ARTIGOS

 

A experiência de acompanhamento de bebês em escolas de educação infantil através da Metodologia IRDI

 

The experience of monitoring babies in early childhood education schools through the IRDI Methodology

 

La experiencia del seguimiento de bebés en colegios infantiles la Metodología IRDI

 

 

Milena da Rosa SilvaI; Andrea Gabriela FerrariII

IDocente. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil. https://orcid.org/0000-0003-1063-4149
IIDocente. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil. https://orcid.org/0000-002-4262-3033

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho relata uma pesquisa-intervenção, sustentada na psicanálise, em berçários de escolas de educação infantil. Utilizou-se a Metodologia IRDI como dispositivo de leitura da constituição psíquica do bebê e da relação educadora-bebê. Sobre a constituição psíquica dos bebês, foi possível intervir a tempo com aqueles que apresentavam sinais iniciais de sofrimento psíquico. Quanto às educadoras, ao final do acompanhamento, elas demonstraram estar questionando-se mais quanto ao seu trabalho e mais conectadas com as necessidades afetivas dos bebês. As coordenações/direções das escolas puderam repensar algumas rotinas a partir das necessidades que os bebês apresentavam. Foi possível pensar nos recursos da Metodologia IRDI como dispositivo de acompanhamento dos bebês em berçário e de cuidado de quem cuida, como suporte às educadoras.

Palavras-chave: Dispositivos Clínicos; Metodologia IRDI; Educação Infantil.


ABSTRACT

This paper reports a research-intervention, supported by psychoanalysis theory, in nursery schools. The IRDI methodology was used as a device to read the psychic constitution of the baby and the educator-baby relationship. Regarding the babies' psychic constitution, it was possible to intervene in time with those who presented initial signs of psychic suffering. As for the educators, by the end of the follow-up, they showed to be questioning themselves more about their work, and more connected to the affective needs of the babies. The coordinators/directors of the schools were able to rethink some routines based on the needs the babies presented. It was possible to think of the IRDI Methodology resources as a device to monitor the babies in nursery and caregivers, as a support to the educators.

Keywords: clinical devices; IRDI methodology; early childhood education.


RESUMEN

Este trabajo relata una investigación-intervención, apoyada en el psicoanálisis, en guarderías de escuelas infantiles. Se utilizó la Metodología IRDI como dispositivo de lectura de la constitución psíquica del bebé y de la relación educador-bebé. En cuanto a la constitución psíquica de los bebés, fue posible intervenir a tiempo en aquellos que presentaban signos iniciales de sufrimiento psíquico. En cuanto a las educadoras, al final del seguimiento, manifestaron que se cuestionaban más sobre su trabajo, y más conectadas con las necesidades afectivas de los bebés. Las coordinaciones/direcciones de las escuelas lograron repensar algunas rutinas en base a las necesidades que tenían los bebés. Fue posible pensar los recursos de la Metodología IRDI como un dispositivo para el seguimiento de los bebés en la guardería y para el cuidado de quienes cuidan, como un apoyo a los educadores.

Palabras clave: Dispositivos Clínicos; Metodología IRDI; Educación Infantil.


 

 

Os bebês, a constituição psíquica e a escola de educação infantil

Os primeiros anos de vida da criança são considerados fundamentais para a sua constituição psíquica, que está intimamente ligada à relação afetiva, simbólica e corporal estabelecida entre cuidador primordial e bebê. Dada a prematuridade do filhote humano, é necessário, para sua sobrevivência física e psíquica, que alguém o acolha e lhe transmita, através dos cuidados cotidianos, as leis que organizam as relações entre os sujeitos. Sendo assim, o bebê, quando nasce, é inserido em uma estrutura simbólica que o antecede (Lacan, 1964/1985). O cuidador primordial toma o bebê como objeto privilegiado de seu desejo e tenta, em vão, satisfazer todas as suas necessidades, introduzindo a falta de objeto (Lacan, 1995/1956-1957). Nesse sentido, a Alíngua1 (Lacan, 1982/1975), operada através da função da mãe, afeta o corpo do bebê fazendo borda. Tais aspectos nos permitem supor que as bases da saúde mental estão relacionadas a este laço entre o cuidador primordial e o bebê e a falhas neste processo de subjetivação e podem dar lugar a sofrimento psíquico (Mariotto, 2009). Considerando que a taxa de matrículas de crianças de zero a 3 anos em escolas de educação infantil tem crescido a cada ano (IBGE, 2019), e que os bebês vivem neste local momentos muito importantes de sua vida (alimentação, cuidados corporais, brincadeiras), é fundamental que se considere o papel constitutivo dessas e dos educadores que nelas atuam. Segundo Kupfer (2007), o desafio é obter um olhar para o sujeito nas creches, de modo que a subjetivação se destaque mais do que a objetivação. Nessa direção, Maciel (2010), Mariotto (2009) e Lajonquière (2000) apontam para a importância de uma educação subjetivante a partir da qual a educadora se permita transmitir marcas simbólicas que enlacem o bebê à cultura e à linguagem.

Em pesquisas realizadas por Mariotto (2009) e Flach (2006), em creches brasileiras, percebeu-se uma dificuldade de compreensão, por parte das educadoras, sobre a relação entre cuidar e educar, havendo uma tendência a perceber as duas funções como separadas: o cuidar no sentido instrumental dirigido ao corpo no atendimento de necessidades de higiene, nutrição e segurança; e o educar no sentido pedagógico - como o ensino de conceitos, desenvolvimento de habilidades - atividade esta reconhecida como mais nobre que a primeira. Desse modo, percebeu-se uma divisão de tarefas entre as profissionais que cuidam das salas de berçário: uma responsável pelos aspectos educacionais e outra, pelos cuidados (instrumentais) do corpo. Além disso, demonstraram dificuldade no exercício de uma educação mais individualizada, bem como de uma relação mais atenta e carinhosa para com as crianças. As autoras salientaram a importância de ampliarmos a compreensão de educação para além da aquisição e do desenvolvimento de habilidades, assim como o cuidado para além do atendimento de necessidades básicas. Nesse sentido, Mariotto (2009) aponta a escola de educação infantil como um local onde se cuida, se educa e se previne, funções estas que não podem ser desenvolvidas separadamente.

A escola de educação infantil, assim, seria um local de prevenção e promoção de saúde mental, entendendo-se prevenção não enquanto antecipação e evitação de sintomas, mas como criação e manutenção de condições favoráveis para que um sujeito advenha e se constitua (Ferrari, Fernandes, Silva & Scapinello, 2017). Neste sentido, Laznik (2004) aponta a importância de se intervir cedo, considerando a plasticidade do aparelho psíquico na infância, de modo que sejam instauradas as estruturas que darão suporte à constituição psíquica. Esta possibilidade de instauração só será viável se houver uma aposta por parte do Outro, oferecendo um outro olhar para além do orgânico, antecipando um sujeito no bebê (Lacan, 1995/1956-1957; Ferrari & Piccinini, 2010).

A partir do reconhecimento de que a escola de educação infantil é um espaço privilegiado para a promoção de saúde mental na primeira infância, um grupo de pesquisadores de Porto Alegre, Brasil, realizou um projeto em escolas municipais de educação infantil desta cidade visando detectar sinais de iniciais de sofrimento psíquico nos bebês de até 18 meses (Ferrari, Silva & Cardoso, 2014). E, em caso da detecção de sinais iniciais de sofrimento psíquico, efetuar uma intervenção junto às educadoras e bebês, no contexto mesmo da escola. Tal intervenção teve como base a Metodologia IRDI (Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil), a qual foi desenvolvida por um grupo de psicanalistas-pesquisadores brasileiros, liderados por Maria Cristina Kupfer (Kupfer et al., 2010).

 

Os Indicadores clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil - IRDI

De acordo com Kupfer & Voltolini (2005), iniciou-se, no ano 2000, a pedido do Ministério da Saúde, uma pesquisa com a finalidade de construir um instrumento, sustentado pela teoria psicanalítica, que pudesse ser empregado por pediatras e por outros profissionais de saúde, em consultas regulares, apontando sinais iniciais de sofrimento psíquico que indicassem a possibilidade de ocorrerem ulteriormente transtornos psíquicos do desenvolvimento infantil. Um grupo de psicanalistas brasileiros com ampla experiência no atendimento de bebês e crianças, denominado Grupo Nacional de Pesquisa (GNP), elencou os sinais mais frequentes de risco psíquico que percebiam estar presentes nos bebês ao longo da sua experiência clínica. Assim, a partir de sinais fenomênicos que indicam que a instalação da subjetividade está em curso, propuseram os indicadores a partir dos quais se busca investigar de que modo está ocorrendo a constituição psíquica articulada ao desenvolvimento da criança (Kupfer et al., 2009). Cabe salientar que "o indicador é como um signo que se relaciona com os demais numa rede discursiva ou em uma lógica simbólica, cuja leitura baseia-se nos eixos teóricos em torno dos quais eles foram construídos" (Kupfer & Voltolini, 2005, p. 360). Ou seja, os indicadores, separadamente, nada indicam. Esses indicadores de risco são organizados a partir dos eixos teóricos que os embasam, sendo eles: suposição do sujeito; estabelecimento da demanda; alternância presença-ausência; e instalação da função paterna. Estes eixos teóricos são derivados da teoria lacaniana sobre a constituição do sujeito (Lacan, 1988/1949; 1995/1956-1957; 1999/1958) aliada à ampla experiência clínica do GNP.

O eixo "suposição do sujeito" (SS) caracteriza uma antecipação que o cuidador realiza da presença de um sujeito psíquico no bebê, que ainda não se encontra, no entanto, constituída. Tal constituição depende justamente dessa suposição ou antecipação. No eixo "estabelecimento da demanda" (ED), encontram-se as primeiras reações involuntárias que o bebê apresenta ao nascer (como o choro), e que o cuidador reconhecerá como um pedido que a criança dirige a ele. Esse reconhecimento possibilita a construção de uma demanda desse sujeito a todos com quem vier a se relacionar. O eixo "alternância presença/ausência" (PA) atenta para as ações do cuidador que o tornam alternadamente presente e ausente. Entre a demanda da criança e a experiência de satisfação que o cuidador proporciona, espera-se que exista um intervalo quando poderá surgir a resposta da criança, base para as respostas ou demandas futuras. O último eixo, o da "função paterna" (FP), busca evidenciar os efeitos na criança dessa função, entendendo que a FP ocupa, para a dupla mãe-bebê, o lugar de terceira instância, orientada pela dimensão social. Portanto, depende dessa função a singularização da criança e sua diferenciação em relação ao corpo e às palavras do cuidador primordial (Kupfer et al., 2009). Cabe lembrar que a FP opera em um primeiro tempo na mãe ou cuidador primordial (Lacan, 1999/1958), e é por ela apresentada ao bebê, principalmente quando enlaça os outros três eixos imprimindo um ritmo onde o tempo do bebê está contemplado. Destaca-se, portanto, que estes eixos se organizam a partir de uma temporalidade lógica e não cronológica.

Desses quatro eixos teóricos, foram derivados 31 indicadores clínicos (Tabela 1) que se estabelecem nos primeiros anos de vida da criança e são dependentes das relações corporais, afetivas e simbólicas existentes entre o bebê e seu cuidador primordial (Kupfer, 2007). Os indicadores foram criados para serem observados na relação direta da mãe ou cuidador primordial com o bebê, ou por meio de inquérito. Sua presença indica desenvolvimento, enquanto a sua ausência indica risco para o desenvolvimento. Esses indicadores foram validados através de um estudo que envolveu nove cidades brasileiras, dando origem ao instrumento denominado IRDI (Kupfer et al., 2009). Tal validação se deu através de uma avaliação realizada aos 3 anos de idade com as mesmas crianças avaliadas pelo IRDI até os 18 meses de vida. As crianças foram avaliadas por meio de dois protocolos criados para esse fim: o roteiro para a Avaliação Psiquiátrica e o roteiro para a Avaliação Psicanalítica aos 3 anos (AP3). Esse instrumento foi elaborado pelo mesmo grupo de pesquisadores (GNP) que construiu o IRDI (Kupfer et al., 2009).

O valor do IRDI está em detectar a tempo problemas de desenvolvimento e sinais iniciais de sofrimento psíquico, o que pode levar a uma intervenção e a uma retomada do desenvolvimento da criança (Ferrari et al., 2017). Aposta também na possibilidade de articulação entre o discurso psicanalítico e o discurso médico, incluindo a discussão sobre a constituição do sujeito no campo da saúde mental (Kupfer & Voltolini, 2005). Ainda que o instrumento IRDI possa ser considerado novo, ele já deu origem a diversos estudos, os quais trouxeram importantes discussões no que se refere a variados aspectos da constituição psíquica de bebês. Uma recente revisão de literatura sobre a utilização do IRDI em publicações científicas no Brasil encontrou estudos com articulações do IRDI com diversas temáticas, como saúde pública, autismo, linguagem e relação pais-bebê, a partir de estudos correlacionais e teóricos (Wiles, Omizzollo, Ferrari & Silva, 2018). Como exemplo, citamos o trabalho de Campana, Lerner e David (2015), que analisou a possibilidade de o IRDI avaliar autismo em bebês de 0 a 18 meses. Os autores concluíram que o instrumento IRDI não deve ser tomado como específico para detectar sinais de autismo, mas sim para evidenciar sinais de sofrimento no vínculo. No entanto, a potência do instrumento foi atestada na medida em que sinais de autismo puderam ser detectados dentre os sinais de sofrimento por ele identificados. Ainda em relação ao autismo, o IRDI foi incluído como um dos instrumentos para rastreamento/triagem de sinais iniciais de problemas de desenvolvimento na cartilha de Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com Transtornos do Espectro do Autismo (Brasil, Ministério da Saúde, 2014).

Um desdobramento importante do instrumento IRDI foi a possibilidade de, partindo da proposta inicial de avaliação, no campo da saúde, ser também pensado como estratégia de intervenção, no campo da educação. Tal intervenção se dá a partir da Metodologia IRDI. Nesta Metodologia, os IRDI são utilizados para o acompanhamento da relação que um professor estabelece com o bebê sob seus cuidados (Kupfer, Bernardino, Pesaro & Mariotto, 2015). Tal acompanhamento deve se dar através de uma terceira pessoa - o pesquisador treinado - que ajude o professor a tomar certa distância perante o que ele próprio está acompanhando (Kupfer, 2007).

Inspirados nas pesquisas anteriormente apresentadas, propusemos utilizar a Metodologia IRDI como um instrumento de promoção de saúde mental em crianças que frequentam creche no seu primeiro ano e meio de vida (Ferrari et al., 2017; Silva, Medeiros, Arrosi & Ferrari, 2021). Foram acompanhados 74 bebês de 4 a 18 meses que frequentavam sete escolas de Educação Infantil conveniadas com a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, e suas respectivas educadoras. As escolas eram de diferentes áreas da cidade, representativas de diferentes organizações comunitárias, mas todas atendiam a uma população de nível socioeconômico baixo. Algumas delas se localizam em comunidades que vivem em um contexto de bastante violência e pobreza. Apesar disso, as escolas têm uma boa infraestrutura física. Quanto aos profissionais, há um educador em sala para cada seis bebês, sendo que as turmas tinham até 18 bebês (portanto, de duas a três educadoras). A formação das educadoras varia entre ensino superior completo, com formação em pedagogia, e ensino médio com um acréscimo de um pequeno curso de formação de 160 horas, sendo 40 destas de prática supervisionada (Prefeitura Municipal de Porto Alegre/Comissão de Educação Infantil 011/2015).

 

O projeto IRDI nas creches em Porto Alegre - algumas considerações e atravessamentos ético-metodológicos

Considerando a escola de educação infantil como um possível lugar de promoção de saúde, mas conhecendo a realidade dos bebês e das escolas de nossa cidade (Dias, 2010), nos propusemos a trabalhar com dois objetivos iniciais: a potencialidade da metodologia IRDI na detecção de sofrimento psíquico em bebês, permitindo uma intervenção a tempo, e o suporte à educadora para colocar-se em relação com os bebês. Esta pesquisa-intervenção atentou aos aspectos éticos apontados pelo Sistema Comitê de Ética em Pesquisa/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (CEP/Conep), tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética do Instituto de Psicologia da UFRGS. Está inscrita na Plataforma Brasil sob o número CAAE 22411213.9.0000.5334.

Iniciamos o trabalho contatando a secretaria municipal de educação, que nos indicou as escolas de educação infantil para realizar o acompanhamento. No total contatamos sete Escolas de Educação Infantil, sendo duas Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEI) e cinco conveniadas. Acompanhamos 20 educadoras e 75 bebês que tinham no início do acompanhamento de 4 a 12 meses de idade. Quando as escolas aceitaram o trabalho, organizamos um minicurso sobre a constituição do sujeito e importância das relações precoces cuidador-bebê, cujo objetivo não era tanto ensinar esses conceitos às educadoras e coordenadoras pedagógicas das escolas indicadas, mas sim apresentar-nos, acolhê-las e conhecê-las. Tivemos muito cuidado na apresentação do trabalho para as educadoras que iríamos acompanhar. No contexto da educação infantil da nossa cidade, é frequente que as educadoras se sintam invadidas e ameaçadas no seu fazer em sala de aula pelas intervenções por parte dos agentes do Estado (incluindo a Universidade). Além disso, vivemos um boom de "diagnósticos" realizados pelas educadoras em sala de aula, não sendo raro que uma educadora encaminhe uma criança pequena para atendimento com um diagnóstico de autismo ou hiperatividade realizado por ela mesma. Esta hiperdiagnosticação precoce nos parece estar relacionada, entre outras questões, a uma dificuldade na formação daqueles que trabalham com bebês, já que os cursos de formação em educação infantil priorizam o ensino de crianças a partir dos 3 anos de idade. Estes dois aspectos nos levaram a optar por não mostrar às educadoras o instrumento IRDI e seus indicadores, mas tê-los como sustentação de nossas intervenções em sala de aula para potencializar as relações afetivas entre a educadora e o bebê.

Portanto, no minicurso com as educadoras, trabalhamos as quatro operações fundamentais do sujeito que sustentam o IRDI, mas não mostramos em nenhum momento os indicadores. Não queríamos correr o risco de que os indicadores do IRDI funcionassem como mais um instrumento diagnóstico. Ao contrário, o objetivo era que, a partir da sensibilização sobre as quatro operações fundamentais (SS, ED, PA e FP), e do nosso acompanhamento, elas se disponibilizassem subjetivamente na relação com os bebês. Além disso, nós, como equipe, tivemos o cuidado de nos posicionar, na relação com as educadoras como pesquisadores: também queríamos aprender como ocorre o desenvolvimento do bebê na escola de educação infantil. Assim, considerando a dificuldade que se tem na formação dos educadores na especificidade do cuidado com o bebê, e as dificuldades contemporâneas que se tem para assumir os cuidados educativos em relação ao outro (Lajonquière, 2010; Figueiredo, 2012), apoiamos nosso fazer com as educadoras na ideia de cuidado apontada por Rodulfo (2012). O autor se pergunta como se cuida, desde o lugar do psicanalista, para que uma experiência aconteça e, além disso, como se cuida para que não se perca a capacidade humana de experienciar. Nesse sentido aponta que

[...] em uma época na qual se seguem buscando soluções simples de causalidades simples para os processos subjetivos - é à medida em que ter cuidado, tomar-se o cuidado de cuidar, implica assumir uma função tão essencial quanto alheia a toda pretensão de ser-causa na existência do outro; cuidar da possibilidade de que tenha lugar uma experiência é absolutamente diferente de gabar-se de, onipotentemente, de causar uma experiência ao outro (Rodulfo, 2012, p. 58).

Ou seja, era essa sutil diferença que sustentava nossa entrada nas escolas. Queríamos entrar na escola para cuidar do cuidado ao bebê, sem nos colocar em uma posição baseada no pelo discurso universitário (Lacan, 1992/1969-1970) de ensinar academicamente sobre o bebê.

Depois do minicurso, iniciamos as visitas semanais às escolas. Durante nove meses, cada dupla de pesquisadores acompanhou a turma de berçário de uma das sete escolas, realizando uma visita semanal, na qual permaneciam de 2 a 4 horas em sala de aula. Os pesquisadores eram alunos do curso de psicologia e de fonoaudiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), alunos de especialização e psicólogas da Clínica de Atendimento Psicológico (UFRGS) e os três professores responsáveis pelo projeto. Nas primeiras visitas tentamos entender a dinâmica de cada escola e fizemos entrevistas com as educadoras dos berçários. As entrevistas foram realizadas individualmente em uma sala específica destinada para esse fim pela coordenação da escola. Nestas, abordamos a história profissional das educadoras, bem como o que elas pensavam a respeito do trabalho no berçário e o que elas acreditavam que seria importante para o bom desenvolvimento do bebê. Além disso, fizemos uma primeira avaliação com o instrumento IRDI para conhecer como estava se dando o processo de subjetivação dos bebês até aquele momento e para orientar nosso acompanhamento e intervenções ao longo do ano.

Dos 75 bebês avaliados, quatro encontravam-se na primeira faixa etária, de 0 a 4 meses incompletos; 15 bebês tinham entre 4 e 8 meses incompletos; 41 bebês tinham entre 8 e 12 meses incompletos; e 14 bebês tinham entre 12 e 18 meses. Dentre esses 75 bebês, 45 apresentaram um ou mais indicadores ausentes na avaliação inicial. Neste grupo de 45 bebês, a média foi de 2,89 indicadores ausentes por bebê. Houve o registro de 133 indicadores ausentes, distribuídos pelos eixos temáticos da seguinte forma: 23 indicadores do eixo SS; 114 indicadores do eixo ED; 28 indicadores do eixo PA; 27 indicadores do eixo FP2. Destacou-se a considerável ausência de indicadores vinculados ao eixo SS, considerando-se a faixa etária dos bebês, e ED, o que nos alertou para possíveis entraves importantes no curso constitutivo destes bebês.

A cada visita, dois a três bebês eram avaliados, mas a marcação na folha de avaliação era preenchida apenas após a saída da escola. Realizamos duas avaliações para cada faixa etária, de cada bebê, o que nos permitiu ter um acompanhamento longitudinal dos efeitos de nossas intervenções, traduzidos nos indicadores. Ao final da intervenção, o resultado quantitativo da avaliação com os IRDI foi muito semelhante à avaliação inicial, com cerca de 39 bebês apresentando um ou mais indicadores ausentes, e média de 2,07 indicadores ausentes dentre estes 39 bebês. Porém, tais indicadores centravam-se no eixo FP, e a grande maioria destes bebês apresentava-se clinicamente bem: relacionavam-se com a educadora e os coleguinhas, buscavam atenção, mas toleravam afastamentos, brincavam No entanto, alguns bebês acompanhados apresentaram importantes sinais de sofrimento psíquico. Tais bebês demandaram intervenções mais diretas no contexto da sala de aula e, em alguns casos, inclusive com suas famílias3. Assim, pensamos ter sido possível intervir a tempo com alguns bebês que apresentavam sinais iniciais de sofrimento psíquico. Durante todo o ano nos reunimos bimensalmente com a secretaria municipal de educação para discutir as possibilidades de intervenção institucional nas escolas, bem como fazer algum encaminhamento necessário para a rede de saúde municipal.

Ao término do acompanhamento às escolas, foi realizada uma entrevista final com cada uma das educadoras. Nelas, conversou-se a respeito do acompanhamento e da nossa estada em sala de aula. Em geral a avaliação foi positiva e pudemos rememorar, junto com elas, alguns aspectos importantes em relação a alguns bebês que inicialmente apresentavam sinais de sofrimento. Além disso, convidamos as educadoras e as coordenadoras pedagógicas das escolas acompanhadas para uma roda de conversa dois meses depois de terminado o acompanhamento, com o objetivo de finalizar coletivamente o trabalho. O encontro ocorreu fora do horário de trabalho das educadoras, em um auditório da Prefeitura Municipal.

 

A Metodologia IRDI na escola de Educação Infantil - dispositivo de acompanhamento e intervenção

No trabalho de acompanhamento com a Metodologia IRDI, buscamos inicialmente observar os bebês, em relação com suas educadoras, para só depois pensar na necessidade de intervir. Jerusalinsky e Berlinck (2008) propõem, para o trabalho com bebês, uma operação de leitura a partir do que o bebê coloca como dado a ver no corpo, entendendo que a manifestação no corpo do bebê porta um enigma a ser decifrado pelo cuidador primordial. Nesse deciframento, a SS e o ED são encenadas. Deixamo-nos tomar por esses enigmas e nos permitimos tentar decifrá-los.

Desde o início do acompanhamento, nos surpreendemos com o fato de as educadoras falarem pouco com os bebês, com a grande quantidade de nãos que elas diziam e com a importância excessiva da rotina (muito rígida). Era exigido dos bebês que se adaptassem rapidamente às rotinas dos horários de alimentação e de outras atividades da escola, mesmo quando eles demonstravam sofrimento. Também percebemos alguns bebês com mais dificuldades, ou porque choravam muito ou porque eram muito quietos, apáticos. Tais bebês, em geral, não eram buscados pelas educadoras - ou porque as perturbavam demais ou porque as convocavam de menos. Pensamos, então, que era hora de começar, delicadamente, a intervir.

Nossas intervenções se resumiam a simplesmente brincar com os bebês e conversar com as educadoras sobre eles e o seu trabalho. Nesse aspecto, nossas intervenções eram despretensiosas - tentamos suspender nosso saber acadêmico e nos surpreender com o que nos deparávamos no cotidiano da educação infantil. Por exemplo, em uma das escolas, os bebês choravam muito durante a manhã, entre outras coisas porque estavam com sono. As cenas observadas por nós eram envoltas de certa dose de violência em relação àqueles bebês que simplesmente queriam dormir e eram impedidos. Supusemos que, naquela escola, alguns bebês tinham uma intenção que não estava sendo codificada pelas educadoras e tomamos para nós essa demanda. Durante nossas visitas, perguntávamos o motivo de os bebês não poderem dormir e a resposta era porque a rotina da escola estabelecia que não se podia dormir antes do almoço. Perguntávamos então quem estipulava a rotina, pergunta que ficava sem resposta. Começamos a conversar com as educadoras que essa rotina talvez fosse excessiva para alguns bebês, considerando que seus pais trabalhavam até tarde e tinham apenas a noite para estar com eles. Como eles tem que estar de volta na escola até as 8h da manhã, dormem pouco. Além disso, colocamos que, se o bebê dormisse antes do almoço, possivelmente se alimentariam melhor (havia uma enorme preocupação por parte da escola sobre a alimentação das crianças). Repetimos essas falas (sutilmente) por algumas semanas e, uma manhã, quando retornamos, vimos que algumas crianças estavam dormindo. Em nenhum momento dissemos o que as educadoras deveriam fazer, mas perguntamos, questionamos, fizemos alguns comentários. Nesse sentido, pensamos que nosso posicionamento com as educadoras foi de escuta e assinalamentos. Provavelmente essa posição adotada por nós lhes permitiu questionar seu fazer com e para os bebês, provocando um movimento.

Outras intervenções realizadas foram em relação à fala. As educadoras quase não falavam com os bebês. Mexiam em seus corpos, mudando os bebês de lugar ou mesmo retirando algum brinquedo que estava sendo disputado, sem dizer uma palavra para eles. Ao invés de conversar, contar histórias ou cantar, tocavam músicas quase ininterruptamente em aparelhos de som, a partir de CDs. Como percebemos que se falava pouco com os bebês, quando brincávamos com eles, conversávamos e cantávamos bastante. Nesse sentido, interviemos a partir das quatro operações fundamentais com os bebês e nos colocamos na posição de espelho na relação com os educadores. O estádio do espelho é considerado por Lacan (1998/1949) a transformação de um sujeito operada por uma imagem. É importante ressaltar que os pesquisadores se ofereceram como modelo especular a ser copiado. Segundo Lacan (1949/1988), "temos mostrado na dialética social que estrutura como paranoico o conhecimento humano" (p. 89), sendo que é pela projeção que ocorre a relação entre o Innenwelt com o Umwelt, ou seja, entre o organismo e a realidade. Assim, nos dirigindo ao bebê com uma Suposição e um Estabelecimento de demanda, permitimos que o educador transitivasse (Lacan, 1988/1948) conosco, se apropriando das características do objeto (pesquisador-bebê). De acordo com o autor, o eu "determinará o despertar de seu desejo pelo objeto do desejo do outro" (1988/1948, p. 106). Nesse aspecto pensamos que, trazendo um desejo e um enigma em relação ao que o bebê apresentava e indo em direção a ele, permitimos que, a partir de nossa afetação em relação ao bebê, as educadoras pudessem se perguntar e se afetar pelo que o bebê apresentava. Assim, apostamos que pela via da especularidade pudesse haver uma transformação do posicionamento subjetivo da educadora na relação com aquele bebê que está sob seu cuidado. Apostamos que, se nos vissem fazendo com o bebê, iriam se permitir fazer também com eles.

Em uma das escolas acompanhadas, a educadora dava mais atenção aos bebês maiores, àqueles que se deslocavam por conta própria e se ligavam mais facilmente às atividades propostas por ela. Notamos que os bebês menores ficavam sozinhos em um canto da sala, quietos, deitados no bebê conforto a maior parte do tempo. Como ilustração, reproduzimos aqui dois trechos dos diários clínicos de dois pesquisadores distintos que acompanhavam essa escola. O primeiro trecho se refere a um momento na sala do berçário, e o segundo, a um momento no auditório da escola, no qual estavam presentes todas as turmas.

As crianças parecem bem, interagem e brincam umas com as outras. Lucas4 [bebê], um dos mais novos, novamente, parece ganhar menos atenção. Fica sozinho em muitos momentos, engatinhando ou deitado longe das outras crianças. Parece que as professoras dão mais atenção para as crianças que vocalizam ou procuram elas. Como Lucas é menor, sinto que talvez não chame tanto atenção.

Mais uma vez chamou minha atenção como as professoras por vezes "esquecem" dos bebês menores, que chamam menos sua atenção. Especialmente a Carolina [bebê], que é muito calma. A Carolina foi capaz de dormir no bebê conforto em meio a uma confusão no auditório, enquanto esperavam o show. Margareth [educadora] inclusive dava mais atenção às crianças maiores, de outras turmas, que haviam sido seus alunos. Isso me angustiou. Num momento, uma das bebês ficou chorando bastante, assustada com a confusão e o barulho, e foi consolada por uma professora de outra turma. Margareth e Paula [educadora auxiliar] nem perceberam.

Após observar a repetição desta cena algumas vezes e de discuti-la com o grupo de pesquisadores, passamos a nos atentar mais aos bebês menores. Ostensivamente, buscávamos que a educadora "reparasse" que estávamos brincando mais com aqueles a quem ela dava menos atenção. Ao mesmo tempo, quando ela se aproximava de algum dos bebês menores, fazíamos comentários como "Olha como ele sorriu quando tu chegou", ou "Eu também gosto de brincar com a profe, só não sei pedir ainda [falando pelo bebê]". Ao longo do trabalho, fomos percebendo que a educadora passou a buscar mais os bebês menores e propor brincadeiras corporais, cantar e conversar. Ao final do acompanhamento, ela referiu ter mudado porque percebeu que nós dávamos mais atenção aos pequenos, e que ela percebeu que costumava responder mais aos maiores, que já conseguiam buscá-la.

Em outra escola fizemos uma intervenção mais direta com a direção. Observamos que os bebês eram acomodados para almoçar nas cadeirinhas ou bebê conforto antes da comida chegar na sala, ou seja, as professoras supunham que os bebês tinham que estar organizados para quando o alimento chegasse. Sendo essa espera muito longa para eles, já que além de esperar pela comida, tinham que esperar serem servidos e a comida esfriar. Nesse ínterim, começavam a chorar e alguns não conseguiam se alimentar porque continuavam incomodados por grande parte do período reservado para o almoço. Reproduzimos aqui dois trechos dos diários clínicos de dois pesquisadores distintos que acompanhavam essa escola.

Nos chama a atenção o horário do almoço, em que as educadoras colocam os bebês nas cadeirinhas antes de chegar a comida. Isso gera uma ansiedade grande nas crianças, o que faz com que a hora do papá seja muito tumultuada, e com muitos choros.

Com o choro dos demais ele chorava muito. Tentei me aproximar dele, conversar e ele ficou um pouquinho mais calmo. Uma hora ele tava quase dormindo sentado ao meu lado, então coloquei ele no meu colo e ele adormeceu, mais tranquilo. Quando Gabriela [educadora] viu que ele havia adormecido, deu um grito do outro lado da sala: "Não dorme!". Ela explicou que estava perto do almoço. Ele acordou com aquele grito, mas voltava a adormecer.

Primeiramente, tentamos falar com as educadoras a respeito da capacidade de espera de um bebê. Como seguiam com essa rotina e o sofrimento dos bebês era evidente, resolvemos conversar com a direção. A nossa preocupação foi acolhida: começaram a acomodar os bebês nos seus respectivos lugares para o almoço apenas depois da comida ter chegado na sala. A partir desse simples aspecto, o choro dos bebês diminuiu muito, como evidenciado no seguinte trecho do diário clínico de uma das pesquisadoras.

O que mais chamou a atenção nesse dia foi o fato de a comidinha já vir servida da cozinha. Antes, quem servia era alguma educadora [o que fazia com que a comida demorasse mais pra chegar aos bebês, que já estavam a tempos nas cadeirinhas, com sono e fome!]. Eu e a Paula [pesquisadora] atribuímos a mudança à conversa que a Andrea [pesquisadora] havia tido com a diretora na semana anterior.

 

O cuidado de quem cuida

Além do cuidado com os bebês e com as educadoras, buscamos que a experiência de acompanhamento fizesse também em nós marcas. No final de cada visita, a dupla de pesquisadores se reunia para conversar sobre suas percepções a respeito dos bebês e das educadoras, para escrever o diário clínico e fazer as marcações dos IRDI dos bebês. Semanalmente todo o grupo se reunia para contar, escutar e compartilhar as experiências vivenciadas nas visitas às escolas. Nos momentos coletivos, fomos percebendo que em cada escola o trabalho se estruturou de forma particular. Cada dupla passou a ocupar um lugar específico na escola: em algumas, sustentamos o fazer cotidiano em sala de aula; em outras, nossas intervenções abrangeram o nível institucional, abordando questões que nos chegavam através da direção, como pedido de ajuda, para poder pensar junto com elas situações que a equipe não conseguia resolver.

Os encontros coletivos e das duplas de pesquisadores foram fundamentais para o andamento do nosso trabalho, pois elaborávamos os acontecimentos vivenciados, dando-lhes um contorno. Este fato nos permitia, por exemplo, suspender intervenções que poderiam ser consideradas excessivas para o bebê e sua educadora. Sabíamos do quão delicado é intervir bruscamente com um bebê que está se iniciando no mundo. Na tentativa de "fazer o bem", muitas vezes corremos o risco de forçar precocemente algo que o bebê ainda não está em condições de metabolizar, ou incorrer em um excesso de implicação (Figueiredo, 2012). Além disso, é preciso atentar para os possíveis efeitos iatrogênicos de um diagnóstico ou do apontamento de um risco por nós suposto (Laznik, 2004; Conselho Federal de Psicologia, 2017). Assim, esses tempos de compartilhamento de experiências com o outro através das reuniões, da escrita do diário clínico e das marcações dos indicadores serviram para ancorar nossas preocupações com determinados bebês e poder fazer a leitura dos indicadores para poder intervir em/no tempo apropriado. Por isso, os indicadores não foram utilizados por si só, já que não foram simplesmente marcados, mas discutidos entre nós. Assim, funcionaram como uma lupa que, junto com outros sinalizadores, direcionavam nosso olhar e nossas intervenções. Suspender uma intervenção que seria precoce para o bebê e para sua educadora também foi fundamental para que deixássemos o bebê na relação com aquele adulto surgir. Seguindo a ideia de Rodulfo (2012), estávamos dispostos a permitir que a experiência surgisse espontaneamente na relação educador-bebê e não a causar, onipotentemente, uma experiência. Nesse aspecto percebemos que o IRDI foi utilizado como um dispositivo que permitiu direcionar nosso olhar e nossas intervenções.

No final do ano, após 9 meses de acompanhamento, realizamos novas entrevistas com as educadoras, a partir das quais pudemos conversar a respeito de como elas vivenciaram o nosso acompanhamento e se a relação com os bebês tinha se modificado. A análise das entrevistas apontou que as educadoras revelaram mais em suas falas sobre o que pensam e sentem do que na primeira entrevista, no início do trabalho. Possivelmente, isso se deva à relação que se estabeleceu entre educadoras e pesquisadores ao longo do acompanhamento, através do qual os pesquisadores passaram a ser vistos como figuras que "sustentam" o trabalho das educadoras, ao mesmo tempo em que refletem, em conjunto com elas, acerca de sua função. Além disso, as educadoras demonstraram estar pensando e questionando-se mais quanto ao seu trabalho. Ao mesmo tempo, nota-se que elas parecem conectadas com as necessidades afetivas do bebê, no que concerne à sua estruturação. As educadoras trazem concepções acerca da necessidade do bebê de continuidade - o que se relaciona a seu papel de referência para as crianças, assim como a sua presença e ausência.

Algumas questões que foram muito abordadas com as educadoras ao longo do acompanhamento também puderam aparecer nas entrevistas. Através das discussões no grupo de pesquisa, das leituras dos diários de campo e das falas de algumas das educadoras, fomos percebendo que elas trazem a importância de alguém que dê suporte a elas, que as ampare para que possam exercer sua função. Ainda no sentido de uma sustentação, muito do que as educadoras traziam para nós como queixa em nossas visitas era a dificuldade de trabalhar bem com os bebês com uma equipe que enfrenta dificuldades. As educadoras, na entrevista ao final do acompanhamento, falaram na importância de um grupo que se comunique bem para atender aos bebês. As educadoras trouxeram concepções, a partir de suas falas, acerca de aspectos subjetivos seus, aparentando considerar que seu trabalho não se dá apenas no plano das práticas ou tarefas. No acompanhamento, diversas vezes foi tópico de reflexão com as educadoras como e o quanto colocar-se subjetivamente na relação com as crianças. Na entrevista, elas puderam trazer ideias relacionadas a ser mãe, a como foram cuidadas e a ter um vínculo maior com alguma criança. Em geral, percebeu-se que as educadoras estavam considerando mais a sua subjetividade, parte de sua função. Ilustramos tal afirmação com trechos de entrevistas de duas educadoras.

[...] ela é a mãe, eu sou a educadora. Aí que tá o laço diferente. Então... tem umas que são super mãezonas, que tu vê que se preocupa com a criança, em todos os aspectos. Tem outras que tu vê que não tanto. Mas de repente acho que vem do próprio vínculo de criação. Mais ou menos tu vai criar teus filhos como tu foi criado... e aqui na escola, também!

[...] poder dar a mamadeira um por um, apesar da correria, [...] olhar pro rostinho na hora de dar a mamadeira, sem ser aquela coisa automática, mas tu poder olhar, ajudar [...] eles te olham com uma cara de felicidade e tu diz: "ai, que lindo, abriu o bocão" [...]. E tu olhar aqueles olhinhos brilhando é maravilhoso!

O fechamento do trabalho aconteceu com uma roda de conversa com as educadoras que participaram do projeto. Esse encontro foi muito importante, tanto para nós quanto para as educadoras presentes. Através de uma proposta de conversa mais aberta, puderam compartilhar como foi para elas serem acompanhadas e como foram refletindo sobre as situações que nossas intervenções lhes colocavam. Nessa roda nos contaram que, a partir de nos observarem, passaram a dar mais atenção aos bebês menores e mais quietos.

Vocês estavam nos observando, mas a gente também observava vocês!

A gente acabou desacelerando. E consequentemente foi dando pra olhar mais para a criança que estava quietinha, que não pedia muito atenção."; "foi importante um olhar de fora para dar alguns alertas, principalmente prestar atenção nas crianças mais quietas também. Tu vai no que chama mais atenção, não na quietinha5.

Falaram sobre a importância de terem conseguido flexibilizar a rotina e, com isso, puderam singularizar o cuidado com os bebês em alguns momentos do dia. A partir dessa flexibilização da rotina, também puderam diminuir o número de "nãos" ditos aos bebês e passaram a sentir prazer nas brincadeiras e em compartilhar as conquistas dos bebês. Isso se refletiu em um olhar mais singularizado de cada bebê respeitando as suas características e tentando adaptar os cuidados cotidianos a partir delas. Também referiram que, a partir de nosso trabalho, perceberam a importância de conversar com os bebês: "As crianças são aceleradas, mas quem coloca esse ritmo neles somos nós, é a gente que acelera! [...] por que todos tem que fazer a mesma coisa no mesmo momento?"; "Eles são pequeninhos, mas tem que falar com eles".

Além disso, referiram a importância de terem se sentido cuidadas e valorizadas no seu fazer. Por exemplo, uma educadora disse que nosso acompanhamento fez com que ela buscasse outro curso na área, pois passou a perceber a importância de seu trabalho. A posteriori, nós também percebemos que a forma como nos colocamos junto às educadoras, para pensar com elas (e não por elas) sobre o seu trabalho e viver com elas experiências com os bebês, marcou a direção de nossa intervenção. Tal direção é uma proposta da Metodologia IRDI original. Kupfer, Bernardino e Mariotto (2014) referem que, uma vez que se oferece uma sustentação do fazer do educador, a partir de um espaço de escuta e de circulação da palavra, percebe-se a Metodologia como promotora de mudanças de posição no trabalho do educador, tomado em um lugar de quem tem algo a dizer e não somente a fazer. Nesse sentido, Claude Boukobza (2002) salienta que o psicanalista, no trabalho com cuidadores, oferece um "holding do holding", ou seja, um cuidado para o cuidador, fazendo ou estando junto e complementando o olhar do cuidador, sem jamais destituí-lo.

Para Benavides e Boukobza (1997), no trabalho de sustentação da função materna, percebeu-se como necessária não apenas uma escuta do que as mães/cuidadores tinham a dizer, mas estar junto, na convivência cotidiana, com o par mãe-bebê, situando-se como um continente onde a palavra poderia ter efeito. Em um ano de diversas mudanças de educadores nas turmas acompanhadas, houve a percepção de algumas educadoras de que os pesquisadores puderam oferecer, ainda que visitassem a sala apenas uma vez por semana, uma continuidade. Possivelmente, a preservação de alguma continuidade foi importante não apenas para os bebês, mas para a própria educadora, como percebemos no seguinte trecho da fala de uma educadora durante a entrevista final: "Vocês foram mais contínuos do que as educadoras [...] por isso também funcionou a ida de vocês".

No encerramento do trabalho de acompanhamento na turma, uma educadora questionou os pesquisadores, na entrevista final, sobre como avaliavam o ano que passaram no berçário. Uma das pesquisadoras respondeu: "Acho que isso é muito importante, nos ensina muito de nos colocar mais no lugar do educador, não tanto assim da criança, do que a criança precisa...acho que nos ensinou muito sobre o que o educador também precisa, né?". Esta fala aponta para uma intervenção de formação mútua, em que a educadora e os pesquisadores enriqueceram-se com o encontro e com os laços ali construídos.

A análise do material, portanto, apontou para o potencial da Metodologia IRDI como um dispositivo de "cuidado de quem cuida", sendo esse instrumento utilizado como um operador de leitura dos bebês, um dispositivo de intervenção e de cuidado com os bebês, educadoras, coordenações e com as famílias. Pensamos que este é um passo no sentido de uma educação subjetivante pois, de acordo com Brandão (2012), para que o ambiente de creche possa ser subjetivante é necessário que o educador esteja atravessado por um discurso diferente do ideal pedagógico, ou seja, permeado por um discurso que o sustente no laço com o bebê, através de marcas simbólicas.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Milena da Rosa Silva
milenarsilva@hotmail.com

Andrea Gabriela Ferrari
andrea.ferrari@ufrgs.br

Submetido em: 14/09/2018
Revisto em: 12/03/2020
Aceito em: 17/03/2020

 

 

1 Alíngua: a Alíngua pode ser pensada, a partir das considerações feitas por Lacan no seminário XX (1975/1982), a matéria-prima do inconsciente estabelecida pelo enlace entre o corpo do bebê e o desejo do Outro. Nesse aspecto, "a alíngua serve para coisas inteiramente diferentes da comunicação. É o que a experiência do inconsciente mostrou, no que ele é feito de alíngua para designar o que é a ocupação de cada um de nós, a alíngua materna" (Lacan, 1975/1982, p. 188).
2 A soma de indicadores por eixo temático é superior a 133 porque alguns indicadores correspondem a mais de um eixo teórico.
3 A descrição de tais intervenções - muito singulares, relativas às necessidades de cada bebê - está fora do escopo do presente trabalho. Mas um exemplo pode ser buscado em [referência retirada para não identificação dos autores]. Ainda alguns bebês necessitaram de encaminhamento para atendimentos externos.
4 Todos os nomes foram alterados.
5 Falas das educadoras extraídas do relato da Roda de Conversa.