e as condições de possibilidade deste encontro. Retomemos, pois, a cena do encontro.

Certa noite, compenetrado em sua leitura, Teodoro se depara com um capítulo intitulado Brecha das almas (Queiroz, 1880/1963, p. 13) e uma narrativa invocante e tentadora que é o cerne da obra de Eça:

"No fundo da China existe um Mandarim mais rico que todos os reis de que a Fábula ou a História contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição de um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?"

Estaquei, assombrado, diante da página aberta: aquela interrogação "homem mortal, tocarás tu a campainha?"

[...]

Foi então que, do outro lado da mesa, uma voz insinuante e metálica me disse, no silêncio:

- Vamos, Teodoro, meu amigo, estenda a mão, toque a campainha, seja forte! (p. 14-6).

Interessante ressaltar que a voz diz no silêncio. Podemos pensar que havia silêncio e o som se fez, ou que não havia voz, apenas silêncio, e o então som era interno. Os objetos do desejo, olhar e voz ganham aqui sua expressão de vazio tentador, a partir do qual o desejo se articula, sem corresponder nem ao olhar ou ao som, nem ao que é visto ou falado (Lacan, 1962-1963/2005). Na sequência, a tentação:

- Aqui está o seu caso, estimável Teodoro. Vinte mil-réis mensais são uma vergonha social! Por outro lado, há sobre este globo cousas prodigiosas: há vinhos de Borgonha, como por exemplo o Romanée-Conti de 58 e o Chambertin de 61, que custa, cada garrafa, de dez a onze mil-réis; e quem bebe o primeiro cálice não hesitará, para beber o segundo, em assassinar o seu pai... (Queiroz, 1880/1963, p. 18).

Por que o Diabo é tão tentador? Vários podem sonhar em beber uma taça de Romanée-Conti. Seria o Demônio um grande entendedor da alma humana? Ele se confunde com a própria brecha das almas?

Não podemos deixar de pontuar que a expressão brecha das almas aponta para a abertura que habita todo o ser. Esta ideia se opõe à concepção racionalista que pensa o homem como uma unidade sólida e sem fissuras; e nos aproxima do campo da psicanálise e da noção freudiana de divisão subjetiva. Porém, se por um lado a brecha revela um ponto da falta e do desejo no ser falante, até certo ponto na obra de Eça o protagonista parece estar indagando-se sobre seu próprio desejo, sobre o que o excede como gozo, e sente-se culpado por estar na condição de querer gozar. Nesse ponto, apresenta-se uma divisão do protagonista em relação à sua posição social:

Ainda assim, eu não me considerava sombriamente um pária. A vida humilde tem doçuras: é grato, numa manhã de sol alegre, com o guardanapo ao pescoço, diante do bife de grelha, desdobrar o Diário de Notícias; pelas tardes de verão, nos bancos gratuitos do Passeio, gozam-se suavidades de idílio; é saboroso à noite no Martinho, sorvendo goles de café, ouvir os verbosos injuriar a pátria [...] (Queiroz, 1880/1963, p. 12).

Neste sentido, o Diabo, enquanto uma entidade, figura o exterior, encarna uma dimensão extrínseca ao personagem, eximindo-o da responsabilidade pelo gozo, ao referenciar seu próprio ser no lugar daquele que lhe ordena: "Goza!". Esse parece ser o estatuto próprio do supereu que sobrecarrega o personagem de culpa durante praticamente todo o enredo, justificando o esforço empreendido por Teodoro para ressarcir o mandarim do que lhe foi extirpado. O simples tilintar da campainha e toda a cena com o diabo não parece ser nada mais do que uma tentativa de Teodoro de colocar na conta do outro a responsabilidade pelo seu próprio gozo.

Freud afirma já em 1897 que esse espírito do mal ao qual se referiam os supersticiosos em outras épocas é de fato parte de cada um, mas nos parece da ordem do estranho e enigmático. Nas palavras de Freud (1897/1969):

Você se lembra de que eu sempre disse que a teoria medieval da possessão pelo demônio, sustentada pelos tribunais eclesiásticos, era idêntica à nossa teoria de um corpo estranho e de uma divisão (splitting) da consciência? Mas por que é que o diabo, que se apossava das pobres bruxas, invariavelmente desonra-as, e de forma revoltante? Por que as suas confissões sob tortura tanto se assemelham às comunicações feitas por meus pacientes em tratamento psíquico? (p. 327-8).

O enigma, porém, é o que aponta para um não saber sobre si mesmo e possibilita a pergunta sobre o desejo, sobre o qual Lacan (1960/1998) afirma que não é articulável, mas está articulado aos significantes da demanda do Outro e a uma cena fantasmática. Se, nesse tempo de seu ensino, o enigma estava referido ao sentido articulado sob a égide do par significante-significado, na década de 1970, Lacan (1973/2003) muda o estatuto do sentido, ao aportar uma dimensão de gozo inapreensível nele sempre presente. "O sentido do sentido, em minha prática, se capta (Begriff) por escapar" (Lacan, 1973/2003, p. 550). Por conta desse escape que funciona como gozo, Lacan pôde dizer, então, que o cúmulo do sentido seria o enigma, o que escapa à significação.

Para Freud, os demônios são maus desejos, o que é menosprezado, depreciado. Contudo, se na Idade Média, especialmente, estes seres nos amedrontavam do exterior, para Freud (1893-1895/2016) eles são parte de nós mesmos. O Diabo incorpora, nesse sentido, o que deve ser expelido, a crueldade e agressividade que não se reconhece como própria, e dá lugar a todo o discurso moral que está presente em várias passagens deste romance como expressão da própria sociedade, na figura de Teodoro. Um trabalhador medíocre, resignado, dividido e culpado por sua ambição, almeja postos mais altos, joga na loteria, diz não acreditar em Deus, mas se apega a superstições e à imagem de Nossa Senhora das Dores.

Podemos, em contrapartida, interpretar o tilintar da campainha e o pacto com o Diabo como uma escolha forçada: ou a bolsa ou a vida (Lacan, 1988/1964). Se se fica com a bolsa, perde-se a vida. Se se opta pela vida, perde-se a bolsa. Enquanto o desejo força uma tomada de posição subjetiva, o gozo como excesso, cria um obstáculo. Esse é, portanto, um momento decisivo na vida de Teodoro em que ele precisa se haver com algo de seu desejo. Entretanto, responde com o gozo. Por um lado, as cenas de luxúria, gula e vaidade na obra parecem apontar para um excesso, algo que transborda, sem limites e que chega a inebriá-lo. Teodoro sentia-se "gordo", "obeso" (Queiroz, 1880/1963, p. 33), saciado, com "o olhar turvo e tedioso do ser repleto. [...] Bestializado num gozo de nababo" (Queiroz, 1880/1963, p. 34). Não parece haver lugar para a falta e para o desejo nas cenas relatadas pela personagem. Trata-se do excesso.

Por outro lado, se o fantasma do mandarim morto pode representar a consciência e o sentimento de culpa pelo excesso referido à compulsão à repetição e ao gozo, é no encontro com a imagem do morto que podemos pensar na incidência de algo enigmático e que lhe produz angústia, algo que o divide e que pode colocar em marcha a saída pelo desejo. A aparição deste ponto de real que insiste a todo momento aponta para um mal-estar que lhe causa um estranhamento, uma divisão, e que evidencia o sem sentido do gozo mesmo.

Podemos levantar a hipótese de que tudo foi um sonho, mas como revela Freud (1901/1969), "Não temos razões para disfarçar o fato de que, na hipótese que estabelecemos a fim de explicar a elaboração onírica, um papel é desempenhado por aquilo que se poderia descrever como um elemento 'demoníaco'" (p. 715-6).

Contrapondo, porém, a ideia de que tudo foi um sonho, é importante lembrar que o apelido de Teodoro na pensão de Dona Augusta é "Enguiço". Enguiço é empecilho, obstáculo, mal-estar, mau-olhado, feitiço, agouro, que está emperrado, parado. Seu apelido encerra o mal-estar próprio de todo ser falante e marca a vida deste amanuense que, embora tenha a oportunidade de desfrutar de belos jantares e deleitar-se com lindas mulheres, sempre acaba se deparando com sua própria falta, que não assume como causa, e com a incompletude de seu ser, no encontro enigmático com o real através da alucinação do corpo sem vida do mandarim.

Ao ceder à proposta do Diabo e tocar a campainha, Teodoro inaugura uma vida de milionário, dando-se ao luxo de desfrutar, durante dias e noites, de vários prazeres que almejava em sua vida medíocre. Entretanto, ao se deparar repetidas vezes com a figura alucinada do mandarim morto em seus aposentos, é tomado por um grande sentimento de culpa ao vislumbrar as consequências de seu ato para a família do falecido, que teria então deixado sua família na pobreza. O fantasma da consciência acusadora de Teodoro o faz empreender uma viagem aos confins da China para encontrar essa família e ressarci-la com o que lhe fosse de direito. Teodoro é frustrado em sua empreitada, mas o que nos interessa destacar é que nesse momento o pacto firmado com o Diabo o coloca frente à responsabilidade por seu desejo e o faz interrogar sobre as consequências de sua escolha. Entretanto o que o personagem nos oferece são subsídios para compreender a ação de sujeito, ainda mais impelida pelo supereu que exige mais gozo, e recuada da posição de assentimento subjetivo com a escolha inconsciente, o que o lançaria a uma posição mais próxima da responsabilidade, no sentido de resposta subjetiva, de responsividade.

Ele, porém, mergulha em uma cena de culpa gozosa. A força da culpa é metaforizada na obra através da fantástica e assustadora viagem para China na busca pela família do mandarim assassinado. Assim, o preço para pelo pacto é alto. Nesse sentido, Freud (1923/1969), em Uma neurose demoníaca do século XVII lança a pergunta: Por que alguém assina um compromisso com o Demônio? O autor convida o Fausto de Goethe: "Fausto, é verdade, indagou desdenhosamente: 'was willst du armer Teufel geben? ['O que tens a dar, pobre Diabo']" (p. 101). Mas, segundo Freud (1923/1969), Fausto estava errado. "O Demônio tem muitas coisas a oferecer, que são altamente prezadas pelos homens: riqueza, segurança contra o perigo, poder sobre a humanidade e as forças da natureza, até mesmo artes mágicas, e, acima de tudo o mais, o gozo [...]" (p. 101).

O que seria o gozo? Para a psicanálise, o gozo é o que está além do princípio do prazer, portanto o gozo é mortífero e demoníaco. O gozo é parte do ser falante, é consequência do encontro do corpo com a linguagem. E, por ser condição do sujeito, é passível de ser tratado, bordejado. Não é uma boa estratégia negligenciar essa condição humana que o arrebata para o gozo, e transbordar ou deixar o sujeito sem bordas. Melhor é escutar este movimento e oferecer contornos, ainda que instáveis.

Na análise do caso de neurose demoníaca de um pintor, Freud (1923/1969) busca investigar o ponto que amarra o sujeito no compromisso com o Diabo. "Visto ter rejeitado as artes mágicas, o dinheiro e os prazeres quando lhe foram oferecidos pelo Demônio, e tampouco os tornados condições do pacto, fica realmente imperativo saber o que o pintor queria do Diabo, quando assinou um compromisso com ele" (p. 102). Todavia, Freud desvenda o desejo que enlaça o sujeito ao Demônio. "Seu pai, portanto, falecera, e, em consequência, ele havia caído em um estado de melancolia, após o que o Demônio se aproximara dele e lhe perguntara por que estava tão abatido e triste, e prometera 'auxiliá-lo de todas as maneiras e dar-lhe apoio'" (p. 103). Assim, o "Demônio compromete-se a substituir o pai perdido pelo pintor durante nove anos" (p. 104), por isso a promessa de dar apoio e auxílio, ou seja, ocupar a posição paterna.

O Demônio, diferente da caridade, interroga o sujeito sobre o seu desejo e sobre a responsabilidade acerca dele. Este é o núcleo da tentação. O Diabo não impõe de maneira violenta o seu desejo sobre o sujeito, mas sim permite a escolha, prometendo, entretanto, um desfrute sem a dimensão da responsabilidade nele implicado. Nesse sentido, anterior à questão mortífera do gozo, não podemos deixar de anunciar a posição positiva do Diabo ao provocar a dimensão desejante do sujeito. O campo da caridade não promove o aparecimento do sujeito, porque não pergunta sobre o desejo. A caridade oferece para o indivíduo o que está no campo do mesmo. A pessoa caridosa doa o que julga que o outro precisa, mas seu parâmetro de decisão é sua própria vida. A caridade, portanto, se perde na lógica especular e nega o outro na sua diferença, reduz a alteridade ao mesmo.

 

A dimensão da culpa e do masoquismo na resposta ao Diabo

No caso de Teodoro, o Diabo tenta uma alma pobre, ferida narcisicamente, e oferece o gozo, pois nosso anti-herói é um copiador e um descrente, uma figura miserável e insatisfeita. Sendo uma figura que se inscreve no lugar da ferida narcísica, Teodoro não se permite desfrutar dos prazeres do pacto e se lança em uma tortuosa aventura guiada pela culpa. A culpa pode se organizar como uma saída masoquista, na qual o outro sádico é representado pela figura tirânica do supereu, que possui uma autonomia sobre o eu, podendo exercer um domínio sádico do mesmo. Sabemos que o masoquismo figura como uma das formas autodestrutivas de relação com o outro. Não há uma negação ou neutralização da dimensão de alteridade na economia do masoquismo. O outro é intocável, pois é através de sua presença que é instaurado o encontro com o sofrimento. Encontramos na obra de Freud diversas referências ao problema do masoquismo que estão vinculadas a momentos precisos da construção teoria psicanalítica.

As primeiras referências ao masoquismo estão ligadas à interpretação dos sonhos, em que Freud interpreta um sonho de uma noiva arranjando flores no centro de uma mesa através da ideia de um caráter masoquista feminino de defloração. A partir dos Três ensaios (Freud, 1905/2016), a noção de masoquismo aparece atrelada ao problema do sadismo e, assim, associada à sexualidade e à bissexualidade. De 1914 a 1920, Freud mantém a tese de um sadismo originário, mas acrescenta a ideia de sentimento de culpa e temor da castração ao masoquismo e a ideia do fantasma como suporte do desejo. Após 1920, o conceito de pulsão de morte irá introduzir a questão do masoquismo originário e lançará luz sobre a clínica da melancolia e da neurose obsessiva através da vinculação entre masoquismo e sentimento de culpa inconsciente. Em 1924, Freud (1924/2011) escreve o célebre texto O problema econômico do masoquismo dedicando-se à reflexão sobre esse tema.

A expressão - O problema econômico do masoquismo - refere-se à incompatibilidade dessa atitude com a tese do princípio de prazer como equilíbrio libidinal, pois a dor introduz uma alteração na cadência libidinal, um aumento da energia. A noção de pulsão de morte, através da figura da autodestruição, representará uma forma de inclusão e compreensão da economia masoquista no interior da lógica freudiana.

Encontraremos assim, em O problema econômico do masoquismo (Freud, 1924/2011), uma importante discussão sobre o prazer no sofrimento. Freud apresenta três tipos de masoquismo - faz-se necessário ressaltar que a distinção é apenas fenomênica. O masoquismo feminino, que se baseia inteiramente no masoquismo erógeno, revela fantasias presentes em homens de espancamento, de ser copulado, de ser castrado ou ser cegado. As fantasias mencionadas parecem estar vinculadas à busca de castigo mediante o desejo edípico (não podemos deixar de associar o desejo de ser cegado com o destino de Édipo). O masoquismo erógeno, por sua vez, que Freud (1924/2011) denominou de "primário", ou simplesmente de "prazer na dor" (p. 190), se trata daquela parte pulsional que, em contraposição ao sadismo, não é externalizada, ou seja, não "realiza essa transposição para fora" (p. 191) permanecendo no organismo, e ligando-se libidinalmente (p. 191). E o masoquismo moral, que se refere à retomada da culpa do complexo édipo - a diferença é que o agente sádico é interno, a saber, o supereu. O ponto em comum entre o masoquismo erógeno, o masoquismo feminino e o masoquismo moral é a desfusão pulsional que libera a pulsão de morte. Freud nos revela que: "Consciência e a moralidade surgiram com a superação, a dessexualização do complexo de Édipo; com o masoquismo moral, a moralidade é novamente sexualizada, o complexo de Édipo é revitalizado e abre-se o caminho para regredir da moralidade ao complexo de Édipo" (Freud, 1924/2011, p. 200).

Assim, o masoquismo moral representa uma forma de autopunição diante do desejo edípico. No caso de Teodoro, parece-nos que a covardia face à assunção do desejo despertado retorna na resposta masoquista que, pela via da culpa, desimplica o sujeito da responsabilidade pelo desejo, cedendo ao gozo. A culpa trata o excesso e superinveste o sujeito pela via do sofrimento moral.

 

As seduções narcísicas do diabo e a quebra do espelho

Se podemos pensar que a sedução narcísica exerce um papel fundamental no desenrolar da trama de Teodoro, é curioso notar em que medida a tentação demoníaca se estabelece em certo nível especular no que diz respeito à condição do protagonista. Segundo ele, o diabo que se apresenta "não tinha nada de fantástico. Parecia tão contemporâneo, tão regular, tão classe-média como se viesse da minha repartição..." (Queiroz, 1880/1963, p. 16). Se a caridade, como tratamos acima, sufoca o espaço para o desejo ao se perder na lógica especular e suprir o que se pensa que o outro precisa, é no mínimo interessante como aqui temos um demônio que, também lançando mão de uma provocação especular, se apresenta como aquilo que Teodoro é para lhe mostrar tudo aquilo que ele não tem. Dessa maneira, incita ao desejo através de uma provocação imaginária, no nível do Eu, que impele o sujeito ao ato.

Parece ser o demônio a própria personificação do "Espelho milagroso" (p. 13), um dos títulos das sugestivas obras que Teodoro escolhe para ler, junto dos também insinuantes "Galera da inocência" (p. 13), "Tristeza dos mal deserdados" (p. 13) e do capítulo "Brecha das almas" (p. 13), que introduz a tentação do assassinato do mandarim. Há um artifício no uso da relação especular que provoca, ao invés da desobstrução do desejo, a faísca para o gozo. Teodoro confunde a demanda com o desejo, toma o gozo pelo desejo. Sendo o diabo aquele que se diz saber "o segredo das cousas" (p. 21), supostamente portando, assim, um precioso saber, Teodoro parece narcisicamente desejar aquilo que ele mesmo gostaria de ser. É o que delimita Freud (1914/2010) dentre os tipos de amor, como sendo o narcísico.

Em sua ambição medíocre que até então "só aspirava ao racional" (Queiroz, 1880/1963, p. 12) e "apressava" sua felicidade rezando para Nossa Senhora das Dores e jogando na loteria, não mais hesita: "de mão firme, repeniquei a campainha" (p. 23). Recordamos aqui a importante e íntima relação entre narcisismo, especularidade e agressividade, não ignorada em psicanálise. Se Lacan (1948/1998) afirma que "a agressividade é a tendência correlativa a um modo de identificação a que chamamos narcísico, e que determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de entidades característico de seu mundo" (p. 112), é para nos lembrar, como esclarece Stavrakakis (1999), que o narcisismo aparece como "constituindo a base da tensão agressiva: o imaginário é claramente a fonte primária da agressividade nas questões humanas" (p. 18, tradução livre).

Há, portanto, uma importante dimensão narcísica expressa na decisão pelo pacto, e no consequente assassinato do mandarim, que se nos propusermos a continuarmos a acompanhar as evoluções teóricas de Freud (1914/2010) em Introdução ao narcisismo, nos aponta considerações interessantes para a leitura da obra de Eça. Uma delas gira em torno da questão da consciência e da moralidade, que atravessa o romance em questão, e é dissecada por Freud ainda em relação ao narcisismo. Logo no prólogo de O mandarim (Queiroz, 1880/1963), Eça anuncia, na forma de um breve diálogo entre dois amigos, alguns dos temas e dos tons pelos quais a obra deverá perpassar. Antes de partir para "os campos do Sonho" e fazer fantasia, ao "vaguear por essas azuladas colinas românticas onde se ergue a torre abandonada do Sobrenatural, e musgos frescos recobrem as ruínas do Idealismo...", como sugere o primeiro amigo, há logo o cauteloso anúncio de uma precaução, pelo segundo: "Mas sobriamente, camarada, parcamente!... E como nas sábias e amáveis alegorias da Renascença, misturando-lhe sempre uma Moralidade discreta..." (Queiroz, 1880/1963, p. 7, grifo nosso).

Se identificamos, como mencionado no presente trabalho, a reprodução do "motivo do mandarim assassinado" no romance de Eça, como nos indica Batalha (2014), temos já de partida a "confissão" das intenções do autor no que diz respeito à "moral de sua história", que se reflete no constante conflito de Teodoro com as questões da consciência e da boa conduta. Apesar de o livro que lhe conduz ao mandarim, após o pacto demoníaco, lhe parecer apenas "a prosa antiquada de um moralista caturra" (Queiroz, 1880/1963, p. 24), rapidamente os vestígios da falta moral e da culpa que dela se nutre vêm, literalmente, assombrar nosso protagonista, que descobre como o dinheiro não havia lhe dado nem a "verticalidade à espinha" (p. 35) (ou em outras palavras, a dignidade de não precisar se curvar àqueles aos quais julgava mais poderosos), nem a custosa "consciência de estadista" (p. 34) que busca adquirir.

Em suma, não há garantia, pelo pacto, de nenhuma condição moral. É, pois, "solitário e egoísta" (p. 35) que Teodoro experimenta a perseguição da figura do mandarim, que tanto lhe atormenta com sua aparição em um insistente "sussurro de acusações" (p. 45), e o faz reconhecer que "a Consciência era dentro de mim como uma serpente irritada" (p. 47). Retomando nossas considerações sobre a provocação especular através da qual Teodoro é seduzido a partir da figura do diabo, não podemos deixar escapar que, ao final de sua aventura à China na tentativa de expiação da culpa, Teodoro é tomado pelos chineses como o próprio "Diabo estrangeiro" (p. 88), dessa vez não mais sedutor, mas temível e imperdoável em seus pecados. O sujeito retorna à imagem especular pelo avesso do espelho.

Tendo explorado o papel da sedução narcísica no encontro de Teodoro com o diabo, não nos é difícil apontar para os efeitos de tal experiência especular em relação aos demais conceitos abordados no presente texto, em especial às noções de gozo, culpa e responsabilidade. Para Scotti (2003),

se é na relação ao Outro que a culpa se instala e se dele vem a permissão para que o sujeito se instale em seu lugar, resulta daí que o sujeito mantém em seu lugar o Outro ao mesmo tempo em que se identifica imaginariamente com ele às custas de seu próprio desejo o qual se mantém alienado no Outro (p. 218).

O autor deixa claro, portanto, que é a identificação imaginária com o Outro, às custas do próprio desejo, o motor do sentimento de culpa. Ainda segundo Scotti (2003), "a culpa aparece, então, como corolário estrutural que se mostra como signo de um gozo, que se mantém na oscilação mesma entre ser o falo para o Outro e o desaparecimento do sujeito como sujeito do desejo [...]" (p. 219). Temos, assim, que, ao se perder na sedução narcísica das ofertas e promessas feitas pelo diabo, Teodoro apaga-se como sujeito de seu próprio desejo. Acompanhando Lacan (1965-1966/1998) na afirmação de que "por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis" (p. 873), depuramos daí uma diferença essencial que se opera na disjunção entre culpa e responsabilidade, como proposta por Lacan. Prudente e Debieux (2017) nos auxiliam na compreensão acerca dessa disjunção, remetendo ao conceito de assentimento subjetivo. Para os autores,

Se retomarmos agora o termo assentimento subjetivo, podemos entender melhor o que Lacan quis dizer quando separou responsabilidade de culpa. Lembremos que assentimento é estar de acordo, geralmente com uma decisão. Nesse caso, com que decisão se estaria em acordo? Com a decisão do próprio ato dada na separação do Outro. Ou seja, um ato/decisão que, apesar de estar no campo do Outro, não se dá na relação com seu reconhecimento (Prudente & Debieux, 2017, p. 266).

Alcançamos, então, pela via da sedução narcísica exercida pelo demônio, e comprada por Teodoro, a relação que escora a experiência do personagem de excesso, de gozo, e de culpa como representado no romance. São esses, portanto, alguns dos elementos correlatos às noções de desejo e responsabilidade, que procuramos tratar até aqui.

 

Sobre o que o pacto diabólico em Eça nos ensina a partir da Psicanálise

Para concluir, podemos dizer que Teodoro se compraz narcisicamente do gozo que o diabo lhe oferece, não encontrando meios de se haver com seu limite pela via da assunção desejante, cujo correlato é a responsabilidade. Dessa maneira, paga através da economia libidinal da culpa, com o retorno masoquista, pelo excesso que usufrui. Assim, Teodoro aceita a oferta diabólica, regozija-se de seus feitos, mulheres e luxos, mas ao se deparar com o impossível de ressarcir do gozo, isto é, o objeto perdido ao Outro, se esquiva para não se haver com isso. No final do romance, ele se vê diante do Personagem vestido de preto novamente e clama: "- Livra-me das minhas riquezas! Ressuscita o Mandarim! Restitui-me a paz da miséria!" (Queiroz, 1880/1963, p. 116). Ao que o Diabo lhe contestou: "- Não pode ser, meu prezado senhor, não pode ser..." (p. 116).

Nesse ponto, Teodoro é convocado à resposta personalíssima a qual somente o próprio sujeito pode assentir como responsabilidade face ao desejo. É preciso saber fazer com algo do gozo que não se pode extirpar. Trata-se de uma extração do excesso de gozo, dado que não se recupera o que se perde - ilusão neurótica. Essa posição implica o assentimento a uma perda, um resto que se engendra como causa. Este resto, diferente da tentativa de recuperar o gozo perdido, faz o sujeito se movimentar. É somente após o reencontro com o Diabo, quando Teodoro se vê estilhaçado e em ruínas, que ele se reconhece finalmente enquanto ser de falta, e, portanto, desejante.

Recorrer a O mandarim, de Eça de Queiroz, tomando como referência em particular os pontos do gozo e do desejo, da culpa e do narcisismo, atrelados ao pacto demoníaco no romance, nos permitiu extrair, na interface entre os campos da Literatura e Psicanálise, aspectos teórico-clínico importantes. Entendemos que, ao buscarmos no texto de Eça pistas de trabalho em ato literário, como anunciamos na introdução do presente trabalho, pretendemos, muito além de analisar a obra a partir do instrumental psicanalítico, permitir que o recurso fantástico da figura do diabo na obra em questão tenha provocado e colocado a trabalho a articulação psicanalítica em torno do tema do desejo inconsciente e da responsabilidade, bem como de conceitos correlatos, de forma a interrogar, a partir do recurso do pacto, utilizado por Eça, as implicações e os desdobramentos clínico-teóricos atreladas ao gozo, ao narcisismo e à culpa.

 

Referências

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Submetido em: 05/05/2018
Revisto em: 11/09/2019
Aceito em: 19/09/2019