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ARTIGOS
Crises de hegemonia mundial e a aceleração da história social
1
+
Beverly J. Silver
2
*
e Corey R. Payne
3
**
Resumo: Este artigo examina a relação entre hegemonias mundiais e protesto social.
O aumento do protesto social global e a incapacidade dos poderes governantes de
abordar suas raízes estão entre os sinais de que entramos em uma crise de hegemonia
dos Estados Unidos e em um período de profundo caos sistêmico. Esse caos sistêmico
é análogo ao que caracterizou as transições da hegemonia holandesa para a britânica
e da hegemonia britânica para a norte-americana. Historicamente, o surgimento de
novas hegemonias pressupõe uma potência ascendente com capacidade e visão para
fornecer soluções reformistas aos desafios revolucionários. Esses desafios em nível
de sistema tornaram-se mais amplos e profundos de uma transição para a seguinte,
levando a uma “aceleração da história social. Devido aos limites ecológicos do capi-
talismo e à mudança no equilíbrio de poder entre o Norte e o Sul globais, as soluções
reformistas que (temporariamente) funcionaram no passado não são mais suficientes.
Palavras-chave: Hegemonia. Crise. Protesto Social. Capitalismo
++
+
Tradução de Raquel Coelho e Ísis Camarinha. Traduzido de Silver, Beverly J. and Payne, Corey
R. Crisis of world hegemony and the speeding up of social history In Dutkiewicz Piotr, Casier
Tom and Scholte Jan A. Hegemony and world order reimaginig power in global politics. Rout-
ledge, 17-31, 2020
2
*
Professora do Departamento de Sociologia e diretora do Arrighi Center for Global Studies da
Johns Hopkins University.
3
**
Doutorando em Sociologia na Johns Hopkins University (Baltimore, EUA).
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Um novo período de caos sistêmico global?
A escalada das tensões geopolíticas e as divisões internas profundas dentro dos Esta-
dos Unidos que culminaram na eleição de Donald Trump estão entre os indicadores
de que estamos vivendo a crise terminal da hegemonia mundial dos Estados Unidos
– uma crise que começou com o estouro da bolha da Bolsa de Valores da Nova Econo-
mia em 2000-2001 e que se aprofundou com a reação contínua ao fracasso do Projeto
para um Novo Século Americano da administração Bush e à invasão do Iraque em
2003. Enquanto nos anos 1990, os Estados Unidos eram vistos quase universalmente
como a única e inabalável superpotência mundial, na época do colapso nanceiro de
2008, a noção de que a hegemonia dos Estados Unidos estava numa crise profunda
e potencialmente terminal deixou de ser marginal para se tornar dominante. Desde
2016, a visão de que estamos no meio de uma ruptura irremediável da hegemonia dos
Estados Unidos ganhou uma adesão ainda maior, dada as consequências intencionais
e não intencionais do movimento de Trump “Make America Great Again”.
O momento atual é agora amplamente percebido tanto como uma crise de hege-
monia dos Estados Unidos quanto como uma profunda crise do capitalismo global
numa escala não vista desde os anos 1930. Quando os historiadores futuramente olha-
rem para 2019-2020, dois grandes sinais de profunda crise sistêmica vão se destacar.
Primeiro, a onda mundial de protestos sociais que varreu o globo após o colapso fi-
nanceiro de 2008, atingindo um primeiro pico por volta de 2011, e depois escalando
para um crescente em 2019. Segundo, o fracasso dos estados ocidentais em responder
de maneira competente à pandemia global da covid-19, minando a credibilidade do
Ocidente (e especialmente a dos Estados Unidos) aos olhos tanto de seus próprios
cidadãos quanto dos cidadãos do mundo.
No final de 2019 – antes que a escala da crise da covid-19 fosse aparente – parecia
que a onda global crescente de protestos sociais se tornaria a história da década, dado
o “tsunami de protestos que varreu seis continentes e engoliu tanto democracias libe-
rais quanto autocracias implacáveis” (WRIGHT, 2019). À medida que agitações sociais
inundaram cidades desde Paris e La Paz a Hong Kong e Santiago, declarações de “um
ano global de protestos” ou “o ano do manifestante de rua” encheram as páginas dos
jornais do mundo inteiro (por exemplo, DIEHL, 2019; JOHNSON, 2019; RACHMAN,
2019; WALSH e FISHER, 2019). Ondas de protestos em massa vieram por definir toda
a década. Já em 2011, a revista Time havia eleito “O Manifestante” a “Pessoa do Ano
(ANDERSEN, 2011), tendo em vista que a agitação popular se espalhava pelo mundo,
desde o Occupy Wall Street e movimentos antiausteridade na Europa até a primavera
árabe e as ondas de greves de trabalhadores na China. Duas décadas adentro do século
XXI, tornou-se claro que o descontentamento popular com a atual configuração social
é amplo e profundo.
Essa explosão de protestos sociais no mundo inteiro é um sinal claro de que os fun-
damentos sociais da ordem global estão desmoronando. Se conceituamos hegemonia
como “ordem legitimada pelo poder dominante” (seguindo a introdução deste volu-
me), então a amplitude e a profundidade do protesto social é um sinal claro de que
a legitimidade do(s) poder(es) dominante(s) foi gravemente abalada. Esses proces-
sos análogos – protestos globais e pandemia global – revelaram uma impressionante
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incapacidade dos grupos dirigentes do mundo de antever, e menos ainda de imple-
mentar, mudanças que poderiam atender adequadamente às queixas vindas das cama-
das inferiores ou satisfazer as crescentes demandas por segurança e proteção.
A grande onda global de protestos sociais e a incapacidade do poder hegemôni-
co em declínio de satisfazer as demandas vindas dos debaixo são sinais claros de que
estamos em meio a um período de colapso hegemônico mundial. De fato, como argu-
mentado em outro lugar (SILVER; SLATER, 1999), os períodos passados de colapso
hegemônico mundial – quer dizer, a transição do final do século XVIII/início do século
XIX da hegemonia holandesa para a britânica e a transição do início do século XX da
hegemonia britânica para a americana – também foram caracterizados tanto por pro-
testos em massa das camadas inferiores na forma de greves, revoltas, rebeliões e revolu-
ções, quanto por um fracasso de liderança por parte do poder hegemônico em declínio.
Uma nova hegemonia mundial – se surgir – exigiria duas condições. Primeiro,
exigiria que um novo bloco de poder “se colocasse, coletivamente, à altura da tarefa de
fornecer soluções sistêmicas para os problemas sistêmicos deixados pela hegemonia
norte-americana. Segundo, se uma nova hegemonia mundial for emergir de maneira
não catástrofica, isso exigiria que “os principais centros da civilização ocidental [espe-
cialmente os Estados Unidos] consigam adaptar-se a uma situação menos destacada, à
medida em que o equilíbrio de poder em escala mundial se afasta dos Estados Unidos
e do Ocidente (ARRIGHI; SILVER, 1999, p. 286).
Vista a partir de 2020, parece que a segunda condição – o ajustamento gracioso por
parte dos Estados Unidos (especificamente) e das potências ocidentais (em geral) a
uma distribuição mais igualitária de poder entre os Estados – falhou de maneira espe-
tacular em se concretizar. Se a segunda condição depende principalmente do compor-
tamento do poder hegemônico em declínio, a primeira condição – o desenvolvimento
de soluções sistêmicas para problemas sistêmicos – depende da capacidade de um
novo bloco de poder atender às demandas que surgem nas camadas inferiores.
No passado, um novo poder hegemônico só poderia afastar o sistema do caos se
reorganizasse fundamentalmente o sistema mundial em modos ou estilos pelos quais,
pelo menos, atendessem parcialmente às demandas de subsistência e proteção que
emanavam dos movimentos de massa. Colocando de forma diferente, eles poderiam
se tornar hegemônicos apenas por meio do fornecimento de soluções reformistas para
os desafios revolucionários vindos das camadas inferiores. Nesse sentido, a hegemonia
mundial exige capacidade (e visão) para fornecer soluções sistêmicas.
Hegemonia e análise dos sistemas-mundo
Este artigo aborda a “hegemonia” em termos de sistemas-mundo, pois nos concen-
tramos na interrelação entre capitalismo histórico e hegemonias mundiais sucessivas.
Além disso, argumentamos que as hegemonias mundiais não podem ser compreen-
didas sem examinar seus fundamentos sociais e poticos em evolução. Como tal, nosso
trabalho faz parte de uma tradição dentro da escola de sistemas-mundo que se desen-
volve a partir da conceitualização de hegemonia por Antonio Gramsci
1
.
1
Veja especialmente Arrighi (2010 [1994]), capítulo 1.
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Uma série do que poderia ser chamado de não debates (ou discursos com propósi-
tos cruzados) surgiu na literatura sobre hegemonia como resultado das formas diver-
gentes com que o termo é entendido
2
. Definições distintas existem mesmo no interior
das escolas de pensamento, inclusive no interior da perspectiva de sistemas-mundo.
Assim, Immanuel Wallerstein (1984, p. 38-39) definiu hegemonia como sinônimo de
dominação ou supremacia – isto é, como uma “situação em que a rivalidade contínua
entre as chamadas ‘grandes potências’ é tão desequilibrada que uma potência é ver-
dadeiramente primus inter pares; isto é, uma potência pode em grande parte impor
suas regras e suas vontades nas arenas econômicas, políticas, militares, diplomáticas,
e até mesmo culturais. A supremacia econômica forneceu a base material para uma
série de Estados hegemônicos – as Províncias Unidas no século XVII, o Reino Unido
no século XIX, os Estados Unidos no século XX – “impor suas regras e vontades” em
todas as esferas.
Em vez disso, partimos do trabalho de Giovanni Arrighi (1982 e 2010 [1994], p. 28-
9) – expoente de outra grande vertente teórica dentro da literatura de sistemas-mun-
do – que define hegemonia mundial como “liderança ou governo sobre um sistema de
nações soberanas. Baseando-se nos escritos de Gramsci, Arrighi conceitualiza a hege-
monia mundial como algo “maior e diferente da ‘dominação’ pura e simples. Ela reflete
mais “o poder associado à dominação, ampliada pelo exercício da ‘liderança intelectual
e moral. Enquanto a dominação se assenta principalmente na coerção, a hegemonia
é “o poder adicional que é conquistado por um grupo dominante, em virtude de sua
capacidade de colocar num plano ‘universal’ todas as questões que geram conflitos
3
.
A ordem hegemônica, na prática, combina dois elementos: consentimento (lide-
rança) e coerção (dominação). Entretanto, os alvos do consentimento e da coerção são
diferentes. Como afirmou Gramsci:
a supremacia de um grupo social manifesta-se de duas maneiras, como “dominação” e
como “liderança intelectual e moral”. Um grupo social domina os grupos antagônicos,
que ele tende a “liquidar” ou subjugar, talvez até pela força das armas, e lidera grupos
ans ou aliados (1971, p. 57).
Em situações de hegemonia mundial estável, o princípio de consentimento é for-
te – seu alcance é relativamente amplo (geogracamente) e profundo (socialmente).
Protestos sociais são relativamente raros e tendem a ser de natureza normativa (por
exemplo, greves legais dentro dos limites dos acordos coletivos institucionalizados).
Em situações de crise ou de ruptura hegemônica mundial (como no período atual), o
equilíbrio geral entre consentimento e coerção pende cada vez mais para este último.
Os protestos sociais tendem a escalar e assumir formas cada vez mais não normativas,
enquanto a resposta das camadas superiores assume formas cada vez mais coercivas
(SILVER; SLATER, 1999; SILVER, 2003, p. 124-167).
2
Para uma revisão completa do uso do termo hegemonia - desde os antigos gregos até Barack
Obama – ver Anderson (2017).
3
Ao transportar o conceito de hegemonia social de Gramsci das relações intra-estatais para as
relações inter-estatais, Arrighi (1982 e 2010 [1994]) toma um caminho semelhante ao de grams-
cianos da Escola IPE como Cox (1983, 1987), Keohane (1984), Gill (1986, 1993), Gill e Law (1988).
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Períodos de hegemonia mundial estável são caracterizados por uma situação em
que o poder dominante reivindica com credibilidade estar conduzindo o sistema mun-
dial numa direção que não só serve aos interesses do grupo dominante, mas também
é percebida como servindo a um interesse mais geral, promovendo assim o consenti-
mento (ARRIGHI; SILVER, 1999, p. 26-28). Como afirmou Gramsci, com referência
à hegemonia em nível nacional:
É verdade que o [hegemon] é visto como o instrumento de um grupo particular, desti-
nado a criar condições favoráveis para a máxima expansão deste. Mas o desenvolvimen-
to e a expansão do grupo especíco são concebidos e apresentados como sendo a força
motriz de uma expansão universal... (1971, p. 181-2, grifo nosso).
Certamente, a alegação do poder dominante de representar o interesse geral é sempre
mais ou menos fraudulenta. Mesmo em situações de hegemonia estável, os excluídos
do bloco hegemônico – os “grupos antagônicos” de Gramsci – são predominantemen-
te governados pela força. No entanto, em períodos de ruptura hegemônica, como o
atual, as reivindicações do poder dominante de que age em prol do interesse geral
parecem cada vez mais vazias e autointeressadas, mesmo aos olhos dos “grupos ans ou
aliados. Tais reivindicações perdem sua credibilidade e/ou são abandonadas inteira-
mente desde cima.
Não obstante, em situações de hegemonia mundial, a reivindicação do poder do-
minante de representar o interesse geral deve ter um significativo grau de credibilida-
de aos olhos dos grupos aliados. Assim, por exemplo, no período de auge global do
Keynesianismo e do Desenvolvimentismo
4
, os Estados Unidos puderam alegar com
credibilidade que uma expansão do poder mundial dos Estados Unidos era de inte-
resse mais geral (se não universal), ao estabelecer arranjos institucionais globais que
promoviam o emprego e o bem-estar (de forma imediata no caso do Primeiro Mundo;
e como o fruto prometido do “desenvolvimento” no caso do Terceiro Mundo); aten-
dendo, assim, às demandas trazidas pelas mobilizações de massa trabalhistas, socialis-
tas e de libertação nacional do início e meados do século XX.
Arrighi argumenta que a disposição de grupos e Estados subordinados em aceitar
um novo hegemon (ou mesmo um poder puramente dominante) se torna especialmen-
te generalizada e forte em períodos de “caos sistêmico” – isto é, em “situação de falta
total, aparentemente irremediável, de organização” (ARRIGHI, 2010 [1994], p. 31).
À medida que aumenta o caos sistêmico, a demanda de ‘ordem’ – a velha ordem, uma
nova ordem, qualquer ordem! – tende a se generalizar cada vez mais entre os governan-
tes, os governados, ou ambos. Portanto, qualquer Estado ou grupo de Estados que esteja
em condições de atender a essa demanda sistêmica de ordem tem a oportunidade de se
tornar mundialmente hegemônico (2010 [1994], p. 31)
5
.
4
Ver, por exemplo, McMichael (2012).
5
“Historicamente, os Estados que aproveitaram com êxito essa oportunidade, zeram-no re-
constituindo o sistema mundial em bases novas e mais amplas, restabelecendo assim uma certa
medida de cooperação interestatal” (ARRIGHI, (2010 [1994], p. 31-2).
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À medida que o início do século XXI avança, há crescentes evidências de que o
mundo entrou em outro “período de caos sistêmico – análogo mas não idêntico – ao
caos sistêmico da primeira metade do século XX” (SILVER; ARRIGHI, 2011, p. 68).
Além disso, há evidências crescentes de respostas cada vez mais coercivas vindas das
camadas superiores (cf. ROBINSON, 2014). Contudo, tanto por razões teóricas como
históricas, há todos os motivos para se esperar que o poder exercido por meios cada
vez mais coercitivos só logrará aprofundar o caos sistêmico.
Ao revés, um movimento em direção à hegemonia mundial e longe do caos sis-
mico exigiria de um poder hegemônico aspirante a capacidade de: a) reconhecer as
queixas de grupos de classes e status além do grupo/estado dominante e; b) ser capaz
de liderar o sistema mundial através de um conjunto de ações transformadoras que
(pelo menos em parte) atendam com sucesso a essas queixas. Ações transformadoras
que consigam ampliar e aprofundar o consentimento transformam “dominação pura
e simples” em hegemonia
6
.
Dito de outro modo, o estabelecimento de uma nova ordem mundial hegemônica
tem tanto um lado de “oferta” quanto um lado de “demanda. O lado da oferta nessa
questão se refere à capacidade do suposto poder hegemônico em implementar solu-
ções sistêmicas para problemas sistêmicos. Em outras palavras, a hegemonia não é
estritamente uma questão de ideologia; ela tem uma base material. A seção final deste
artigo voltará à questão da “oferta. A próxima seção se concentrará em esclarecer o
“lado da demanda” da hegemonia mundial no início do século XXI.
Protesto social global e a demanda por hegemonia mundial
O desmoronamento das bases sociais da hegemonia mundial dos EUA
O conceito de “aceleração da história social” no título deste artigo refere-se ao fato de
que as ondas globais de protestos sociais que caracterizam os períodos de transição
hegemônica – e os desaos que elas representam para os hegemons declinantes e aspi-
rantes – tornaram mais amplas e profundas no decorrer do longue durée do capitalismo
histórico. Sucessivamente, as contradições sociais de cada hegemonia sucessiva – ho-
landesa, britânica, americana – emergiram de forma mais rápida entre uma hegemonia
e a seguinte; assim, os períodos de hegemonia mundial relativamente estáveis torna-
ram-se cada vez mais curtos
7
. Em suma, podemos observar um padrão evolucionário
6
Ao enfatizar a natureza transformadora da hegemonia, Arrighi apresenta uma teoria evolucio-
nária da longue durée do capitalismo histórico, a qual é outro contraste-chave entre sua aborda-
gem dentro da escola dos sistemas-mundo e a de Wallerstein. Para Arrighi, as “transformações
fundamentais realizadas por sucessivas potências hegemônicas” signicam que “as hegemonias
mundiais não ‘ascenderam’ e ‘declinaram’ num sistema mundial que se tenha expandido in-
dependentemente, com base numa estrutura invariável […]. Ao contrário, o sistema mundial
moderno se formou e se expandiu com base em recorrentes reestruturações fundamentais, li-
deradas e governadas por sucessivos Estados hegemônicos” (ARRIGHI, 2010 [1994], p. 31-32,
ênfase acrescentada).
7
“Embora as organizações governamentais e empresariais que lideram cada [ciclo sistêmico de
acumulação] tenham se tornado mais poderosas e complexas, os ciclos de vida dos regimes de
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de crescente complexidade social que uma hegemonia mundial para a outra, já que cada
poder hegemônico sucessivo teve que acomodar demandas de uma gama mais ampla e
profunda de movimentos sociais (veja ARRIGHI; SILVER, 1999, p. 151-290).
Essa aceleração da história social e a crescente complexidade social podem ser vis-
tas quando comparamos a trajetória da hegemonia mundial dos Estados Unidos com
as hegemonias mundiais anteriores. Como aconteceu com as hegemonias mundiais
holandesa e britânica, o firme estabelecimento da hegemonia americana não depen-
deu apenas da preponderância de seus poderes militar e econômico. Dependeu tam-
bém da capacidade dos hegemons em ascensão de oferecer soluções reformistas para
uma série de desafios revolucionários, que se estendem (numa versão crua e abrevia-
da) desde a Revolução Americana até as Revoluções Francesa e Haitiana, no caso da
hegemonia britânica, e desde a Revolução Russa à Chinesa, no caso da hegemonia
norte-americana. Mas o pacto social que sustentaria a hegemonia americana após a
Segunda Guerra Mundial – o contrato social de consumo em massa para os traba-
lhadores do Norte global e a descolonização e promessa de desenvolvimento para o
Sul global - era mais amplo em alcance geográfico e atingia mais a fundo a estrutura de
classes do que os pactos sociais sobre os quais se assentou a hegemonia holandesa ou
britânica (ARRIGHI; SILVER, 1999, p. 151-216; 251-270).
De forma relacionada, a hegemonia norte-americana foi também a mais curta,
uma vez que as soluções produzidas pelos Estados Unidos aos desafios revolucioná-
rios do século XX se mostraram insustentáveis no contexto do capitalismo global. A
plena implementação das promessas hegemônicas de consumo em massa para a classe
trabalhadora central e de desenvolvimento na forma de catching-up para o Terceiro
Mundo rapidamente causaria uma compressão nos lucros, devido a seus efeitos redis-
tributivos substanciais (WALLERSTEIN, 1995, p. 25; SILVER, 2019). Em realidade, a
crise inicial da hegemonia americana no final dos anos 1960 e 1970 foi, por um lado,
uma crise interligada de lucratividade do capital e, por outro, de legitimidade.Uma
variedade de movimentos – desde ondas de greve militantes no Primeiro Mundo es-
forços para estabelecer uma Nova Ordem Econômica Internacional emanados do Ter-
ceiro Mundo – exigia, essencialmente, um cumprimento mais rápido e mais completo
das promessas implícitas e explícitas da hegemonia dos Estados Unidos.
A expansão financeira e a contrarrevolução neoliberal que começaram nos anos
1980 resolveram temporariamente essas crises interligadas. A financeirização – a reti-
rada maciça de capital do comércio e da produção para a especulação e intermediação
financeira – teve um efeito debilitante sobre movimentos sociais no mundo inteiro,
mais notadamente por meio do mecanismo da crise da dívida no Sul global e das
demissões em massa no coração do movimento trabalhista no Norte global. O resul-
tado foi uma belle époque americana nos anos 1990, uma vez que poder e lucros eram
restaurados; entretanto, como no caso das belles époques holandesas e britânicas, esse
acumulação se tornaram mais curtos. O tempo que levou para cada regime sair da crise do regi-
me dominante anterior, tornar-se ele mesmo dominante, e atingir seus limites (sinalizado pelo
início de uma nova expansão nanceira) foi menos da metade, tanto no caso do regime britâni-
co em relação aos genoveses quanto no caso do regime americano em relação aos holandeses
(ARRIGHI, 2010 [1994], p. 225).
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ressurgimento de poder e lucratividade acabou sendo, nas palavras de Braudel (1984),
um sinal de “outono” em vez de uma nova primavera para essas hegemonias
8
.
A financeirização e o projeto neoliberal marcaram uma mudança da hegemo-
nia em direção à dominação, uma declinação que foi se afastando do consentimento
rumo à coerção. Ao mesmo tempo, porém, o processo de destruição criativa (para
usar o termo de Schumpeter) tem alimentado um retrocesso político entre aqueles
que haviam sido incorporados como sócios juniores ao pacto social hegemônico de
meados do século XX (e que agora estavam sendo expulsos dele) – mais notadamen-
te os trabalhadores masculinos de produção em massa nos países centrais. Conco-
mitantemente, novos (e cada vez mais militantes) grupos e classes estão sendo “cria-
dos” e não podem ser facilmente acomodados na decadente ordem hegemônica – em
especial, uma classe trabalhadora em expansão, mas precariamente empregada no Sul
global e uma classe trabalhadora imigrante no Norte global.
Os fundamentos sociais de uma hegemonia mundial do século XXI
Temos argumentado que o exercício da hegemonia mundial requer que um poder
hegemônico aspirante seja capaz tanto de reconhecer as queixas de grupos de classes e
status além do grupo/estado dominante, quanto de liderar o sistema mundial por meio
de um conjunto de ações transformadoras que (pelo menos em parte) atendam com
sucesso essas queixas. Em termos mais gerais, temos argumentado que uma condição
prévia para a hegemonia mundial no século XXI é o surgimento de um novo bloco de
poder que “se colocaria coletivamente à altura da tarefa de fornecer soluções sistêmi-
cas para os problemas sistêmicos deixados pela hegemonia dos Estados Unidos.
Examinamos os atores e as queixas na recente onda global de protestos sociais do
início do século XXI, de 2011 a 2019, como uma janela para os problemas sistêmicos a
que uma hegemonia aspirante precisaria atender para transformar a dominação (coer-
ção) em hegemonia (consentimento), e assim atender às condições do lado da “de-
manda” necessárias para encerrar a fase de aprofundamento do caos sistêmico na qual
agora nos enquadramos. Damos especial atenção aos novos desafios sistêmicos que
surgiram no último meio século – desafios que tornariam um simples retorno ao pacto
social do pós-guerra liderado pelos Estados Unidos inadequado à tarefa em questão.
Uma primeira diferença fundamental entre as condições sóciopolíticas a se-
rem acomodadas dentro de qualquer hegemonia mundial do século XXI e todas as
hegemonias mundiais anteriores é a mudança significativa no equilíbrio de poder en-
tre o Ocidente e “o Resto” (POPOV; DUTKIEWICZ, 2017). Todas as hegemonias an-
8
Cada um dos três períodos de expansão nanceira discutidos por Braudel levaram a um res-
surgimento dramático de poder e prosperidade para o país capitalista dominante da época (por
exemplo, uma segunda era de ouro para os holandeses; a belle epóque vitoriana para a Grã-Bre-
tanha). No entanto, em cada caso, o ressurgimento do poder mundial e da prosperidade foi de
curta duração. Para Braudel, as sucessivas transferências realizadas pelos capitalistas genoveses,
holandeses e britânicos do comércio e da indústria para nanças foram um sinal de que a expan-
são material tinha atingido a “maturidade. A nanceirização acabou por ser um prelúdio para
uma crise terminal da hegemonia mundial e para a ascensão de um novo centro geográco de
poder econômico e militar mundial (BRAUDEL, 1984; ARRIGHI, 2010 [1994]).
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teriores eram ocidentais num duplo sentido. Em primeiro lugar, o Ocidente havia acu-
mulado uma preponderância extraordinária de poder econômico e militar em relação
ao resto do mundo. Em segundo, o consentimento (hegemonia) se aplicava às classes
e aos grupos aliados dentro dos Estados ocidentais, enquanto que a força (dominação)
prevalecia, com poucas exceções, no mundo não ocidental.
De fato, diante dos crescentes movimentos de libertação nacional na primeira me-
tade do século XX, os Estados Unidos lideraram uma transformação do sistema mun-
dial que promoveu a descolonização e normalizou de jure a soberania nacional
9
. Não
obstante, as principais alavancas do poder econômico e militar permaneceram firme-
mente controladas pelos Estados Unidos e pelos aliados ocidentais. Com o crescente
poder econômico dos não ocidentais no século XXI, especialmente mas não limitado
à China, uma ordem mundial estável e dominada pelo Ocidente não é mais possível.
A ação coletiva dos países do Sul global, refletida em inovações institucionais como
os BRICS e a ALBA, sinaliza ainda mais essa impossibilidade. Uma nova hegemonia
mundial (seja ela liderada por um único Estado, uma coalizão de Estados, ou um Es-
tado mundial) teria que acomodar essa maior igualdade entre o Norte global e o Sul
global. Essa mudança na balança de poder é, por sua vez, o contexto no qual a busca de
soluções para grandes problemas sistêmicos – como a gritante desigualdade de classes
dentro dos países, a degradação ambiental e a mudança climática, bem como as garan-
tias de segurança física e dignidade humana – irá se desenrolar nas pximas décadas.
Protestando contra a desigualdade dentro dos países
Um tema recorrente que tem animado os movimentos de protesto durante a última
década é a extrema desigualdade social. Para o movimento Occupy Wall Street, que se
espalhou do Parque Zucotti, perto de Wall Street, para 951 cidades em 82 países em
2011 (MILKMAN; LUCE; LEWIS, 2013), uma das principais queixas dos manifestan-
tes foi a desigualdade extrema – sintetizada no slogan dos 99% contra o 1%. Nos anos
seguintes ao movimento Occupy Wall Street, a desigualdade de classes tornou-se ain-
da mais descomunal na maioria dos países, provocando um outro levante mundial em
2019. Eclodiram protestos em Hong Kong, Índia, Chile, Colômbia, Bolívia, Líbano, Irã
e Iraque, deixando comentaristas lutando para identicar sua temática comum. “Mas
existe uma, escreve Michael Massing (2020): “fúria por ter sido deixado para trás. Em
cada uma das instâncias, o acendedor pode ter sido diferente, mas o fogo vem sendo
(na maioria dos casos) alimentado pela enorme desigualdade produzida pelo capita-
lismo global”. Enquanto os “acendedores” foram variados e “aparentemente modestos
– um aumento na tarifa do metrô no Chile, uma taxa sobre ligações pelo WhatsApp
no Líbano, cortes nos subsídios de combustível no Irã e no Equador, e aumentos de
preços de pão e cebola, respectivamente no Sudão e na Índia – “esses levantes não se
referem apenas a alguns centavos aqui e ali. Trata-se de uma maioria cada vez maior
da população global que se tornou farta dos aumentos no custo de vida, dos baixos
salários, [e] da erosão de conança no setor público. (SILK, 2019).
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A extensão da soberania legal às ex-colônias não foi acompanhada por uma extensão equiva-
lente da soberania de facto ou autodeterminação nacional efetiva.
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O início do século XXI foi marcado também por um retorno de movimentos tra-
balhistas, mas em novos locais industriais e geográficos. Houve grandes ondas de gre-
ves acarretadas por novas classes de trabalhadores – particularmente no Leste e no
Sul da Ásia – que tinham sido “formadas” no processo de reestruturação neoliberal da
economia mundial (KARATASLI et al., 2015, p. 191). A China, especialmente, emer-
giu como um novo epicentro dos movimentos trabalhistas mundiais. Como observa
Friedman (2012): “Embora não haja estatísticas oficiais, é certo que milhares, se não
dezenas de milhares, de greves acontecem a cada ano... com muitos grevistas obtendo
significativos aumentos salariais acima e além de quaisquer exigências legais” (veja
também SILVER; ZHANG, 2009).
Mesmo no Norte global, temos visto um aumento da militância trabalhista entre os
setores da classe trabalhadora que cresceram em tamanho e centralidade no decorrer
das últimas décadas, mais notadamente os trabalhadores imigrantes e os de mino-
rias étnicas. A maioria desses trabalhadores está “concentrada em trabalhos precários
e de baixos salários em indústrias como serviço doméstico, agricultura, manufatura
de alimentos e vestuário, hotelaria e restaurantes, e construção civil. No processo, a
luta pelos direitos de imigrantes está entrelaçada com a luta pelos direitos trabalhistas
(MILKMAN, 2011); por exemplo, com os sindicatos americanos sendo levados a lutar
em nome de seus membros contra as batidas de deportação na era Trump (ELK, 2018).
A ascensão de novas classes trabalhadoras no Norte global e no Sul global foi
acompanhada pelo “desmonte” das classes trabalhadoras industriais sindicalizadas,
bem remuneradas e esmagadoramente brancas, que foram sócias juniores na ordem
hegemônica mundial do século XX. Abandonadas pelo capital por locais mais baratos
ou, no caso dos trabalhadores do setor público, vendo seu bem-estar corroído pelo
esvaziamento das funções governamentais, esses trabalhadores têm travado lutas de-
fensivas. Os protestos pós-2008 contra a austeridade na Europa são particularmente
dignos de atenção, mas longe de serem os únicos exemplos de tais lutas defensivas
(KARATASLI et al., 2015, p. 190-191). Ao mesmo tempo, temos visto um aumento dos
protestos dos desempregados e dos empregados irregulares (ou, para usar o termo de
Marx, a “população excedente relativa permanente”). Essa parte da classe trabalhadora
desempenhou um papel proeminente (e frequentemente minimizado) no Egito, na
Tunísia, no Bahrein e no Iêmen durante a primavera árabe de 2011 (veja KARATASLI
et al., 2015, p. 192-3) e mais além.
Uma nova visão radical para o século XXI é necessária para enfrentar esses desa-
fios vindos das camadas inferiores. A promessa hegemônica americana de consumo
em massa e desenvolvimento nunca foi viável dentro do contexto do capitalismo histó-
rico. A afirmação de Wallerstein (1995) de que o capitalismo não poderia acomodar as
demandas combinadas do Terceiro Mundo (por relativamente pouco por pessoa, mas
para muitas pessoas) e [da] classe trabalhadora ocidental (para relativamente poucas
pessoas, mas muito por pessoa)”, permanece verdadeira hoje. O desafio para o século
XXI é incorporar, com credibilidade, a crescente e profunda variedade de classes e
movimentos de trabalhadores que exigem maior igualdade, tanto entre como dentro
dos países. É desnecessário dizer que esses fatores impedem um simples retorno ao
modelo hegemônico mundial dos Estados Unidos do século XX.
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ARTIGOS
A luta contra a degradação ambiental e a mudança climática
Todas as hegemonias mundiais anteriores do capitalismo histórico se basearam na ex-
ternalização dos custos de reprodução do trabalho e da natureza. O mundo natural foi
tratado como um insumo sem custos, enquanto a lucratividade sistêmica dependia do
pagamento de valores abaixo do custo total da reprodução de sua própria força de traba-
lho à maioria dos trabalhadores do mundo. A externalização dos custos de reprodução
da mão de obra e do uso da natureza foi levada ao extremo com o modelo altamente
intensivo em recursos e perdulário associado ao “modo de vida americano.
Há quase um século, Mohandas Gandhi reconheceu a insustentabilidade do mode-
lo de desenvolvimento capitalista ocidental. Ele escreveu:
O imperialismo econômico de uma única e minúscula nação insular [a Inglaterra] es
hoje [1928] mantendo o mundo acorrentado. Se uma nação inteira de 300 milhões [a
população da Índia na época] passasse por uma exploração econômica semelhante, isso
despojaria o mundo como uma nuvem de gafanhotos (1928 apud GUHA, 2000).
A ameaça existencial representada pela promessa hegemônica de universalizar o estilo
de vida americano – fundamentalmente uma versão atualizada da crítica de Gandhi
– foi adotada por ativistas ambientais e da mudança climática, cujo movimento ga-
nhou impulso durante a última década, culminando na greve climática mundial de
estudantes e jovens, em setembro de 2019. Como relatado pelo e New York Times,
em cidades do mundo inteiro º de Berlim a Melbourne, em Manila, Kampala, Nairobi,
Mumbai e Rio – o número de grevistas se encontrava facilmente nas dezenas de milha-
res, e em muitas cidades, nas centenas de milhares. “Raramente, se é que alguma vez,
o mundo moderno testemunhou um movimento juvenil tão grande e amplo, abran-
gendo sociedades ricas e pobres, unidas por um senso comum de repulsa, ainda que
incipiente (SENGUPTA, 2019).
Demandas por segurança física e dignidade
Discursando na greve climática de 2019 em Nova York, a jovem ativista do clima Greta
unberg declarou: “Exigimos um futuro seguro. Isso é pedir muito?”.
De fato, promessas viáveis de segurança são fundamentais para todas as hegemo-
nias mundiais. Hoje, as ameaças à segurança são múltiplas, crescentes e interligadas.
Constantes conflitos, embora de intensidade relativamente baixa, assolam todo o
mundo, ocasionando a maior crise de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial.
Por sua vez, movimentos neofascistas e de extrema-direita têm ressurgido, culpan-
do refugiados e imigrantes pelas inseguranças (reais e imaginárias) das populações
dos países receptores (SCHULTHEIS, 2019; BECKER, 2019). A mudança climática, o
militarismo, e a crise dos refugiados estão todos interligados num círculo vicioso que
alimenta a dinâmica do caos sistêmico do século XXI.
Todos esses processos estão se desenrolando no contexto das enormes desigual-
dades que cresceram conjuntamente com o declínio da ordem mundial hegemônica
dos Estados Unidos. A pandemia global da covid-19 está colocando em evidência essa
desigualdade social àqueles que ainda não a conseguiam ver (FISCHER e BUBOLA,
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2020). Meagan Day comparou adequadamente a relação entre a pandemia e a desi-
gualdade com a análise dos fluxos de água com corantes:
Um rio só parece um rio até que o corante seja adicionado, e o corante revela como
as características estruturais do leito do rio direcionam o curso da água em trajetórias
especícas. Uma pandemia é assim ... [ela] mostra como a estrutura do nosso sistema
[social] inui nas diferentes direções que as pessoas podem tomar, dependendo de sua
localização a montante. Isso já acontecia antes, mas agora é de uma cor brilhante para
todos verem. (DAY, 2020, grifo nosso).
Da mesma maneira, a pandemia global realçou as falhas preexistentes na ordem mun-
dial – a elevação da desigualdade, insegurança no emprego e na subsistência, a crise
dos refugiados e a ameaça iminente da mudança climática – tornando-as falhas agora
claras, “para todos verem. Com o fechamento das fronteiras e a paralisação da econo-
mia mundial, os danos colaterais da pandemia na forma da disparada do desemprego e
da evaporação dos (já) precários meios de subsistência foram avassaladores em escala
e alcance.
À medida que o caos sistêmico global se aprofunda, há, nas palavras de Arrighi,
uma crescente “demanda por ordem – a velha ordem, uma nova ordem, qualquer or-
dem!” (2010 [1994], p. 31). A resposta inicial vinda de cima tem sido a de acelerar
uma mudança global já em curso para formas cada vez mais coercivas de governo.
Ao entrarmos na terceira década do século XXI, a proliferação de poderes executivos
emergenciais, de ordens de confinamento impostas pela polícia e o deslocamento do-
méstico de forças militares para lidar com as consequências da pandemia – inclusive
as ondas antecipadas de protesto social – estiveram entre os sinais dessa tendência. No
entanto, tais desvios rumo à coerção e distantes do consentimento, como argumenta-
do acima, provavelmente vão aprofundar ainda mais o caos sistêmico global.
A oferta de hegemonia mundial no século XXI
Que tipo de hegemonia, se houver, pode emergir em nosso mundo atual de prolife-
rantes desafios globais e profundas mudanças sistêmicas?”
Os argumentos apresentados nos leva a um conjunto de respostas interconectadas.
Concordamos com a afirmação de que a resposta a essa pergunta requer “reimaginar o
poder na política global”. No entanto, argumentamos também que essa reimaginação
não é um fenômeno novo; ao contrário, cada hegemonia mundial sucessiva do capita-
lismo histórico trouxe consigo uma reimaginação análoga de poder na política global.
Sucessivos poderes hegemônicos responderam aos desafios globais promovendo “re-
correntes reestruturações fundamentais [do sistema mundial moderno]” (ARRIGHI,
2010 [1994], p. 31-2).
Temos argumentado que uma força motriz central por trás da sucessiva reestrutu-
ração do capitalismo global – e da reimaginação das hegemonias mundiais – tem sido
os desafios postos por grandes ondas de protestos sociais em escala mundial. A Revo-
lução Haitiana e as revoltas em massa dos povos escravizados nas Américas no final
do século XVIII forçaram o poder hegemônico em ascensão (o Reino Unido) a “rei-
maginar” o capitalismo global sem um de seus pilares fundamentais, a escravidão nas
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plantações. O recrudescimento dos movimentos trabalhistas, das revoluções socialis-
tas e dos movimentos de libertação nacional na primeira metade do século XX forçou
o poder hegemônico em ascensão (os Estados Unidos) a “reimaginar” o capitalismo
global sem os pilares fundamentais do colonialismo formal e restrição do exercício
democrático aos detentores de propriedades. A última onda global de protestos sociais
no início do século XXI também exigirá que qualquer poder hegemônico aspirante
reimagine a hegemonia de forma fundamental (SILVER; SLATER, 1999).
A questão que devemos levantar aqui, no entanto, é se já alcançamos os limites da
reimaginação” da hegemonia dentro de um sistema mundial capitalista. Uma carac-
terística comum de todas as hegemonias mundiais anteriores – holandesa, britânica,
americana – é que elas sucederam em encontrar soluções reformistas para os desafios
revolucionários lançados pelos movimentos de massa vindos das camadas inferiores.
Em outras palavras, cada hegemonia sucessiva conseguiu estabelecer as bases para
uma nova e importante expansão do sistema mundial capitalista. Elas foram, por um
tempo, capazes de resolver a contradição fundamental entre lucratividade e legitimi-
dade que tem caracterizado o capitalismo histórico.
Com a subsequente “aceleração da história social” – com os protestos hoje emana-
dos de uma gama ainda mais ampla e profunda de movimentos sociais – levanta-se a
questão de saber se uma outra hegemonia mundial pode ser imaginada, e mais ainda
de ser implementada com sucesso, dentro do contexto do capitalismo global. Dito de
outro modo, é possível encontrar uma solução reformista viável para os desafios pos-
tos pelos movimentos de massa de hoje?
Até recentemente, quaisquer tentativas reformistas nesse sentido não estavam
na agenda da maioria das elites governamentais e empresariais globais; ao contrário,
medidas coercitivas e o redobramento do projeto neoliberal estavam na ordem do
dia (SILVER, 2019). No entanto, as consequências da pandemia global (que, por sua
vez, veio na esteira de uma década de escalada de protestos sociais mundiais) podem
ter finalmente abalado a confiança dos que estão no poder. Assim, por exemplo, o
Conselho Editorial do Financial Times (2020) opinou a respeito: “Reformas radicais
[análogas às que foram feitas nas décadas após a Segunda Guerra Mundial] precisarão
ser colocadas sobre a mesa” para “oferecer um contrato social que beneficie a todos.
Essencialmente, eles propõem um retorno aos pactos sociais de meados do século XX
que sustentaram a hegemonia mundial liderada pelos Estados Unidos.
Independentemente de se tais pedidos por “reformas radicais” por parte das elites
globais desapareçam ou cresçam com o tempo, um retorno à solução de meados do
século XX não é sustentável. De fato, como argumentado acima, o projeto hegemônico
americano – que proclamou seu objetivo de universalização do estilo de vida america-
no – caiu numa crise combinada de lucratividade e legitimidade apenas duas décadas
após seu lançamento.
Como Gramsci observou em outro contexto:
Hegemonia (sob o capitalismo) pressupõe que “o grupo líder deva fazer sacrifícios de
algum tipo econômico-empresarial. Mas também não há dúvida de que tais sacrifícios
e comprometimentos não podem tocar o essencial; pois embora a hegemonia seja ético-
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Reoriente • vol.1, n.1 jan/jun 2021
-política, ela também deve ser econômica, deve necessariamente basear-se na função
decisiva exercida pelo grupo dirigente no núcleo decisório da atividade econômica.
(1971, p. 161, grifo nosso).
Dessa forma, sem um compromisso claro de priorizar a proteção dos seres humanos
e da natureza em detrimento da busca pela rentabilidade, assim que o contrato social
comece a ameaçar a lucratividade (como ocorreu nos anos 1960 e 1970), ele seria no-
vamente abandonado pelas camadas superiores (SILVER, 2019). Uma nova hegemo-
nia mundial exigiria, em lugar disso, uma reimaginação radical do poder mundial e da
política global. Os movimentos sociais desempenharão sem dúvida um papel-chave
nesse processo, seja diretamente, seja gerando pressões transformadoras sobre os es-
tados hegemônicos aspirantes. De qualquer maneira, uma séria “reimaginação” das
estratégias, estruturas organizacionais e ideologias” , incluindo o “internacionalismo,
dos movimentos, é necessária (KARATASLI, 2019) se quisermos nos erguer coletiva-
mente à altura da tarefa de fornecer soluções sistêmicas para os problemas sistêmicos
deixados para trás pela hegemonia mundial dos Estados Unidos.
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ARTIGOS
Reoriente • vol.1, n.1 jan/jun 2021
Abstract
is paper examines the relationship between world hegemonies and social protest.
Escalating global social protest, and the incapacity of ruling powers to address its root
causes, are among the signs that we have entered a crisis of US hegemony and a period
of deep systemic chaos. is systemic chaos is analogous to that which characterized
the transitions from Dutch to British hegemony, and from British to US hegemony.
Historically, the emergence of new hegemonies presupposed a rising power with the
capacity and vision to supply reformist solutions to revolutionary challenges. ese
system-level challenges have become wider and deeper from one transition to the next,
leading to a “speeding up of social history”. Due to the ecological limits of capitalism
and the changing balance of power between the global North and South, reformist
solutions that (temporarily) worked in the past are no longer sucient.
Keywords: hegemony, crisis, social protest, capitalism.
Resumén
Este artículo examina la relación entre las hegemonías globales y la protesta social. El
aumento de la protesta social global y la incapacidad de las potencias gobernantes para
abordar sus raíces son algunos de los signos de que hemos entrado en una crisis de
la hegemonía estadounidense y en un periodo de profundo caos sistémico. Este caos
sistémico es análogo al que caracterizó las transiciones de la hegemonía holandesa a la
británica y de la británica a la estadounidense. Históricamente, la aparición de nuevas
hegemonías presupone una potencia emergente con capacidad y visión para aportar
soluciones reformistas a los retos revolucionarios. Estos retos a nivel de sistema se
han hecho más amplios y profundos de una transición a otra, lo que ha llevado a una
aceleración de la historia social. Debido a los límites ecológicos del capitalismo y al
cambiante equilibrio de poder entre el Norte y el Sur globales, las soluciones reformis-
tas que funcionaron (temporalmente) en el pasado ya no son sucientes.
Palabras-llave: Hegemonía, crisis, protesta social, capitalismo.