Reoriente • vol.2, n.1 jan/jun 2022 • DOI: 10.54833/issn2764-104X.v2i1p81-96 81
As escolas de formação e a obra do antropólogo Darcy Ribeiro:
O Brasil e os Brasileiros
Yolanda Lima Lobo
1
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Resumo: Esse texto está construído em três partes. A primeira, introdutória, tem a nalidade de tornar
conhecidas as escolas formadoras do antropólogo Darcy Ribeiro e descrever os acontecimentos, mais
ou menos encadeados, que explicam sua busca incansável para compreender a formação e o sentido do
povo brasileiro. A segunda parte expõe o corpo do texto O Brasil e os brasileiros, sua gestão como povo,
uma reconstrução e compreensão em teoria produzida pelo antropólogo. Na última parte, apresento
interrogações feitas por Darcy Ribeiro e convido os brasileiros para ler O Povo Brasileiro, um discurso
sobre suas origens e os fundamentos das desigualdades e diferenças que perduram ainda nos dias atuais,
em um Estado que se estrutura com fundamento em uma ética sem dignidade, consubstanciada no
exercício da coação, discriminação e exclusão social. As interrogações de Darcy merecem estudos e
respostas. Um novo porvir é possível?
Palavras-Chave: Darcy Ribeiro. O Povo Brasileiro. Brasil. Antropólogo. A Formação do Brasil.
Abstract: is text is built in three parts. e rst, an introduction, aims to present the formation schools
of the anthropologist Darcy Ribeiro and describe the events, more or less linked, that explain his tireless
search to understand the formation and meaning of the Brazilian people. e second part expounds the
body of the text Brazil and the Brazilians, their management as a people, a theoretical reconstruction
and understanding developed by the anthropologist. In the last part, I raise questions posed by Darcy
Ribeiro and invite Brazilians to read e Brazilian People, a discourse on its origins and the foundations
of the inequalities and dierences that persist even today in a State that is structured on the basis of an
ethic without dignity, embodied in the exercise of coercion, discrimination and social exclusion. Darcy’s
questions are still relevant today and deserve studies and answers. Is a new future possible?
Keywords: Darcy Ribeiro. e Brazilian people. Brazil. Anthropologist. e formation of Brazil.
Resumen: Este texto está construido en tres partes. La primera, introductoria, tiene como objetivo dar
a conocer las escuelas educativas del antropólogo Darcy Ribeiro y describir los acontecimientos, más o
menos vinculados, que explican su búsqueda incansable por comprender la formación y el sentido del
pueblo brasileño. La segunda parte expone el cuerpo del texto O Brasil e os Brasileiros, su gestión como
pueblo, una reconstrucción y comprensión en la teoría producida por el antropólogo. En la última parte,
presento preguntas planteadas por Darcy Ribeiro e invito a los brasileños a leer O Povo Brasileiro, un
discurso sobre sus orígenes y los fundamentos de las desigualdades y diferencias que aún persisten hoy,
en un Estado que se estructura sobre la base de una ética. sin dignidad, encarnada en el ejercicio de la
coacción, la discriminación y la exclusión social. Las preguntas de Darcy merecen estudios y respuestas.
¿Es posible un nuevo futuro?
Palabras-clave: Darcy Ribeiro. El pueblo brasileño. Brasil. Antropólogo. Formación del Brasil.
* Doutora em Educação, membro da Coordenação Editorial da revista Terceiro Milênio (2013-2017)
e do Conselho Curador da Fundação Darcy Ribeiro (2010-20014). Professora de Programas de Pós-
Graduação FE/UFRJ e de Sociologia Política UENF (2007-2015).
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I-Introdução
A obra cientíca não é obra “acabada. O seu principal sentido é fazer surgir novas
indagações. Na esfera da ciência, o fazer do cientista e seus objetivos, um dia, pode-
rão ser revistos e tornar-se fontes de inspiração para novos estudos. Não é possível
concluir um trabalho sem esperar, ao mesmo tempo, que outros avancem ainda mais.
(Cf. Weber, 2011)
Ainda muito jovem Darcy inicia seus estudos na Escola Livre de Sociologia e Po-
lítica de São Paulo. Nessa escola recebeu, segundo ele, inuências marcantes na sua
formação, e as deixou registradas em suas memórias. (Ribeiro, 1996) Donald Pierson,
o norte-americano que lhe suscitou o interesse pelo Brasil e o introduziu nos estu-
dos da comunidade, escolheu a formulação do objeto de suas investigações: o Brasil,
para tentar compreender a sociedade brasileira tradicional. O primeiro trabalho que
o Professor Pierson lhe pediu foi para elaborar um levantamento bibliográco de
estudos literários (vários gêneros) e cientícos de autores brasileiros. Que retratos do
Brasil foram feitos por esses autores? Eis a pergunta condutora da pesquisa bibliográ-
ca. Militante do Partido Comunista, Darcy, em princípio, resistiu a fazer a leitura de
alguns autores, pois além da não recomendação do partido, ele julgava ser perda de
tempo ler, por exemplo, a obra de Oliveira Viana. Pierson retrucou fazendo-o com-
preender que qualquer tipo de censura impede o desenvolvimento da ciência e que a
leitura sociológica deve fazer indagações às obras dos autores indicados destacando
aquilo que elas não respondiam, ou o caráter ideológico da obra. O levantamento
bibliográco que fez como tarefa para Pierson, segundo registrou Darcy, proporcio-
nou-lhe adentrar o Brasil dando-lhe matéria concreta para “nos pensar como Povo.
(Ribeiro, 1996, p.125) Essa inuência foi marcante nos estudos de revisão crítica que
realizou sobre o pensamento social brasileiro, que resultaram em duas de suas obras:
Os Brasileiros e O Povo Brasileiro.
Mas, foi Herbert Baldus, professor dessa Escola, que o ensinou a amar os índios.
Segundo Darcy, ele recebeu desse professor como legado “seu ideal cientíco de es-
tudar a natureza humana pela observação dos modos de ser, de viver e de pensar dos
índios do Brasil. (Ribeiro, 1996, p. 126) Orientador de Darcy, Baldus escreveu-lhe
uma carta em que sublinhava a importância do jovem antropólogo para prosseguir
com sua obra: “você é minha grande esperança para prosseguir naquela obra a que
me dediquei por toda a minha vida: salvar os índios do Brasil e ensinar ao mundo o
que eles são.” (Idem).
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O Marechal Rondon a a escola indígena
Foi Baldus quem o apresentou ao marechal Rondon, Diretor do Conselho Nacional
de Proteção aos Índios, que o contratou como etnólogo, para trabalhar no Serviço
de Proteção aos Índios. Com Rondom, a quem Darcy chamava de mestre, inicia sua
prossão de etnólogo em expedições pelo Brasil para conhecer uma das matrizes
formadoras do povo brasileiro: a matriz indígena. Convicto de que não poderia ser
possível falar de alguma coisa sem conhecê-la, inicia uma viagem pelo Brasil indí-
gena, que perdurou por dez anos. Viveu o melhor tempo de sua vida, segundo ele,
em aldeias indígenas. O aprendizado com as tribos indígenas incluiu dois principais
temas: aprendeu a língua Tupi-Guarani (os cadernos desse aprendizado foram guar-
dados e hoje fazem parte de seus arquivos) e a respeitar a natureza humana e o meio
ambiente. Os registros de suas pesquisas – cadernos, relatórios cientícos, lmagens
e documentários – e, principalmente, a correspondência com outros cientistas-, dão
conta do rico, dedicado e extraordinário trabalho realizado pelo antropólogo. Indig-
nado com o avanço de invasores nas terras indígenas escreve ao marechal Rondon
relatando os efeitos adversos provocados por invasores nas terras e na vida das po-
pulações indígenas. E indaga: que medidas o Serviço de Proteção aos Índios deve
tomar de imediato para evitar as mortes dos índios? Esta é, sem dúvida, uma questão
que permanece aberta até hoje. No seu retorno ao Rio de Janeiro, assume a direção
da Seção de Estudos do Serviço de Proteção aos Índios (1952) e faz da luta pela po-
pulação indígena um objetivo de sua vida. Elabora o projeto para criação do Parque
Indígena do Xingu, e cria o Museu do Índio, um espaço vivo de culturas indígenas,
com objetos artesanais, danças, comidas, e representantes de tribos com a nalidade
de tornar conhecidas, para a população urbana, a importância e a riqueza da matriz
indígena na formação do povo brasileiro.
A escola Anísio Teixeira
Por curioso que possa parecer, o trabalho realizado por ele em comunidades indíge-
nas o introduziu na escola do mestre Anísio Teixeira. Em uma conferência realizada
no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), o Professor Anísio Teixeira,
então diretor desse Instituto, ouviu com interesse o relato de Darcy sobre a organi-
zação complexa e rica de sociedades indígenas. Alguns dias depois, esse Professor,
um estudioso da Escola de Chicago, convida Darcy para dirigir o Centro Brasileiro
de Pesquisas Educacionais do INEP (1957). A comunidade escolar passa a ser, então,
o novo objeto de pesquisas do antropólogo. Era o Brasil, como objeto de estudo: das
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comunidades indígenas às comunidades urbanas. Se Random foi quem o ensinou a
ser gente, Anísio foi seu “santo-sábio. Cada um deles com suas lutas “que passaram
a ser as minhas: a proteção aos índios e a educação do povo. (Ribeiro, 1997, p. 223).
Assim tem início o trabalho de Darcy com a educação, com seu mestre Anísio Tei-
xeira, a quem reputava ser a consciência mais lúcida do Brasil. Com ele não somente
aprendeu a reconhecer a relevância da escola pública, mas, sob sua orientação, tomou
conhecimento da situação precária da escola básica e média brasileira e do ensino
superior, lendo os relatórios de pesquisas realizadas pelo INEP (desde a criação desse
órgão em 1938). Ambos participam da elaboração do projeto de organização do Sis-
tema Educacional de Brasília (uma concepção de Anísio Teixeira) estruturado com
as Escolas Classes e Escolas Parques, e do projeto de criação da Universidade de Bra-
sília (1960), da qual foi seu primeiro Reitor (1961). Em agosto de 1962, ingressa na
vida política como Ministro da Educação e Cultura.
A escola política pinheirista (João Pinheiro)
Para exercer essa nova tarefa busca inspiração em uma escola mineira de Adminis-
tração Pública. Trata-se da “Escola Pinheirista, como cou conhecida a adminis-
tração do político João Pinheiro no Governo de Minas Gerais. Como outros ilustres
conterrâneos – Israel Pinheiro e Juscelino Kubitschek -, Darcy foi um admirador de
João Pinheiro, político mineiro, fundador do Partido Republicano em Minas Ge-
rais, que governou Minas Gerais em dois períodos: interinamente, de fevereiro a
agosto de 1890, e eleito Presidente do Estado de Minas Gerais em 1906. O gover-
nador João Pinheiro fez escola introduzindo a política de modernização na gestão
do Estado de Minas Gerais. Para ele, a ação política exige direção empírica e objeto
claro da atividade intelectual do político.
No exercício de cargos de direção públicos, Darcy Ribeiro faz uso do legado
da administração Pinheirista, isto é, da obra de modernização da administração
brasileira. Isso signicava unir a dupla funcionalidade da atividade intelectual: for-
mação empírica para a pesquisa aplicada e intervenção política. Assim tem início o
trabalho de Darcy com a educação, sempre com seu mestre Anísio Teixeira, quando
ocorreu o movimento político militar que destituiu o presidente João Goulart da
Presidência da República em 1964. Darcy segue para seu primeiro exílio, no Uru-
guai. Em sua bagagem, levou sua biblioteca e seus arquivos de pesquisas.
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II - O Brasil e os brasileiros, sua gestão como povo, uma análise de Darcy Ribeiro
O exílio é tempo de distanciamento para reetir e buscar respostas para seu estado de
perplexidade. Darcy necessitava, urgentemente, de interlocutores com quem pudes-
se estabelecer diálogos e encontrar respostas para suas inquietações. A quem poderia
recorrer, no exílio? Ao mestre, certamente. Anísio Teixeira encontrava-se nos Estados
Unidos. Por meio de um amigo comum, o cientista Charles Wangler, consegue iniciar
um diálogo com seu mestre por meio de correspondência endereçada a Wangler.
A parte preliminar das cartas manifesta sentimentos de desconsolo, de pesar pela
ausência, de reencontro. Ao mesmo tempo, apresenta um entusiasmo com a tarefa de
escrever um livro, e “o peito cheio de esperança de voltar logo e retomar o processo.
Mas, o núcleo das cartas expõe uma leitura sociológica da situação política e econô-
mica do mundo, notadamente das Américas, e uma busca por respostas racionais
sobre os acontecimentos que provocaram a derrubada do Presidente João Goulart. -
Valeu a pena?, indaga o discípulo ao mestre: “gostaria imensamente de lhe falar e de
ouvir sua apreciação sobre os acontecimentos, porque estou certo de que uma com-
preensão clara da experiência vivida é indispensável para irmos à frente. (Arquivo
Darcy Ribeiro, Série Correspondência Diversa. DR, 1964.06.01. v. 1-7, p.1. Fundação
Darcy Ribeiro).
Em três partes de sua carta Anísio responde ao discípulo:
1- Sobre as razões que levaram à derrubada do Governo Goulart, na análise so-
ciológica que faz da situação brasileira, Anísio considera ter sido o medo da
classe média de enfrentar a mudança social que teria provocado o desfecho
do movimento militar;
2- Considera que estava prevendo um período de consolidação entre os países
desenvolvidos e um período de contenção nos países subdesenvolvidos;
3- Entrevia o surgimento de “um novo vitorianismo, semelhante ao que suce-
deu no século XIX”, posto que, segundo ele, “a prosperidade crescente dos
países desenvolvidos fatalmente os conduzem a unirem-se num esforço co-
mum para compressão do mundo subdesenvolvido.
Assim sendo, conclui ele,
Por onde, porém, pode espreitar alguma esperança? Talvez, no desenvolvimento do conheci-
mento e da tecnologia. O mundo está cada vez mais sob a ação de engenheiros e mecânicos, ser-
vidos por conhecimentos cada vez mais espantosos. Até hoje tem sido eles, como força reexa e
não direta. ..... Será que uma espécie de manangerial revolution irá tomar conta do mundo e (...)
acabem os engenheiros – entendido esse termo no mais lato sentido – substituindo os políticos
ou pondo os políticos ao seu serviço? Seria a lógica da ciência e de sua aplicação a substituir
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a lógica das ideologias. Dizem ser isto o que está sucedendo na Rússia e já sucede aqui – em
relação, pelo menos, ao problema da produção. Seria uma forma meio marxista de compreen-
der a produção. Desenvolvida a sua técnica, essa técnica conduziria o mundo. Isto lembraria o
que sempre disse que o Brasil chegaria à riquezas no dia em que essa riqueza fosse algo de tão
automático, que lhe pudesse ser imposto sem exigir esforço individual. (Arquivo Darcy Ribeiro,
Série Correspondência Geral. DR, 1964.06.01. v. 1-7, p.1. Fundação Darcy Ribeiro)
A carta do mestre suscitou em Darcy a necessidade de reler Marx, o Tomo I de O
Capital, para elaborar os conceitos com os quais trabalharia Os Estudos Antropológi-
cos da Civilização, obra em cinco volumes. Reexamina as teorias explicativas vigentes
sobre desenvolvimento econômico e socio-cultural do “Velho Mundo” e concluiu
que eram um tanto reducionistas. Faz uma série de indagações e não encontra res-
postas para suas questões em nenhuma delas. Então, cria uma nova abordagem para
compreender anidades e diferenças ocorridas no processo cultural no Velho e no
Novo Mundo, em seus Estudos de Antropologia da Civilização, em 1968, com inspi-
ração marxista. Usa o conceito marxista de tecnologia como fundamento para gerar
uma nova tipologia de seu esquema evolutivo. Em 1968, publica o primeiro livro
dessa série de Estudos, O Processo Civilizatório, pela editora Civilização Brasileira.
Em continuação, publica As Américas e a Civilização, uma abordagem antropoló-
gica sobre os fundamentos da formação de etnias nacionais americanas, agrupando-os
em três categorias: Povos-Testemunho (remanescentes das civilizações pré-colombia-
nas: andinos e mexicanos), Povos-Novos (originados do processo de miscigenação de
europeus, indígenas e africanos, como o Brasil), e Povos Transplantados, matriz cultu-
ral e populacional importada de modo direto (Estados Unidos e Canadá).
Seguem-se as publicações de três livros: O dilema da América Latina, uma espécie
de obra em denúncia que focaliza as estratégias de poder dos Estados Unidos para
explorar e controlar graus de progressos de países Latino-Americanos. Em continui-
dade a esse livro, Darcy se dedica a estudar a formação da sociedade brasileira, em
Os Brasileiros. O antropólogo cria uma teoria da cultura cujo conceito básico é o de
transguração étnica. Esse conceito serve de base para seu novo estudo: Os Índios e a
Civilização, uma análise do processo de integração dos índios na sociedade brasileira.
O livro síntese dessa série, O Povo Brasileiro, Darcy começou a escrevê-lo ainda
no exílio, em 1973. Estava no Peru quando concluiu a primeira versão, que chegou a
ser editada, mas, por considerá-la um estudo inacabado, não autorizou a publicação.
Já no Brasil, em seu retorno do exílio, reviu suas anotações e recomeçou a escrever
o livro. Mas os compromissos políticos - foi eleito vice-governador do Estado do Rio
de Janeiro, (1983) e Senador da República (1990)-, e a retomada dos projetos com
educação, entre outros, impediram-no de concluir o livro. Em 1995, já bastante doen-
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te, foge do hospital no Rio de Janeiro para sua casa em Maricá (RJ) para concluí-lo.
No prefácio escreveu: “este livro foi o maior desao a que me propus. Ainda é. Há
mais de 30 anos o escrevo e reescrevo-o, incansável”. (Ribeiro, 1996, p 11.
Para compreender a formação do povo brasileiro Darcy Ribeiro opera com
duas categorias de análise explicativas, mutuamente excludentes: Novo, Velho. Es-
sas conduzem a uma terceira como síntese da identidade dessa formação: o povo
brasileiro é um renovo mutante. Apresenta quatro argumentos para fundamentar e
elucidar sua análise.
Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes
formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada
pela redenição de traços culturais delas oriundos. Novo porque se vê a si mesmo como uma
gente nova, novo gênero diferente de quantos existam. Novo porque é um novo modelo de
estruturação societária, com uma forma singular de organização socioeconômica, fundada
num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial. Novo
pela inacreditável alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacricado que
encoraja e comove a todos os brasileiros. (Ribeiro, 1995, p. 17)
Contraditoriamente, é um povo Velho, segundo o autor, “porque se viabiliza como
um proletariado externo (...) como um implante ultramarino da expansão europeia.
Assim sendo, “não existe para si mesmo, mas para gerar lucros exportáveis pelo exer-
cício da função de provedor colonial de bens para o mercado mundial”. Sob essa
perspectiva o Brasil emerge “como um renovo mutante, remarcado de características
próprias, mas atado geneticamente à matriz portuguesa. (Id. p.18)
A análise do antropólogo aponta três matrizes étnicas formadoras do Povo Brasi-
leiro: a matriz indígena, a matriz lusitana e a matriz africana.
A matriz indígena
O antropólogo assinala que tribos do tronco tupi ocupavam quase todo o litoral
atlântico do Brasil, formando uma enorme área linguística tupi-guarani. O idioma
tupi foi a língua materna de uso corrente no Brasil até meados do século XVIII. Ex-
pandiu-se mais que o português como a língua da civilização. Os povos indígenas fa-
lavam línguas do mesmo tronco, “dialetos de uma mesma língua, cada um dos quais,
ao crescer, se bipartiam, fazendo dois povos que começavam a se diferenciar e logo se
desconheciam e se hostilizavam. (Ribeiro, 1995, p.26).
Darcy registra diversidades tribais e organizações sociais altamente complexas e
modelos de educação inovadores em algumas dessas tribos. Sobre a evolução cultu-
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ral, o antropólogo registra os progressos na agricultura, com novas técnicas de plan-
tio e preservação de alimentos. Por caminho próprio, arma Darcy, “domesticaram
diversas plantas, retirando-as da condição selvagem para a de mantimento de seus
roçados” (a mandioca selvagem, por exemplo, venenosa, devido ao ácido cianídrico,
passou por seleção de variedades até que chegasse ao menor valor de toxidade). Cul-
tivavam milho, batata-doce, cará, feijão, amendoim, tabaco, abóbora, urucu, algodão,
carauá. Confeccionavam cuias e cabaças, elaboravam condimentos com pimenta, er-
va-mate, guaraná. Os grandes roçados foram construídos na mata e para isso derru-
bavam árvores, segundo Darcy, usando machado, pedras e fogo para limpar o terre-
no. (Cf. Ribeiro, 1995, p.28). Os avanços alcançados na agricultura asseguravam-lhes
profusão alimentar durante o ano, contrabalançando meses de abundância com os
de escassez, com a caça e a pesca. Citando Betty Meggers (1971) Darcy observa que
permaneciam, porém, dependentes do acaso para obter outros alimentos da caça
e da pesca, também sujeitos a uma estacionalidade marcada por meses de enorme
abundância e meses de escassez.” (Ribeiro, 1996, p. 29).
Nos lugares onde havia profusão da pesca e da caça, formaram-se “sítios privi-
legiados, tipos de aldeias agrícolas indiferenciadas que chegaram a alcançar cerca
de três mil pessoas, segundo Ribeiro (1995, p. 29). A guerra entre tribos do mesmo
tronco Tupi e de outras tribos, por disputas pelos sítios, causavam animosidade que
culminavam em rituais antropofágicos.
Apesar da unidade linguística e cultural que permite classicá-los numa só macroetnia (...)
os índios do tronco Tupi não puderam jamais unicar-se numa organização política que lhes
permitisse atuar conjuntamente. Sua própria condição evolutiva de povos de nível tribal fazia
com que cada unidade étnica, ao crescer, se dividisse em novas entidades autônomas que,
afastando-se umas das outras, iam se tornando reciprocamente mais diferenciadas e hostis.
(Ribeiro, 1995, p. 30)
Os Tupis tentaram estabelecer confederações regionais que, entretanto, não pros-
peraram. As hostilidades entre tribos foram exploradas por portugueses e franceses
para guarnecer suas tropas com indígenas e guerrear em benefício de seus interesses:
Tamoios, com os franceses na Guanabara; Tupinambá no Rio de Janeiro; Carijós,
Goitacá, Aymoré, em São Paulo. Sobre essas guerras o antropólogo escreveu:
Nessa guerra inverossímil da Reforma versus Contrarreforma, dos calvinistas contra os je-
suítas, em que tanto os franceses como os portugueses com exércitos indígenas de milhares
de guerreiros (...) jogava-se o destino da colonização. E eles nem sabiam por que lutavam,
simplesmente eram atiçados pelos europeus, explorando sua agressividade recíproca. (...) os
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índios jamais estabeleceram uma paz estável com o invasor, exigindo dele um esforço conti-
nuado, ao longo de décadas, para dominar cada região. (Ribeiro. 1995, p. 30)
A análise do antropólogo acentua dois fatores importantes: a ausência de uma
organização política estruturada e o papel da religião aliado ao expansionismo mer-
cantilista europeu, como traços característicos da formação do povo brasileiro.
A matriz lusitana
A estrutura administrativa mandatária do poderio português sobre o Brasil com-
preendia um conglomerado de instituições, segundo Darcy “interativas, “equivalen-
tes” e “competitivas” entre si. (Cf. Ribeiro 1995, p.33)
Destacava-se o Conselho Ultramarino, em Lisboa, com as funções de planejar,
ordenar, aparelhar, incrementar os mecanismos do empreendimento mercantil com
novas tecnologias: a “nau oceânica, com suas novas velas de mar alto, leme xo, bús-
sola, astrolábio, e os canhões de guerra.” (Ribeiro, 1995, p. 35). Essa produção de no-
vas tecnologias, proveniente de uma junção dos saberes de experiências acumuladas
e da ciência, cumpria o objetivo para conquistar o mundo, sob a regência da Europa,
e das normas básicas estabelecidas pelo Vaticano, “era a humanidade mesma que en-
trava noutra instância de sua existência, sublinha Darcy. E acrescenta que, para isso,
se extinguiriam milhares de povos, com suas línguas e culturas próprias singulares,
para dar nascimento às macroetnias maiores e mais abrangentes. E completa: “O
motor dessa expansão era o processo civilizatório que deu surgimento a dois Estados
nacionais: Portugal e Espanha.” (Op. cit, p. 35).
O Vaticano se constituiu como a entidade que se apropria do privilégio exclusivo
do uso legítimo da força moral e física sobre as populações das colônias portuguesas
e espanholas. Se a força não produz nenhum direito sobre os homens, as bulas papais
o fazem para controlar o Novo Mundo. Os estudos de Darcy citam duas bulas: a Ro-
manos Pontifex, 08-02-1454, e a Inter Coetera, de 04-05-1493.
A Romanos Pontixconcede ao rei Afonso a plena e livre faculdade, entre outras,
de invadir, conquistar, subjugar, a quaisquer sarracenos pagãos, inimigos de Cristo,
suas terras e bens, a todos reduzir a servidão e tudo praticar em utilidade própria e
dos seus descentes.” (Ribeiro, 1995, p. 36). Já as cláusulas em direito perpetuum - as-
seguradas pela “autoridade do Deus onipotente a nós concedida em S. Pedro, assim
como do vicariato de Jesus Cristo, a qual exercemos na terra, para sempre” - doavam,
concediam e entregavam aos herdeiros e sucessores dos monarcas “em todos os seus
domínios cidades, fortalezas, lugares, vilas, direitos, jurisdições, e todas as pertenças.
Outorgam “a vós e aos sobreditos herdeiros e sucessores, direito com pleno, livre e
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irrestrito poder, “autoridade e jurisdição sobre as terras rmes e ilhas sobreditas, e
os moradores e habitantes delas, e reduzi-los à Fé Católica...” (Ribeiro, 1995, p. 37).
Para Darcy, desde então, essa é a lei que vigora no Brasil. Ela, arma o antropólo-
go, é o fundamento sobre o que se pode excluir da regra e constituir rmes alicerces
do direito do latifundiário à terra que lhe foi uma vez outorgada, bem como o co-
mando de todo o povo como uma mera força de trabalho, sem destino próprio, cuja
função era servir ao senhorio daquelas bulas. (Ibidem).
A matriz africana
A empresa escravista, fundada na apropriação de seres humanos através da violência mais
crua e da coerção permanente, exercida através dos castigos mais atrozes, atua como uma
mó desumanizadora e deculturadora de ecácia incomparável. Submetido a essa compressão,
qualquer povo é desapropriado de si, deixando de ser ele próprio, primeiro para ser ninguém
ao ver-se reduzido a uma condição de bem semovente, como um animal de carga; depois,
para ser outro, quando transgurado etnicamente na linha consentida pelo senhor, que é
mais compatível com a preservação dos seus interesses. O espantoso é que os índios como os
pretos, postos nesse engenho deculturativo, consigam permanecer humanos. (Ribeiro, 1995,
p.106)
Os negros do Brasil foram trazidos principalmente da costa ocidental africana.
Citando as obras de Artur Ramos e de Nina Rodrigues, Darcy destaca três grandes
tipos culturais na procedência africana no Brasil: o primeiro, das culturas sudanesas
- Yoruba, Dahomey, Fanti-Ashanti, além dos representantes da Gâmbia, Serra Leoa,
Costa Malagueta, e Costa do Marm. O segundo grupo trouxe para o Brasil culturas
islamisadas – Peuhl, Mandinga, Haussa - do norte da Nigéria. O terceiro grupo cultu-
ral africano compreendia tribos Bantu do Congo-angolês (Angola) e da Contra Costa
(Moçambique). (Cf. Ribeiro, 1995, p. 102)
Os estudos realizados por Darcy elencam as circunstâncias adversas que impe-
diam a unicação racial entre os africanos na Colônia brasileira. As tribos africanas
falavam dialetos diversos que impediam a formação de uma unidade linguístico-cul-
tural que proporcionasse uma unicação aos negros submetidos à escravidão. A re-
ligião, expressão da consciência negra, em lugar de unicá-los, desunia-os. A políti-
ca escravagista desagregadora: os portugueses evitavam a concentração de escravos
oriundos de uma mesma etnia nas mesmas propriedades e até nos mesmos navios
negreiros, para impedir a formação de núcleos solidários que retivessem um patri-
mônio cultural africano. Na colônia brasileira, os negros encontraram já constituídos
os núcleos formados pela protocélula luso-tupi.
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Os Engenhos e as Minas são espaços físicos, associativos e ideológicos, nos quais
o negro escravo reconstitui suas virtualidades de ser cultural. Pelo convívio de afri-
canos de diversas procedências com a gente da terra, dá-se o início de um corpo de
novas compreensões mais amplo e mais satisfatório.
... dispersos na terra nova, ao lado de outros escravos, seus iguais na cor e na condição ser-
vil, mas diferentes na língua, na identicação tribal e frequentemente hostis pelos referidos
conitos de origem, os negros foram compelidos a incorporar-se passivamente ao universo
cultural da nova sociedade. (Ribeiro, 1995, p.103)
No entanto, salienta Darcy, apesar das adversidades, conseguem ir à frente de ou-
tros ao aprender o português “com que os capatazes lhes gritavam e que mais tarde,
utilizariam para comunicar-se entre si,” (Ribeiro, 1995, p. 103). Assim sendo, con-
seguem “aportuguesar o Brasil, além de inuenciar de múltiplas maneiras as áreas
culturais onde mais se concentraram que foram o nordeste açucareiro e as zonas de
mineração do centro do país.” (ibidem)
Contudo, embora no universo cultural simplicado dos engenhos e das minas
o negro tivesse acesso a um corpo de elementos adaptativos (relativo à tecnologia,
com que se produzem e reproduzem as condições materiais de existência), associa-
tivos (concernentes aos modos de organização da vida social) e ideológicos (relativo
às formas de comunicação, ao saber, às crenças, à criação e à autoimagem étnica),
oriundos da protocélula étnica tupi, sua condição de escravo o impedia de se expres-
sar nas formas de adaptação e nos modos associativos prescritos na estrutura da so-
ciedade estraticada da colônia. No entanto, o negro sobreviveria principalmente no
plano ideológico. Foi por meio de seus valores espirituais, das crenças religiosas e das
práticas mágicas, e de suas reminiscências rítmicas e musicais e de saberes e gostos
culinários, guardados no mais recôndito de si, que a herança africana se fez presente
na cultura brasileira.
Essa parca herança africana - meio cultural e meio racial – associada às crenças indígenas
emprestaria, entretanto, à cultura brasileira, no plano ideológico uma singular sionomia
cultural. Nessa esfera é que se destaca, por exemplo, um catolicismo popular muito mais dis-
crepante que quaisquer heresias cristãs tão perseguidas em Portugal. (Ribeiro, 1995, p.105)
A cor, a língua, as feições africanas, as cadências e ritmos, o gosto e os sentimen-
tos, são marcas principais da inuência negra no Brasil.
Examinando o conjunto de características próprias à vida social resultante do
projeto colonial, Darcy esclarece como se construiu a estrutura de uma sociedade
92 ARTIGOS
bipartida - excludente, que não considerou o modo de vida da célula vigente indí-
gena - estraticada, escravista, dividida entre senhores e escravos, rural e urbano,
e que “atuava como um rebento ultramarino da civilização europeia em sua versão
portuguesa.” (idem)
Estamos diante do resultado de um processo civilizatório que, interrompendo a linha evo-
lutiva prévia das populações indígenas brasileiras, depois de subjugá-las, recruta seus rema-
nescentes como mão de obra servil de uma nova sociedade que já nascia integrada numa
etapa mais elevada da evolução sociocultural. No caso, esse passo se dá por incorporação
ou atualização histórica - que supõe a perda de autonomia étnica dos núcleos engajados, sua
dominação e transguração, estabelecendo as bases sobre as quais se edicaria, daí em diante,
a sociedade brasileira. (Ribeiro, 1995, p. 66)
Segundo Darcy, essas bases tornam-se visíveis com a implantação dos primeiros
engenhos açucareiros, que cumpriam a missão de vincular os antigos núcleos extra-
tivistas ao mercado mundial, viabilizando assim sua existência na condição socioe-
conômica de um “proletariado externo, numa sociedade estruturada como colônia
mercantil-escravista da metrópole portuguesa.
Fazendo uso de uma abordagem marxista, a análise do antropólogo explicita, em
três planos, a forma como as bases estruturais alicerçam o estabelecimento dos nú-
cleos coloniais brasileiros. Para ele, no plano adaptativo, destacam-se: - a incorpora-
ção da tecnologia europeia aplicada à produção, à construção e à guerra, com uso de
instrumentos de metal e de dispositivos mecânicos; - a navegação transoceânica que
integrava os novos mundos em uma economia mundial, como produtores de mer-
cadorias de exportação e como importadores de negros escravos e bens de consumo;
- a instalação do engenho de cana, assentada na aplicação de diversos procedimentos
agrícolas, químicos e mecânicos para produção de açúcar. Novas tecnologias para
exploração da mineração de ouro e diamantes; a criação de rebanho de gado, para
uso de transporte e tração e para abastecimento de carne e couro; a criação de gali-
nhas, porcos e outros animais domésticos que associada à lavoura indígena, proveria
a subsistência dos núcleos coloniais; o plantio de novas espécies de plantas cultivá-
veis, alimentícias e industriais, que passariam assumir importância decisiva na vida
econômica de diversas variantes da sociedade nacional. A tecnologia portuguesa de
produção de tijolos, telhas, sapatos, sabão, cachaça, rodas de carros, pontes e barcos.
(Cf. RIBEIRO, 1995, p. 68)
Para implantar uma nova civilização foi preciso uma ação rigorosa para substi-
tuir, no plano Associativo: - a escravatura indígena pelo tráco africano; - o regime
de “solidariedade elementar fundada no parentesco, característico do mundo tribal
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igualitário, por formas de estruturação social que resultaram na estraticação “em
classes antagônicas opostas, mas interdependentes pela complementaridade de seus
papeis. (RIBEIRO 1995, p. 67) E, mais importante, formar uma estrutura socioe-
conômica única que incorporasse todos os núcleos locais. No topo dessa estrutura,
estaria a classe dominante do patronato de empresas “e uma elite patricial dirigente,
cujas funções principais eram tornar viável e lucrativa, do ponto de vista econômico,
a empresa colonial e defendê-la da insurgência de escravos, dos ataques indígenas
e das invasões externas.” (idem, p. 69). Era necessário, também, dispor de “capitais
nanceiros para custear a implantação das empresas, provê-las de escravos e outros
recursos produtivos e capacitados para arrecadar as rendas que produzisse.” (ibidem)
No plano ideológico, o estudo do antropólogo aponta os elementos que moldam
a cultura das comunidades neobrasileiras, a saber: - a língua portuguesa, que se di-
funde e se converte no veículo único de comunicação das comunidades brasileiras
entre si e delas coma metrópole; - um estrato social de letrados ínmo que, “através
do domínio do saber erudito e técnico europeu de então, orienta as atividades mais
complexas e opera como centros difusos de conhecimentos, crenças e valores”; - ar-
tistas que exercem suas atividades obedientes aos gêneros e estilos europeus, princi-
palmente o barroco. E, principalmente,
Uma Igreja inicial, associada a um Estado salvacionista, que depois de intermediar a sub-
missão de grupos indígenas através da catequese impõe um catolicismo de corte messiânica
e exerce um rigoroso controle da vida intelectual da colônia, para impedir a difusão de qual-
quer outra ideologia e até mesmo de saber cientíco. (Ribeiro, 1995, p. 69)
Em forma conclusiva, Darcy arma que:
Aquelas inovações tecnológicas, somadas às referidas formas mais avançadas de ordenação
social e a esses instrumentos ideológicos de controle e expressão proporcionaram as bases
sobre as quais se edicou a sociedade e a cultura brasileira como uma implantação colonial
europeia.” (RIBEIRO, 1995, p. 69)
Sob o título O Brasil e os brasileiros: um povo novo o antropólogo orienta essa par-
te de seu estudo fazendo uma série de interrogações:
Quando é que, no Brasil, se pode falar de uma etnia nova, operativa? Quando é que surgem
brasileiros, conscientes de si? Se não orgulhosos de seu próprio ser, ao menos resignados com
ele?”(RIBEIRO, 1995, p.119)
Segundo ele,
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É muito provável que o brasileiro comece a surgir e a reconhecer-se a si próprio mais pela
percepção de estranheza que provocava no lusitano do que por sua identicação como
membro das comunidades socioculturais novas, porventura também porque desejoso de
remarcar sua diferença e superioridade frente aos indígenas. O primeiro brasileiro consciente
de si foi, talvez, o mameluco, esse brasilíndio mestiço na carne e no espírito, que não podendo
identicar-se com os que foram seus ancestrais americanos - que ele desprezava -, nem com
os europeus – que o desprezavam -, e sendo objeto de mofa dos reinóis e dos luso-nativos ,
via-se condenado à pretensão de ser o que não era nem existia:o brasileiro. Através dessas
oposições e de um persistente esforço de elaboração de sua própria imagem e consciência
como correspondente a uma entidade étnico-cultural nova, é que surge, pouco a pouco, e
ganha corpo a brasilidade. (RIBEIRO, 1995 p. 115)
Apoiando-se nas pesquisas de Curt Nimuendaju, o antropólogo arma ser o Bra-
sil a realização “derradeira e penosa” dos tupis que chegaram a costa atlântica por
volta dos séculos XIV ou XV, bem antes dos portugueses. As tribos tupis, segundo
Darcy, “desfeitas e transguradas, zeram-nos o que somos: uns latinos tardios do
além mar, amorenados na fusão com brancos e com pretos, deculturados das tradi-
ções de suas matrizes ancestrais, mas carregando sobrevivências delas que ajudam a
nos contrastar tanto com os lusitanos. (RIBEIRO, 1995, p.117).
O processo para assumir sua própria identidade foi longo e tortuoso para os bra-
sileiros. O surgimento de uma etnia brasileira, inclusiva, que envolvesse “a gente va-
riada que aqui se juntou, passa pela anulação das identidades étnicas de índios, afri-
canos, europeus, como pela indiferenciação entre as várias formas de mestiçagem,
como mulatos (negros com brancos) cablocos (brancos com índios) ou curibocas
(negros com índios)”. (ibidem)
Aos neobrasileiros, feitos pela transguração de suas matrizes, coube a tarefa de
fazer o Brasil.
III - Problemas em forma de indagações: quais são as possibilidades políticas
para refundar a Res pública brasileira? Um novo porvir é possível?
A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador
impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce,
ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os po-
bres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças,
amanhã, para conter os possessos e criar uma sociedade solidária. (RIBEIRO, 1995, p. 108)
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O Povo Brasileiro é um estudo antropológico, certamente. Mas é, também e sobre-
tudo, um discurso sobre as origens e os fundamentos das desigualdades e diferenças
que perduram ainda nos dias atuais, em um Estado que se estrutura com fundamento
em uma ética sem dignidade, consubstanciada no exercício da coação, discriminação
e exclusão social.
Darcy assinala que o Estado brasileiro “não tem nenhum programa de reestru-
turação econômica que permita garantir pleno emprego a essas massas dentro de
prazos previsíveis.” (Ribeiro, 1995, p.186) E, para reexão dos leitores, registra uma
série de questões:
Que fazer? Prosseguir o genocídio dos pioneiros, que nas terras de ninguém da Amazônia
procuram seu pé-de-chão? Continuar castrando as mulheres de Goiás, por exemplo, para
guardar não se sabe para quem? Insistir num liberalismo aloucado, que regeu a economia
desde 64, enriquecendo os ricos e empobrecendo os pobres? Continuar imbuídos da ilusão de
que o melhor para o Brasil é o espontaneísmo, regido pelo lucrismo dos banqueiros, que aca-
bará por resolver nossos problemas? Até quando este país continuará sem seu projeto próprio
de desenvolvimento autônomo e auto sustentável? (RIBEIRO, 1995, p.187)
Faz uma advertência: “Sendo o que somos, não se pode adiar mais a formulação
de um projeto pprio que nos insira no contexto mundial, guardando nossa autono-
mia econômica para um crescimento autônomo. (ibidem)
O que nos falta hoje? Indaga e responde, falta-nos:
maior indignação generalizada, em face de tanto desemprego, tanta fome e tanta violência
desnecessárias, porque perfeitamente sanáveis com alterações estratégicas na ordem econô-
mica. Falta mais, ainda, competência política para usar o poder na realização de nossas po-
tencialidades. (RIBEIRO, 1995, p. 187)
Hoje, uma das questões contemporâneas mais importantes precisa ser recupera-
da: a ideia de Humanidade, tal como a compreende Darcy. Compaixão pelo destino
da humanidade. Para ele, a desigualdade entre as pessoas é fabricada; a pobreza
não é só a destituição de bens materiais. É, sobretudo, a repressão do acesso às van-
tagens sociais. Não é somente a fome devastadora. É também: segregação, degra-
dação, subserviência, proporcionada por um Estado avassalador e prepotente. A
pobreza brasileira é, também, e no mesmo grau de importância da pobreza material,
a pobreza política.
Na política, falta-nos, principalmente, maior publicização da coisa pública, dis-
tinguindo um domínio público - no sentido de interesse comum - opondo-se aos
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assuntos privados; práticas abertas, opondo-se a processos secretos. Falta-nos, acres-
centaria, re-fundar a Res Publica.
Para o antropólogo, as classes populares urbanas não devem ser consideradas
como obstáculos sociais e políticos e, por essa razão, defendeu a educação como ins-
trumento de superação de uma privação que não é do indivíduo mas da cultura es-
colar que lhe faz falta.
O que fazer? É necessário que o Estado brasileiro substitua o papel voraz de criar
impostos pelo papel regulador da distribuição de bens. O Brasil de hoje está a neces-
sitar que se faça o exame cuidadoso de seus sistemas político, econômico e educa-
cional. Por m, deixa às novas gerações de brasileiros o conselho para tomar o leme
dessa iniciativa: “A tarefa das novas gerações de brasileiros é tomar este país em suas
mãos para fazer dele o que há de ser, uma das nações mais progressistas, justas e
prósperas da Terra. (RIBEIRO, 1995, p. 187)
IV - Referências
RIBEIRO, Darcy. O Programa de Pesquisas em Cidades-Laboratório. Educação e Ciências Sociais, Rio
de Janeiro, vol. III, n. 3, p. 13-30, 1958.
______. Correspondência Darcy Ribeiro-Anísio Teixeira. Memorial Darcy Ribeiro, DR, Série Institui-
ções diversas. Brasília, v. 1-7, p. 1, 1964.
______, Darcy. O Processo Civilizatório. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968.
______, Darcy. As Américas a Civilização. Processo de Formação e Causas do Desenvolvimento Cultu-
ral Desigual dos Povos Americanos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970.
______, Darcy. Os Índios e a Civilização: A integração das Populações Indígenas no Brasil Moderno.
Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1970.
______, Darcy. Os Brasileiros. Teoria do Brasil. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1972.
______, Darcy. O Dilema da América Latina – Estruturas de Poder e Forças Insurgentes. Petrópolis,
Editora Vozes, 1978.
______, Darcy. O Povo Brasileiro. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
______, Darcy. Diário Índios, Os Urubus Kaapor. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
______, Darcy. Conssões. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo Editora Pensamento Cultrix Ltda., 2011.
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A Universidade Necessária: o compromisso civilizatório de Darcy Ribeiro
Lia Faria
1
*, Carla Villanova
2
** e Silvio Souza
3
***
Resumo: Este artigo analisa o pensamento-ação de Darcy Ribeiro e como seus “fazimentos
inuenciaram a educação superior brasileira. Com uma intensa participação política, nos anos 1960,
criou a Universidade de Brasília (UnB) e, posteriormente, a Universidade Estadual do Norte Fluminense
(UENF), já nos anos 1990. O presente estudo arma a importância do pensamento humanista e das
ações do intelectual Darcy Ribeiro para a universidade no Brasil e na America Latina, inspirado
na diversicação dos povos e no reconhecimento do que chamou de “processo civilizatório” para a
construção da Universidade Necessária.
Palavras-chave: Darcy Ribeiro. Universidade Necessária. Processo Civilizatório.
Abstract: is work analyzes the path made by Darcy Ribeiro and how his thoughts and acts inuenced
Brazilian education, mostly the university. He had an intense political participation in the 1960s, with the
creation of the Universidade de Brasília (UnB), and of the Universidade Estadual do Norte Fluminense
(UENF) in the 1990s. is work talks about the importance of Darcy Ribeiros humanist thoughts and
actions to the university in Brazil and Latin America, as he understood the importance of the pluralities
of peoples and of what he called the “civilizing process” to the creation of the Necessary University.
Keywords: Darcy Ribeiro. Necessary University. Civilizing Process.
Resumen: Este estudio investiga el sentido de la universidad en el pensamiento de Darcy Ribeiro.
Como su pensamiento contribuió para el proceso de construcción y de autonomía de la Universidade
de Brasília (UnB) en los años 1960 y de la Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) en los
anõs 1990. El presente trabajo resalta la importancia del pensamiento humanista del intelectual Darcy
Ribeiro. Se abordan sus hechos acerca de la Universidad Brasileña y la diversicación de los pueblos
latinoamericanos a lo qué Darcy Ribeiro llamó “proceso civilizatorio” y la idea de una Universidad
Necesaria.
Palabras-clave: Darcy Ribeiro. Universidad Necesaria. Proceso Civilizatorio.
* Professora titular aposentada da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/
UERJ. professora colaboradora no Programa de Pós-graduação da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (PROPEd). Coordena o Laboratório Educação e República (LER). Pós-doutora em Educação
pela Universidade de Lisboa (2012) e em Ciência Política pelo IUPERJ (2008), doutora em Educação
(UFRJ/1996).
** Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH/UERJ) e Orientadora Educacional da
Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias
*** Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH/UERJ) Professor de Filosoa e Sociologia
da Secretaria Estadual de Educação (RJ) e Pesquisador no Grupo de Pesquisa Ideário Republicano e
Educação Fluminense (UERJ/Proped-CNPQ).
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A questão agora para o Brasil é que nós nos tornemos capazes de um projeto deixando de
sermos um povo para os outros, para sermos um povo para nós mesmos. Isto importa em
renovações muito profundas em toda a estrutura. Isto aplicado na universidade importa em
universidade de um novo tipo. Uma universidade com alto sentido de responsabilidade social.
(RIBEIRO, 2007, p. 45).
A epígrafe acima é bastante signicativa no que tange ao pensamento-ação
de Darcy Ribeiro sobre a realidade brasileira, destacadamente no que se refere à
edicação do país sobre os pilares da “dependência consentida” pelas elites dirigentes
– uma relação que ocasiona o atraso para muitos e a “modernização” para poucos.
Como alternativa a esse processo contínuo de subordinação que vem se
perpetuando ao longo de séculos, Darcy arma a necessidade de mudanças profundas
na estrutura social brasileira e indica como um dos caminhos possíveis para uma
transformação em bases autônomas, a renovação da universidade como um lócus
vital na produção de conhecimentos/saberes e, também, como um polo irradiador
de cultura nacional, enm uma Universidade Necessária1.
Para que possamos reetir/compreender o pensamento-ação de Darcy Ribeiro
para a universidade brasileira, orientamos nossa argumentação tomando como base
uma revisão da literatura, que consiste na análise das obras do próprio Darcy Ribeiro
e da contribuição teórica de outros pensadores. Para essa empreitada, entrecruzamos
os conhecimentos/saberes das áreas de Filosoa, Ciências Sociais e Educação, a m
de elucidar conceitos e estabelecer relações argumentativas visando o entendimento
sobre a autonomia e o papel social da Universidade.
Ainda no campo teórico-metodológico, entendemos que as opções adotadas
na abordagem e análise de uma determinada questão precisam ser compatíveis
e coerentes com a visão/entendimento de mundo do pesquisador. Nesse sentido,
pontuamos que o tema aqui proposto será desenvolvido de forma a contemplar as
relações processuais de mudança coerentemente com o acercamento teórico do
materialismo histórico, que nos auxilia na compreensão da dinâmica da realidade
social e revela as contradições que lhe são inerentes. Destacamos que, ao abordarmos
o pensamento-ação de Darcy Ribeiro, tal conceito não será analisado de forma linear,
mas dialetizando as mudanças possíveis rumo a um novo ordenamento social.
Darcy foi um intelectual marcado pelos contextos de época, e por meio de seu
1 A expressão Universidade Necessária refere-se ao livro que Darcy Ribeiro escreveu no exílio. Trata-se
de uma das mais importantes obras como análise crítica dos problemas com que se defronta a América
Latina no campo da educação superior. Apresenta uma reexão sobre a evolução histórica da idéia de
universidade, revelando sua função de um instrumento possível para a aceleração do desenvolvimento
nacional.
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pensamento-ação buscava expressar o melhor da cultura do povo, sem desconhecer
as enormes diculdades sociais, econômicas e políticas. Entretanto, nunca se
apresentou como vítima da história, mas como um ético participante dos grandes
embates de seu tempo, visando à transformação da realidade cruel e injusta que foi
imposta (ou que deixamos impor) aos nossos povos. É oportuna esta observação de
Eric Nepomuceno (apud RIBEIRO, 2009, p. 10): “Darcy Ribeiro foi um homem de seu
tempo e um intelectual de permanência. Havia nele, acima de tudo, o compromisso
ético de mudar a sociedade, para um outro mundo que sabia possível.
É nesse sentido que Darcy propõe a análise da universidade entendida em sua
radicalidade2 e que pressupõe aspectos associados às bases do desenvolvimento
democrático da nação. Cabe registrar que, tradicionalmente, uma das funções
principais dos sistemas educacionais modernos, destacadamente do ensino superior,
é a formação das elites condutoras do país e a conseqüente ocupação de cargos
político-administrativos, fundamentando a manutenção do status quo e perpetuando
a idéia equivocada de que o povo deve car apartado da universidade. Essa é a base
da sua critica à instituição e para a qual apontava caminhos de superação dessa
realidade.
Objetivando ultrapassar a visão de mundo limítrofe das elites (ou frações da
elite), Darcy propõe como idéia-força da educação a edicação do autoconhecimento
nacional, tarefa em que os sistemas educacionais públicos e suas instituições
assumiriam papel de destaque. Toda a sua análise demonstra uma preocupação
central com a reorganização do Estado brasileiro, buscando um comprometimento
nacionalista dos cidadãos e, principalmente, denunciando o sistema de dominação
existente em nosso país. Ao mesmo tempo, ele reconhecia a grande diculdade em
se aliar os “discursos políticos” à política efetiva de transformação das mentalidades
e estruturas.
Desta maneira, a distância entre o que deveria ser feito e o que efetivamente se
faz, sem dúvida, atormentava (e atormenta) aqueles mais comprometidos com a
causa nacional. Segundo Darcy Ribeiro, para que a universidade contribuísse com
o saber necessário à construção de uma nação soberana, era necessário construir
um arcabouço teórico-prático que possibilitasse gerar alternativas e opções para a
renovação de seus órgãos, atuando como referência para o diagnóstico e a crítica das
estruturas vigentes:
2 Estamos utilizando o termo em seu sentido mais profundo, isto é, “[...] radical (do lat. radicalis) é o que
diz respeito à raiz das coisas, à sua natureza mais profunda, sem admitir restrição ou limite” (JAPIASSÚ;
MARCONDES, 1996, p. 229).
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Segundo o nosso modo de ver, a evolução sociocultural é gerada por uma série de revoluções
tecnológicas correspondentes a inovações prodigiosas no aparelho produtivo ou militar. Cada
etapa corresponde a uma formação econômico-social, vale dizer, a uma combinação especíca
de modos de produção com certas formas de ordenação da vida social e com conteúdos
ideológicos correspondentes. Em termos, marxistas, o processo pode ser descrito como uma
ruptura provocada por contradições tornadas antagônicas entre as inovações acumuladas nas
forças produtivas materiais da sociedade e nas relações de produção preexistentes, rupturas
estas que acionam o trânsito de uma formação econômico-social à outra. (RIBEIRO, 1971, p.
25).
Seu objetivo seria a transição entre a universidade real e a universidade necessária,
com a formulação de um projeto especíco de transição progressiva de uma à
outra, fazendo oposição aos projetos de colonização cultural e de perpetuação do
subdesenvolvimento e da dependência, propondo um projeto próprio que atendesse
ao âmbito universitário e apontando pressupostos para o desenvolvimento autônomo
da nação. Logo, pensava uma universidade com capacidade de criar e transformar as
estruturas sociais no caso brasileiro e, em um escopo mais ampliado, nas demais
nações latino-americanas.
Com relação à autonomia, nos cabe neste momento apresentar esse conceito
nos limites necessários para a presente análise. Autonomia refere-se à capacidade
do ser humano de tomar decisões que afetam e afetarão sua vida e, portanto, a sua
integridade físico-psíquica, bem como o seu entorno social. Etimologicamente,
a palavra autonomia se forma a partir de duas raízes gregas: autós e nómos. Autós
signica si mesmo, próprio, algo que se basta, que é peculiar, e nómos signica tanto
lei como regra ou ordem.
Esse agir autônomo permite ao humano (dentro de seus limites e possibilidades)
se livrar das coações externas. Sendo o seu pensamento livre, suas escolhas serão
feitas dentro de um movimento de “liberdade, de decisão e ação própria, mesmo que
inserido num grupo social. Em uma condição heterônoma, as decisões e opções são
externas ao pensamento racional; situações como ignorância, escassez de recursos
materiais, má índole moral entre outras, colocam também limitações que reduzem
ou anulam a capacidade de autonomia.
Cabe destacar que o humano inserido em uma sociedade, por maior que seja a sua
capacidade de autonomia, estará submetido aos limites e às devidas restrições acordadas
democraticamente com os outros integrantes do grupo social com que convive naquele
espaço-tempo. Sendo assim, a autonomia deve ser entendida como a capacidade do
sujeito de escolher, questionar, decidir e agir na vida privada, bem como atuar na esfera
pública, em consonância com os valores socioculturais e as normas coletivas.
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Portanto, a autonomia é limitada por condicionamentos e situações sócio-
históricas, não podendo ser absoluta. Darcy Ribeiro compreendeu as limitações da
autonomia tanto no campo do humano e de suas intersubjetividades quanto no campo
institucional da nação ou das nações periféricas sul-americanas (a tria Grande).
Seu grande esforço teórico-prático contemplava a autonomia nacional, reforçando o
comprometimento com o “nascimento de uma nova nação. Ele travava um embate
sem tréguas denunciando o atraso das elites nacionais que impediam (e impedem) a
formação de uma civilização brasileira autônoma e democrática.
A autonomia assume centralidade no pensamento de Darcy e tem como um dos
seus fundamentos a mestiçagem, elemento formador da América Latina e o caminho
de nossa própria reinvenção futura. Seu pensamento-ação mirava uma utopia política
que libertasse os povos latino-americanos da dominação externa e da mentalidade
reacionária das nossas elites políticas:
Surgimos, assim, como Povos Novos, nascidos da desindianização, da deseuropização
e da desafricanização de nossas matrizes. Tudo isso dentro de um processo pautado pelo
assimilacionismo, em lugar do apartheid. Aqui, jamais se viu a mestiçagem como pecado
ou crime. Ao contrário, nosso preconceito reside exatamente na expectativa generalizada de
que os negros, os índios e os brancos não se isolem, mas se fundam uns com os outros para
compor, numa sociedade morena, civilização mestiça. (RIBEIRO, 1986, p. 112).
Entretanto, o que prevalecia, sob a perspectiva dos grupos hegemônicos, era que:
Aqui, o máximo que se alcança é uma democracia restrita à igualdade dos pares.
E assim é porque as classes dominantes latino-americanas são, de fato, muito mais
parecidas com o patriciado escravista romano3 do que com qualquer burguesia
clássica” (RIBEIRO, 1986, p. 39).
Como estratégia de combate à “democracia restrita à igualdade dos pares, é vital
que a sua proposta de universidade pública se congure como um projeto coletivo,
que necessita ser politizado (em seu sentido profundo de deliberação coletiva) para
que possamos, concretamente, recuperar a res (coisa) pública.
Para abordarmos a práxis de Darcy Ribeiro no tocante ao ideário de universidade,
faremos referência a algumas de suas principais proposições apresentadas na obra A
Universidade Necessária, cuja composição dos textos é basicamente fruto de trabalhos
publicados originariamente em diferentes países na época de seu exílio.
3 Patriciado deriva de patrícios, que era o nome dado aos integrantes da aristocracia romana, assim
chamados por se considerarem descendentes dos patres, isto é, daqueles cujo conjunto formou o
Primeiro Senado Romano. Originalmente, os patrícios representavam o Estado, o que lhes possibilitou
o controle da cidade através de suas instituições.
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Logo nas páginas iniciais dA Universidade Necessária, Darcy faz um balanço
sobre suas experiências que reete tanto as mudanças que observa ao longo do tempo
no espaço universitário, como também seu próprio processo pessoal e engajamento:
Em cada uma dessas experiências, redeni meu núcleo inicial de idéias sobre a universidade
necessária formulado em Brasília, revisando-o frente a diferentes realidades e ampliando-o
ante novas exigências. Não a ponto, contudo, de que os primeiros textos devessem ser
abandonados, mas na devida medida em que eles exigissem supressão e aditamentos.
(RIBEIRO, 1991, p. 02).
O que se observa é que Darcy Ribeiro foi um intelectual dos fazimentos4, um
formulador de teorias e métodos de intervenção na realidade social. Sua ação mais
direta sobre a concretude do real e que assumiu maior visibilidade foi o modelo da
Universidade de Brasília (UnB) dos anos 1960. Nesse sentido, se revela um descontente
diante da conivência da universidade com as forças responsáveis pela dependência e
atraso da América Latina, conforme ele mesmo expressa: “Descontentamento com a
mediocridade de seu desempenho cultural e cientíco. E descontentamento com sua
irresponsabilidade frente aos problemas dos povos que a mantém” (RIBEIRO, 1991,
p. 03).
Como um “descontente-otimista, seu pensamento é capaz de vislumbrar a ação
participativa do intelectual latino-americano efetivamente engajado na construção
de uma América Latina consciente do seu potencial e capaz de instituir a primeira
civilização solidária, terra-mater de um dos principais grupos étnicos do mundo.
Esse é um tema que Darcy procura desenvolver também em outras obras, como
no caso de A América Latina: a Pátria Grande, coletânea de ensaios que objetiva
um entendimento mais ampliado de nossa identidade e de como, historicamente, se
processou nossa dependência em relação ao eixo central do capitalismo e a conivência
e ferocidade das elites nacionais dominantes aos interesses hegemônicos do capital.
Com suas análises radicais, faz a denúncia da intencionalidade das ditaduras
latino-americanas na “parceria” direta com os interesses internacionais:
As novas ditaduras militares do Brasil, da Bolívia, do Chile e da Argentina são também criações
norte-americanas. São o correspondente político inevitável do domínio de nossa economia
4 A palavra fazimento foi criada e utilizada por Darcy Ribeiro para caracterizar a concretude do
pensamento, isto é, o movimento do pensamento (teoria) com a sua ação concreta (prática). Designa
a reação do homem às suas condições reais de existência na busca incessante da transformação social.
Esse termo nos remete à palavra grega práxis (ação-reexão-ação), que é um conceito utilizado para
armar a relação dialética entre o homem e a natureza, na qual o homem, ao transformar a natureza
com o seu trabalho, transforma a si mesmo.
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pelas corporações transnacionais, que, não podendo ser legitimado pelo voto popular, tem
que ser imposto pela mão de governos militares. Cada uma delas nos foi imposta através
de movimentos programados cuidadosamente em Washington – com a ativa participação
internacional (de desestabilização de governos democráticos e progressistas) seguida da
apropriação do poder através de golpes de militares ianquizados. Uma vez implantada a nova
ordem, seus mandantes atenderam solícitos a voz do amo. (RIBEIRO, 1986, p. 103).
Com o golpe civil-militar no Brasil e a queda do governo João Goulart, só restou
como alternativa de sobrevivência o exílio. No período do exílio, Darcy atuou
como especialista em reformas universitárias, colaborando com a Universidade da
República Oriental do Uruguai (1964), com a Universidade Central da Venezuela
(1969/1970), com a Universidade do Chile (1970/1971) e com o sistema universitário
do Peru (1973). Portanto, quando Darcy Ribeiro pensa e estrutura a Universidade
Necessária, sua reexão-ação tem como objetivo mais ampliado a América Latina, a
realização da tria-Grande. A base de suas propostas orienta-se por uma perspectiva
teleológica de inuir o futuro, pois, para Darcy:
Aos povos subdesenvolvidos não cabe qualquer outra orientação, exceto a de que somos
povos em estado de ser, cuja forma ainda não foi plasmada. Povos que, em seu fracasso de
incorporarem-se, autonomamente, à civilização presente, têm apenas um valor iniludível:
sua condição de “tabula rasa, de projeto do futuro, a realizar-se somente no marco da nova
civilização. Povos que, mais uma vez, correm o risco de fracassar, caso nos anos vindouros
se deixem induzir por suas elites dominantes, tal como ocorreu no passado, a percorrer os
caminhos da modernização reexa pela via da dependência. (RIBEIRO, 1991, p. 14).
Especicamente com relação à estrutura da Universidade Necessária, Darcy
Ribeiro propõe uma integração entre os sujeitos que compõem o espaço universitário
na luta contra os projetos de colonização cultural que contribuem para a perpetuação
do subdesenvolvimento e da dependência externa. Em suas reexões destacam-se as
tensões entre as próprias potências centrais e como estas vem debilitando, ao longo
do tempo, os mecanismos de preservação da ordem capitalista, abrindo, assim, outras
possibilidades de construção societária. Conforme suas palavras: “O certo é que as
manifestações de descontentamento contra a universidade e as sociedades, tal como
são agora, por seu caráter universal, parecem anunciar o advento de novas formas de
uma e outras” (RIBEIRO, 1991, p. 17).
Podemos armar que todo o seu esforço como idealizador/fazedor com vistas à
reestruturação da universidade, ancorou-se fundamentalmente na ressignicação
do papel desta em sua função social na luta contra o subdesenvolvimento. Assim,
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procurou questionar os bastidores da instituição e os valores/condutas da sociedade
da qual faz parte, percebendo-a como um importante agente de reprodução do
mundo em que vivemos, e com potencial necessário para a transformação. Em seu
entendimento, reforma universitária e mudanças sociais caminham lado a lado.
As utopias concretas de Darcy Ribeiro: UNB e UENF
O percurso da origem de Brasília até a criação de uma universidade na nova capital
foi extremamente tortuoso. A proposta da criação da Universidade de Brasília (UnB)
foi encaminhada por Juscelino Kubitschek ao Congresso no dia da inauguração da
cidade, em 21 de abril de 1960. Desde então, até ns de 1961, uma intensa atividade
foi desenvolvida para a concretização dessa empreitada, sendo Darcy responsável
pelo direcionamento da discussão. Todo esse processo merece destaque, tendo em
vista que a UnB, antes da sua concretude física, passou por um Congresso Nacional
em meio à turbulência causada com a renúncia de Jânio Quadros.
Após a aprovação do projeto na Câmara Federal, Darcy Ribeiro, por meio de
uma aliança com Filinto Müller, consegue, também, a aprovação da UnB no Senado
Federal. Com extrema percepção política, percebeu o momento-oportuno e aproveitou
a porta que se abriu para tentar fundar sua utópica Universidade da América Latina.
Desta forma, em 15 de dezembro de 1961, o presidente João Goulart sancionou a Lei
no 3.998, que autorizava o Poder Executivo a instituir a Fundação Universidade de
Brasília (FUB), mantenedora da futura universidade.
Após as negociações preliminares, logo na primeira reunião do Conselho
Universitário, Darcy Ribeiro seria eleito o Reitor da nova instituição5. Deste modo,
nascia naquele momento a mais moderna universidade brasileira, sendo a primeira
instituição de ensino superior no Brasil a ter proclamado com todas as letras: “Formar
cidadãos empenhados na busca de soluções democráticas para os problemas com que
se defronta o povo brasileiro na luta por seu desenvolvimento econômico e social”,
conforme o artigo 2º do Decreto nº 1.872, de 12 de dezembro de 1962.
Para que a Universidade fosse transformadora, precisaria estar integrada à
sociedade e cumprir seu caráter público, realizando sua função social. O oposto
seria a universidade burocratizada e prossionalizante, como mera reprodutora de
técnicas, cujo objetivo principal somente atenderia às necessidades do mercado,
contribuindo para a manutenção dos interesses das elites dominantes. Logo, para os
5 A lei que autorizou a criação da Fundação Universidade de Brasília é de 1961. Por esse motivo é que
em algumas fontes se diz que a UnB foi “criada” em 1961, apesar de a inauguração efetiva do campus ter
sido em 1962.
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idealizadores da UnB, esse tipo de universidade (prossionalizante e asséptica) não
seria capaz de criação e transformação da realidade nacional, muito pelo contrário,
serviria apenas como uma instituição mantenedora do status quo.
Darcy defende que a universidade possui a mais alta responsabilidade para o
exercício das funções relacionadas à conscientização crítica da sociedade, além de
sua extrema capacidade de desenvolver a criatividade cultural e cientíca. Trata-se de
uma instituição social, que deve ser politizada em prol do desenvolvimento de uma
nação autônoma, em que o saber cientíco não atua de forma neutra. Portanto, ao se
despolitizar ou colocar condições à universidade, se abriria um grande espaço para a
submissão aos “interesses menos nobres, aos interesses de poucos e, principalmente,
aos interesses privados.
Para aqueles que defendem uma suposta neutralidade das instituições, em especial
as educativas, é importante entender que o fechamento e a despolitização designam o
âmbito do privado, da “priva-cidade. Da privação da cidade6. Enquanto seu oposto, a
abertura, dene o âmbito do público. E se o propósito da educação é abrir o que es
fechado e fechar, quando necessário, o que está escancarado, vulnerável, é possível
armar que a educação despolitizada não é capaz de formar, ela “de-forma.
Em linhas gerais, podemos identicar as inovações da UnB na comparação
apresentada a seguir7:
Universidade brasileira tradicional
• Caráter de federação de escolas prossionais autárquicas e estanques,
desprovidas de qualquer integrativo que lhes permita comunicar, interagir e cooperar;
• Esbanjamento de recursos tanto pela subutilização das disponibilidades
materiais e humanas como pelas suntuosas edicações e equipamentos/instalações
vistosos, mas dispensáveis;
• Estrutura prossionalista e unitarista que, fazendo corresponder a cada
carreira uma escola, restringe a mobilidade do estudante, impedindo a troca de
carreiras;
• Universidade colonizada e propensa ao mimetismo cultural, mas inautêntica
por sua indelidade aos padrões cientícos internacionais, além de irresponsável na
6 A cidade (do grego pólis; Cidade-estado), em seu sentido socio-losóco é a unidade política e social
que serve de base para a agregação dos humanos. Logo, a cidade é responsável por esse agrupamento
humano no qual cada pessoa é responsável pela existência de sua lis, isto é, do conjunto social, ao
contrário da “priva-cidade, onde as questões políticas (deliberações coletivas) cam reservadas ao
âmbito privado.
7 Essa comparação é uma livre adaptação feita pelos autores que tem como fundamento as obras de
Darcy Ribeiro: A Universidade Necessária (1991); O Brasil como Problema (1995); Testemunho (2009);
UnB: Invenção e Descaminho (1978) e Universidade pra quê? (1985).
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concessão de títulos e graus acadêmicos;
• Sujeição à hegemonia catedrática, na qual o professor vitalício tem a
predisposição de escolher seu sucessor, dicultando a formação de pessoal mais
qualicado. Carência de programas de pós-graduação para formar e expandir as
atividades de pesquisa e aprofundar o conhecimento da realidade brasileira;
• Incapacidade de dominar o saber cientíco e humanístico moderno, de
cultivá-los por meio de pesquisas e estudos, de difundi-los por meio de um ensino de
padrão razoável, visando às soluções dos graves problemas nacionais;
Universidade de Brasília (UnB)
• Integração mais completa entre os órgãos da instituição: institutos,
faculdades e unidades complementares e, também, com os setores produtivos do país
que deverão empregar os prossionais que ela formar;
• Evitar a multiplicação desnecessária e onerosa de instalações e equipamentos,
permitindo a concentração e o melhor aproveitamento de recursos materiais e
humanos;
• Proporcionar modalidades novas de formação cientíca e especialização
prossional e dar ao estudante após seu ingresso uma oportunidade de optar, quando
mais amadurecido e mais bem informado, por uma nova orientação prossional;
• Preocupação com a seleção dos futuros quadros cientícos e culturais do
país porque, ao invés de fazer-se a seleção dentre os poucos alunos que, concluindo o
nível médio, se decidem por determinada orientação prossional, far-se-á entre todos
os alunos que frequentam os institutos centrais e aí revelem aptidão para desenvolver
pesquisas;
• Estabelecer a distinção entre atividades de preparação cientíca e as de
formação prossional. Para isso, cria condições para que as faculdades cuidem
melhor do seu campo especíco de ensino e pesquisa aplicada, deixando aos institutos
centrais as pesquisas básicas.
• Desenvolver programas tanto cientícos quanto humanísticos a m de
proporcionar ao futuro cientista ou prossional a oportunidade de fazer-se, também,
herdeiro do patrimônio cultural e artístico da humanidade, além de ensejar uma
integração mais completa da universidade com o país pela atenção aos problemas
nacionais como tema de estudos e de assessoramento público.
Darcy Ribeiro sabia que a almejada autonomia não se alcança somente com
recursos, mas, sobretudo, com a liberdade de pensamento-ação. Nesse sentido, a UnB
ousou ser um palco de discussão em uma época tensionada, fazendo a opção de não
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cercear as liberdades individuais e coletivas, uma vez que o principal norte era o
desenvolvimento autônomo do país e da sociedade. O Brasil, nos dizeres de Darcy,
“[...] não precisa de mais uma Universidade conivente com o atraso e a dependência.
A Universidade necessita ter a utopia que ordene e concatene suas ações, proponha
soluções e que tenha um plano de si mesma” (RIBEIRO, 1991, p. 78).
Sempre na busca de novas utopias, Darcy Ribeiro nos anos de 1990 planeja e
constrói a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Essa criação teve
como fundamento a concepção de uma universidade projetada para o futuro (A
Universidade do Terceiro Milênio), capaz de atender às demandas crescentes de um
mundo em constante transformação. Ele nos alerta em tom profético:
Com efeito, poucos anos nos separam do ano 2000. A maioria dos brasileiros estará viva
no dia da passagem do segundo para o terceiro milênio, os alunos matriculados hoje nas
universidades, nele é que trabalharão. Mas é de se perguntar se o Brasil de hoje, o povo
brasileiro e, inclusive, a cultura acadêmica cultivada nas universidades, estão prontos e
maduros para esse trânsito. A Civilização Emergente, como já se disse, tem como marca
distintiva a de que se fundará nas ciências básicas e nas práticas tecnológicas que estão se
gestando em nossos dias. Seu domínio, cultivo e ensino são condições essenciais para que não
nos atrasemos, uma vez mais, na história. (RIBEIRO, 1995, p. 220).
Deste modo, visando atender a esse paradigma de universidade de ponta, a UENF
foi a primeira instituição de ensino superior no Brasil que iniciou com um quadro
docente em que todos os professores possuíam nível doutoral e, diferentemente da
maioria das universidades brasileiras – onde a divisão estrutural é realizada sob a
forma de departamentos/institutos –, a UENF se articulou por meio de centros, que
são compostos de laboratórios temáticos e multidisciplinares.
Darcy Ribeiro, ao projetar a UENF, tinha em mente uma universidade moderna,
capaz de dominar, transmitir conjunta e integralmente as novas ciências e tecnologias,
além de garantir à região Norte Fluminense os instrumentos técnicos, cientícos e
pessoal qualicado indispensáveis ao desenvolvimento das atividades produtivas,
notadamente no que se refere à exploração de petróleo e gás e à modernização do
setor agrário.
Para viabilizar o projeto, em setembro de 1991, Darcy Ribeiro licenciou-se de seu
mandato de Senador da República8 a m de assumir a Secretaria Estadual de Projetos
Especiais de Educação do governo do estado do Rio de Janeiro.
8 Sua cadeira no Senado foi então ocupada pelo suplente Abdias do Nascimento, ligado ao
movimento negro (Conf. DARCY RIBEIRO SENADOR, c2022).
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Além da preocupação com a infraestrutura arquitetônica, também valorizou
a concepção acadêmica. Para avançar nesta questão, cercou-se de pesquisadores
renomados para elaborar e apresentar o projeto da “Universidade do Terceiro
Milênio”:
Para começar, nós recrutamos como professores os melhores cientistas no Brasil e até no
exterior. A receptividade foi enorme. Entre eles estão Carlos Dias, a maior autoridade em
Geofísica do Brasil (UFPA); o Doutor em Biofísica da UFRJ, Wanderley de Souza; Nilton
Rocha Leal, especialista em Genética (Embrapa). E contratamos também 15 sábios da Rússia.
Também vieram professores de Cuba, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. Isso foi possível
porque pela primeira vez no mundo há uma grande oferta de pessoal cientíco de nível
quase Prêmio Nobel. A crise que houve com o mundo soviético fez com que muitos cientistas
não tivessem mais condições de continuar trabalhando no país. [...] eu chamo a UENF de
Universidade do Terceiro Milênio. Será um risco mortal para o Brasil não se integrar nessa
nova era da ciência e tecnologia. (RIBEIRO, 1994, p. 194).
Darcy Ribeiro estava convicto da necessidade da criação de uma nova universidade,
que contribuísse para a superação do atraso (regional/nacional) – essa era uma tarefa
prioritária. No seu entendimento, com a modernização reexa, o atraso não seria
superado jamais, o que poderia acontecer residualmente é que alguns brasileiros
(grupos pertencentes às elites dirigentes) teriam a oportunidade de experimentar
os bens da modernidade, mas o país manteria sua inserção subordinada a sistemas
tecnológicos externos.
Apenas pela aceleração evolutiva, mediante a mobilização de fatores endógenos
à própria sociedade, é que seria possível almejar o desenvolvimento autônomo,
com base no potencial de criação e produção/domínio do conhecimento. Para ele,
naquele momento, a Universidade Estadual do Norte Fluminense deveria ser uma
das protagonistas do binômio modernização/progresso econômico.
Desta forma, propunha constituir uma universidade de pesquisa voltada para a
aceleração das potencialidades econômicas do norte do estado do Rio de Janeiro, com
inuências socioculturais em todo o país. Conforme seu entendimento, nascia uma
instituição imbuída da missão histórica de atualizar o Brasil em relação aos principais
campos do saber, mediante seus laboratórios temáticos e centros integrados e de
experimentação, nos quais as tecnologias mais avançadas poderiam ser praticadas,
ensinadas e, principalmente, criadas de forma autônoma.
Vale lembrar que Darcy Ribeiro foi visionário ao enxergar o potencial do
petróleo/gás na região Norte Fluminense e a urgência dos investimentos de ciência
e tecnologia (C&T) nessa área, muito antes da descoberta do pré-sal. Ao assumir o
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compromisso de projetar a UENF, teve a capacidade de vislumbrar a necessidade da
simbiose conhecimento/aplicação com base nas tecnologias de última geração.
O plano original idealizado para a UENF sofreu algumas apropriações e não
se concretizou plenamente na prática. Mas entender a jovem instituição como um
comprometimento da aventura histórica de se criar uma Universidade-Semente em
parâmetros elevados, é certamente a grande herança intelectual deixada por todos
que estiveram engajados à frente deste movimento por uma universidade pública e
autônoma no Norte Fluminense. Vale a pena, mais uma vez, relembrar Darcy Ribeiro
quando nos alertou sobre a possibilidade de sermos somente consumidores dos
frutos” de uma modernização reexa:
Surge no horizonte uma outra revolução tecnológica mais radical que as anteriores. Se uma
vez mais nos deixarmos fazer consumidores de seus frutos, em lugar de dominadores de sua
tecnologia nova, as ameaças sobre a nossa sobrevivência e sobre a soberania nacional serão
ainda mais intensas. (RIBEIRO, 1996, p. 262).
Em 23 de outubro de 2001, data da promulgação da Lei Complementar nº 99,
Darcy Ribeiro (já falecido em 1997) tem seu nome incorporado ao da UENF. Assim,
apesar de todas as tensões que envolveram a criação da Universidade do Terceiro
Milênio, seu nome cou registrado para sempre na instituição, marcando a utopia do
homem que viveu o seu tempo e projetou o futuro.
Universidade Necessária e América Latina: influências e caminhos
Ao buscar entender a universidade latino-americana, Darcy Ribeiro identicou como
principal força renovadora a Reforma de Córdoba, de 19189. Assim, investigamos os
pressupostos que o levam a considerar O Manifesto de Córdoba como um marco,
identicando alguns aspectos desse ideário.
Esse ideário reformista diz respeito ao contexto social latino-americano em que
as elites intelectuais começam a tomar consciência do caráter autoperpetuador de
seu atraso em relação a outras nações e das responsabilidades sociais da universidade
para com o desenvolvimento nacional em bases modernas e democráticas:
9 A Reforma de Córdoba de 1918, na Argentina, é um marco histórico fundamental para se compreender
os demais processos de reforma universitária ocorridos em outros países latino-americanos, tais como:
Peru, Cuba, Uruguai, Chile e outros, o que a torna referência obrigatória em qualquer debate que tenha
por objeto de estudo a democratização da universidade (autonomia, eleição de dirigentes, concursos
públicos, docência livre, gratuidade do ensino, democratização do acesso, integração, entres outras
possibilidades).
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As universidades foram até aqui o refúgio secular dos medíocres e o que é pior ainda – o
lugar em que todas as formas de tiranizar e de insensibilizar encontraram a cátedra que as
ditasse. As universidades chegaram a ser assim o reexo el destas sociedades decadentes
que se empenham em oferecer o triste espetáculo de uma imobilidade senil. È por isso que a
ciência frente a estas casas mudas e fechadas, passa silenciosa ou entra mutilada e grotesca ao
serviço burócrático. Nosso regime universitário é anacrônico. Está fundado em uma espécie
de direito divino: o direito divino do professorado universitário. (TUNNERMANN,2008,
p.35)
Como podemos observar, as características diferenciais das universidades
hispano-americanas provêm do programa de Córdoba,10 destacadas algumas de
suas principais postulações, como, por exemplo, a autonomia política docente e
administrativa da universidade; a seleção de corpo docente por meio de concursos
públicos; liberdade docente; a eleição de todos os mandatários da universidade em
assembleias, com representação de professores, estudantes e egressos; a gratuidade
do ensino superior; assunção, pela universidade, de responsabilidades políticas com
a nação; a defesa da democracia, entre outras.
É digna de nota a atualidade de alguns de seus postulados, ainda que reconheçamos
a especicidade de cada país, e aponta-se que esse marco histórico é fundamental
para entendermos o processo da reconstrução intelectual universitária latino-
americana. Deste modo, é a partir desse movimento que o desejo pela reforma da
universidade tradicional e elitista passa a apresentar características semelhantes, em
que os privilégios e a tirania das cátedras são questionados.
Assim, um dos eixos norteadores da reforma contemplava a questão da autonomia
das instituições. Ao mesmo tempo em que foi uma reforma reivindicada por
estudantes e professores jovens, o marco liberal orientou as diretrizes referentes à
educação de um modo geral, de modo que o Estado deveria ser o principal agente
educativo, uma vez que a sociedade civil ainda não demonstrava um potencial de
organização coletiva.
As análises de José Carlos Mariátegui sobre os acontecimentos de Córdoba atestam
10 Sobre a Reforma Universitária de Córdoba: “O movimento estudantil, que se iniciou com as lutas
dos estudantes de Córdoba pela reforma da universidade, assinala o nascimento da nova geração latino-
americana. A ânsia da reforma apresenta-se com características idênticas, em todas as universidades
latino-americanas. Os estudantes de toda a América Latina, ainda que levados à luta por protestos
peculiares de sua própria vida parecem falar a mesma linguagem. Esse movimento intimamente
conectado com a vigorosa agitação do pós I Guerra Mundial (1914-1918). As esperanças messiânicas, os
sentimentos revolucionários, as paixões místicas próprias do pós-guerra, repercutiram particularmente
na juventude universitária da América Latina” (MARIÁTEGUI, 2008, p. 129-130).
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que o movimento reformista, no princípio, careceu de homogeneidade e autonomia,
aceitando como novas as ideias democrático-liberais; mas justamente por sua ação
próxima e crescente com o avanço das classes trabalhadoras e a diminuição dos
velhos privilégios econômicos é que o movimento pôde ser compreendido como um
processo de renovação do pensamento crítico-social latino-americano.
Importante pontuar que o movimento dessa reforma não deve ser analisado a partir
de uma agenda exclusivamente voltada para a educação superior, mas necessita ser
considerado levando-se em conta a relação entre universidade-política. A experiência
ocorrida em Córdoba é lembrada pelo caráter radical da reforma estudantil e pela
luta por uma universidade cientíca, moderna e democrática. Muito além do caráter
local, esse movimento se insere no contexto de uma sociedade que assiste ao m da I
Guerra Mundial, à Revolução Russa e à crescente urbanização e proletarização. Sobre
as mudanças no plano da vida social na América Latina destacamos as reexões de
Ruy Mauro Marini:
A divisão internacional do trabalho que teve lugar no período após a I Guerra Mundial abre
espaço para que nos países latino-americanos se comece um processo de industrialização, cuja
contrapartida é a criação do mercado interno, o qual impacta a diferenciação de classes. Os
movimentos de classe média e classe operária impõem novas alianças sociopolíticas radicalizando
as contradições entre a oligarquia agro-comercial e a burguesia industrial, levando a novos
tipos de Estado, baseados no nacionalismo e em pactos menos excludentes. Paralelamente, se
intensicam as relações comerciais e políticas entre os países da Região, suporte necessário para
o conceito autônomo de latino-americanismo. (MARINI, 2007, p. 228).
Sobre Córdoba, Darcy Ribeiro a dene como a principal força renovadora da
universidade e do pensamento latino-americano. Em sua análise sobre o tema, assim
se manifesta:
Dada sua amplidão e ambições, este programa continua sendo a bandeira de luta tanto dos
estudantes como de grande parte dos professores latino-americanos. Sua pedra de toque,
entretanto é o regime do co-governo, acusados por uns de degradar a universidade, de
politizá-la e impedi-la de exercer suas funções fundamentais e visto por outros como o grande
motivo de orgulho das universidades hispano-americanas. (RIBEIRO, 1991, p. 124).
Suas reexões prosseguem indicando que os dois juízos acima descritos polarizam
as posturas mais reacionárias e mais progressistas dentro da própria instituição
universitária. Uma apreciação crítica sobre o cogoverno indica que ele, como
qualquer outra ação que seja empreendida como estratégia de mudança, poderia
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tanto conduzir a universidade a deformações quanto a avanços, mas, sem dúvida, tal
concepção de gestão assumiu um protagonismo no debate, para além dos muros da
universidade.
Torna-se importante frisar que os princípios nortedores da Reforma de Córdoba,
destacadamente aqueles relacionados à autonomia universitária (de ordem
administrativa, nanceira e pedagógica), representatividade e o comprometimento
com as questões sociais, permanecem como referência para (re)pensarmos a
instituição universitária até os dias de hoje. Nesse sentido, é oportuna a análise de
Roberto Leher sobre essa questão:
Não deixa de ser surpreendente que docentes estudiosos da educação superior em distintos
países latinoamericanos reivindiquem como atuais os grandes eixos das lutas de Córdoba.
A preocupação com o pluralismo, a liberdade de pensamento a autonomia universitária
vem sendo sustentada como um tema prioritário, tendo em vista a crescente dependência
das universidades aos imperativos nanceiros e instituições particularistas. Tais imperativos
direcionam as atividades universitárias de modo discriminatório, privilegiando as esferas
mercantis e penalizando as pesquisas básicas (gramscianamente) desinteressadas e,
principalmente, as investigações motivadas pela necessidade de enfrentar os grandes
problemas nacionais dos povos e, por isso mesmo, críticas ao padrão de acumulação em curso
e à sua superestrutura ideológica, o social-liberalismo. (LEHER, 2008, p. 58).
Ao revermos o ideário contido no referido movimento, é possível perceber sua
inuência no pensamento de Darcy Ribeiro em suas propostas para a Universidade
Necessária no plano nacional dos países latino-americanos, mas também como
importante instância articuladora da tria Grande. Reforçamos a atualidade de
seus ensinamentos, que em muito podem contribuir para a realização de um projeto
de renovação institucional que tenha como principal nalidade sua autonomia e
emancipação. Um projeto que seja: “[...] tão signicativo para a geração atual quanto
foi o manifesto de Córdoba para a geração dos últimos cinqüenta anos” (RIBEIRO,
1991, p. 126).
Para Darcy, a grande tensão que envolve a universidade está entre dois modelos:
o primeiro refere-se à “modernização reexa, que sustenta a suposição de que
a universidade, para se tornar igual às “universidades adiantadas, tem que passar
por “aperfeiçoamentos e inovações” conforme os parâmetros ditados pelos países
centrais, isto é, a cópia deformada dos modelos externos; o segundo modelo
seria o “desenvolvimento autônomo” (ou “política autônoma”), que defende uma
universidade que escape da função de “perpetuadora das instituições sociais” a partir
de uma independência intencional de suas formas de pensar-agir.
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No tocante à “modernização reexa, Darcy Ribeiro é bastante enfático, armando
que é um processo que nos torna “proletários externos de outros povos, pois fazemos
parte de um modo de produção integrado a um plano global, assim, pertencentes
de uma “mesma história, uns autonomamente e outros, dependentes. Desta forma,
privilegiando-se a “política de modernização, a nossa universidade latino-americana
permanece inconsciente de si mesma e da sociedade a que serve.
Por outro lado, o “desenvolvimento autônomo” requer o máximo de lucidez e de
intencionalidade, tanto em relação à sociedade nacional como no correspondente
à universidade, o que implica diagnosticar os problemas e estabelecer objetivos
estratégicos visando uma Universidade-instrumento:
Enquanto a política modernizadora aspira, só a reformar a universidade, de modo a torná-la
mais eciente no exercício de suas funções conservadoras dentro de sociedades dependentes e
submetidas à espoliação neocolonial, a política autônoma pretende transgurar a universidade
como um passo no sentido da transformação da própria sociedade, a m de permitir-lhe,
em prazos previsíveis, evoluir da situação de proletariado externo – limitado a satisfazer
condições de vida e de prosperidade de outras nações – à dignidade de povo para si, senhor
do comando de seu destino e disposto a integrar-se na civilização emergente como nação
autônoma. (RIBEIRO, 1991, p. 26).
Assim, em seus estudos como especialista e reformador de universidades, ele
apontava que, para o desenvolvimento nacional dos países subdesenvolvidos, todos
os tipos de ensino deveriam ser elevados; entretanto, caberia à universidade o papel
de destaque, pois ela seria um ponto de resistência, principalmente, para a América
Latina na luta contra a “modernização reexa, cujos benefícios são restritos a
segmentos sociais especícos, sem nenhuma pretensão de se estender à totalidade
da população.
Mas seria possível pensar uma universidade (nos países periféricos) como alavanca
da aceleração e superação da dependência? Tal questão remetia a outras muito mais
agudas, pois não podemos nos esquecer de que os encaminhamentos dados a esse
tipo de universidade autônoma afetariam os destinos da sociedade em seu conjunto.
Conforme Darcy Ribeiro:
Esta questão provoca várias outras mais concretas: podem nações subdesenvolvidas
ter universidades desenvolvidas? Poderemos nanciar, com os magros recursos do
subdesenvolvimento, a implantação de universidades melhores? Que tipo de organização deve
corresponder às universidades empenhadas na luta pelo desenvolvimento nacional autônomo?
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Será possível, mediante a instituição do autogoverno, e explorando as contradições da própria
clientela universitária, reestruturá-la para que sirva mais à mudança do que à preservação da
estrutura social vigente? (RIBEIRO, 1991, p. 31).
Ao buscar responder essas inquietações, devemos lembrar que as opções das elites
dirigentes latino-americanas apartadas do povo, sempre representaram um entrave à
elaboração de projetos emancipatórios:
O povo foi excluído do projeto, porque compelido a exercer o papel de proletariado externo dos
núcleos cêntricos de um sistema econômico de base mundial, e destinado a manter, com seu
trabalho, os privilégios da classe dominante nativa e os lucros de seus associados estrangeiros.
Nossos próprios esforços no sentido do conhecimento da realidade física e social de nossos
países foram, provavelmente, menores do que poderiam ter sido, e para eles as universidades
nem sempre concorreram com a maior contribuição. [...] Ainda hoje, a produção cientíca da
América Latina, referente à sua realidade, é menos abundante e, quiçá menos valiosa do que
a estrangeira. Quem quiser entender-nos aqui ou alhures, terá geralmente de recorrer antes
à bibliograa estrangeira do que a nacional, nas diversas disciplinas cientícas. (RIBEIRO,
1991, p. 32).
Cabe ressaltar, que a questão central apontada por Darcy Ribeiro não é uma
fobia ao estrangeiro, mas a responsabilidade por nosso destino, isto é, temos que
ser responsáveis pela edicação de uma instituição que possa ser uma Universidade-
instrumento na construção de nações autônomas. Caso contrário, caremos reféns de
decisões externas ou de setores hegemônicos locais que vão reforçar os pressupostos
da “neocolonização, impossibilitando-nos de diagnosticar nossa realidade e
inviabilizando propostas originais que possam atender a maioria das populações
latino-americanas.
Logo, o alvo estratégico para a construção dessa Universidade Necessária aponta
para um enfrentamento às elites dirigentes que se beneciam e colaboram para
promover os interesses estrangeiros – grupos que defendem que o futuro de nossa
universidade consiste em manter-se dependentemente atada ao modelo externo,
como ressalta, mais uma vez, Darcy Ribeiro:
Quando se pensa na generosidade de fundações, banqueiros e governos estrangeiros, a
oferecer empréstimos dadivosos e a patrocinar pesquisas, a mandar especialistas solícitos
para prodigalizar conselhos e promover conferências interamericanas em que a integração
universitária é elevada ao nível de importância dos problemas do mercado comum, ou da defesa
continental, cumpre indagar: que há por trás de tudo isto? E, mesmo não sendo possível armar
que toda a ajuda e todas as intenções sejam intrinsecamente inconvenientes, é indispensável
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armar que elas têm conteúdos políticos não explícitos. (RIBEIRO, 1991, p. 38)
Devemos ter a devida atenção para a crescente intervenção das instituições
nanceiras internacionais, como o Banco Mundial e sua agenda educacional11 para
os chamados países em desenvolvimento. Desta forma, as análises de Darcy Ribeiro
no tocante à educação-dependência e economia-mercado revelam-se muito atuais
para compreendermos as diferentes realidades da América Latina e o panorama
internacional.
Atualizando essa discussão, assinalamos que, em função dos avanços desmedidos
do modo de produção capitalista12, as “metamorfoses do capital” estão afetando
diretamente, também, os países centrais, como podemos vericar nos estudos
recentes de Belmiro Gil Cabrito sobre a “dependência européia”:
Apesar das ‘boas intenções’ veiculadas na retórica de responsáveis da União Européia após
inúmeras reuniões e cúpulas, no sentido do reforço da coesão social e do desenvolvimento
dos indivíduos e das populações e inerentes à construção de uma sociedade do conhecimento,
coloca-se uma questão fundamental: será que o processo iniciado com a Declaração de
Bolonha contribuirá para aquele desenvolvimento pessoal e coesão ou é mais um instrumento
globalizado cujas propostas nas teorias do capital humano, servem aos objetivos da economia?
(CABRITO, 2009, p. 37).
Se no caso europeu a situação é grave, em particular na América Latina a
perspectiva para a construção de uma universidade autônoma e efetivamente
necessária permanece distante, conforme se pode identicar nas análises de Pablo
Gentili:
Hay um campo em que los gobiernos posneoliberales de América latina parecen enfrentar
enormes dicultades, mostrando no pocas limitaciones para implementar políticas
democráticas que consoliden su carácter público: las universidades. Por diversos motivos,
y a noventa años de la Reforma Universitária de Córdoba, la delantera em formulácion de
propuestas de cambio para lãs universidades latinoamericanas La siguen detentando los
sectores más conservadores y tenocráticos de nuestras sociedades. Em rigor, hoy la própria
enunciación de la necesidad de uma ‘reforma universitaria’ parece patrimônio de quienes
11 A conjuntura histórica internacional das décadas de 1960 e 1970 permitiu ao Banco Mundial (BIRD)
assumir o controle da divisão internacional do trabalho e do conhecimento, denindo, desta forma,
quais seriam os países produtores de ciência e tecnologia e, principalmente, restringindo as políticas
educacionais dos países da África e da América Latina (conforme sinalizado por Silva [2002]).
12 Estamos considerando o desdobramento do modo capitalista de produção, ou melhor, o sistema
metabólico do capital (Conf. MÉSZÁROS, 2011).
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deenden la implementación de políticas de privatización y mercantilización de la enseñanza
superior y no de aquellos que deenden uma perspectiva transformadora y emancipadora
para nuestras sociedades y sus universidades. (GENTILI, 2008, p. 39).
Com base nas reexões mais contemporâneas, é vital lembramos que o debate
sobre a Universidade Necessária proposto por Darcy nos anos 1960/1990 continua
rondando o nosso presente, e permanecemos nos indagando sobre os grandes
dilemas que afetam o Brasil e demais paises da America Latina: por que não temos
assegurados os direitos humanos: alimentação, saúde, habitação, trabalho, educação,
segurança? Por que ainda há tanta exclusão e desigualdade social? Como as
instituições educacionais podem ser (re)formadas para contribuir com a autonomia
pessoal e nacional dos povos marginalizados e periféricos?
As respostas a essas questões já estão elucidadas, a busca se orienta pela superação
dessas indagações, o que nos remete à esfera política-participativa, para a construção
de conhecimentos que ofereçam a possibilidade de autonomia dos humanos e
suas coletividades (regionais/nacionais) em um novo tempo-espaço civilizatório,
conforme previu Darcy.
Reconhecemos que a Universidade permanece necessária, lócus privilegiado
para a promoção de pensamento e práticas autônomas, demandando cada vez mais
a participação ético-política dos atores envolvidos no espaço acadêmico superior.
Entretanto, não podemos ter a ingenuidade de acreditar que bastam o envolvimento
e engajamento dessa instituição e sua comunidade acadêmica para empreender
a transformação radical de que a nossa sociedade necessita, pois temos um
processo histórico de exploração, e a luta e as formas de expropriação assumem na
contemporaneidade contornos tanto cruelmente explícitos quanto muito mais sutis.
Considerações em permanente (re)construção
Após 60 anos do primeiro fazimento de Darcy Ribeiro para a universidade brasileira,
podemos identicar que as utopias presentes em seu pensamento (os projetos
originais) não foram plenamente concretizadas, daí o uso da palavra utopia. Segundo
esse olhar, teríamos mais um projeto, um sonho, enm, um “não-lugar ideal”13 que não
pôde ser realizado plenamente no seu tempo histórico, dadas as condições externas
13 Utopia, do grego: ou: negação; topos: lugar, literalmente signicando “não-lugar ou “lugar-nenhum.
Esse termo criado por Tomás Morus em sua obra Utopia (1516) tem como idealização um lugar (ilha)
perfeito onde existiria uma sociedade imaginária na qual todos os homens e mulheres seriam iguais,
livres e, principalmente, viveriam em “harmonia.
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e internas do país. Entretanto, se analisarmos com mais atenção, compreenderemos
que a utopia não é para ser concretizada, a utopia é o horizonte que estimula a
caminhada dos seres humanos. Neste sentido, certos marcos e personagens históricos
(Darcy Ribeiro, sem dúvida é um deles) nos inspiram e nos provocam a avançar na
construção de uma Humanidade para todos os humanos.
Nessa direção civilizatória, tanto a Universidade de Brasília (UnB) quanto a
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) não foram
diferentes de tantas outras utopias históricas pelas quais sempre valeu (e vale) a pena
lutar, conforme as palavras precisas e necessárias de Eduardo Galeano (2007, p. 310)
em sua obra Janela sobre a Utopia: “Ela está no horizonte. Me aproximo dois passos,
ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais
que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para
caminhar.
Darcy Ribeiro propôs uma reforma estrutural nas universidades latino-americanas,
alertando que a universidade deveria ser um espaço autônomo de pensamento, como
uma utopia a ser perseguida. Em seu modelo de universidade, faz a distinção entre
um fato, no mundo das coisas” e “uma utopia, no mundo das idéias. Como vimos,
sua proposta é baseada em oposição ao que existe, e teria de ser assim para superar o
atraso de nossa sociedade: uma universidade proporcionadora de desenvolvimento
autônomo em face de um cenário de dependência e colonização cultural.
Nessa tensão entre “o que existe” e o “que precisa existir”, ele aposta na segunda,
pois em seu entendimento, a Universidade-Necessária deve fomentar os desejos e as
demandas concretas da sociedade e, mais ainda, deve direcioná-las criticamente,
visando à superação das crises estruturais permanentes. Tal universidade deve
apontar como função social formar os quadros que irão ter atuação efetiva no
desenvolvimento autônomo do país. Desta forma, em sua análise, é imperativa a
responsabilidade dos intelectuais (que estão sendo formados na universidade), no
sentido de contribuir para desnaturalizar o nosso aparentemente eterno atraso.
Desta forma, entendemos que as reexões darcylianas sobre a universidade
nos fornecem pistas importantes para que possamos pensar-agir em uma direção
emancipatória, em que a economia-mercado seja apenas uma das peças que comem
a vida moderna, e não o foco central. Assim, poderemos ousar um teorizar-fazer
em direção a outro caminho, que não esteja centrado em processos estritamente
mercantis.
Nesse caminho tortuoso (com avanços e recuos), é importante elaborarmos
estratégias (e as universidades podem contribuir muito nessa direção, com ensino,
pesquisa e extensão) que possam contribuir e viabilizar transformações sociais que
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atendam às demandas da população, sobretudo dos grupos historicamente excluídos
e subalternizados, rompendo com este modelo estrutural de privilégios para as
frações de classe que estão no topo da pirâmide social.
Para Darcy Ribeiro, ao pensar a Universidade Necessária, prossionais e cientistas
formados nessa instituição devem fazer de sua indignação a força para desvelar a
nossa condição de periferia e atraso histórico, para que a partir da compreensão
dessas estruturas de dependência (intencionalmente construídas) possamos elaborar
uma consciência nacional autônoma. Dessa consciência, nascem os fundamentos
necessários para o ingresso do “país subdesenvolvido” em uma fase civilizatória que
assimila a cultura dominante, mas não ignora a originalidade e as potencialidades de
seu povo. Essa ruptura signica uma capacidade de traduzir a vontade de um povo,
num sentido efetivo de nação, de completude.
Ao longo deste artigo, nos acompanhou a seguinte indagação: esses
questionamentos e tantos outros ainda são válidos para a universidade dos nossos
dias? Acreditamos que sim, no sentido de construir estratégias que favoreçam a
universidade a repensar as bases sociais em que se fundamenta. Assim como no
passado, não será por via da dependência externa ou da dependência local, sob a
hegemonia de grupos dominantes com interesse múltiplos e distanciados do povo,
que conseguiremos atingir a Universidade Necessária. A política de desenvolvimento
autônomo exige o máximo de lucidez e de intencionalidade, tanto em relação à
sociedade nacional como no correspondente à universidade, e só pode ser executada
mediante cuidadoso diagnóstico de seus problemas.
Cabe ressaltar que passados os tempos de deslumbramento com a “modernização,
hoje seguramente identicamos que a sua defesa imediata não tem ressonância, pois
é fácil constatar as consequências perversas dessa “modernização, com a produção
dos bens apropriada por setores minoritários da sociedade, que utilizaram o poder
midiático para silenciar propostas alternativas e plausíveis de outras possibilidades
societárias. Essa nova (des)ordem global nos desaa a reetir e a recuperar o
arcabouço teórico e as ações concretas dos intelectuais que acreditaram na construção
de projetos de nações autônomas. Darcy, com todas as críticas possíveis (e não foram
poucas), foi um desses personagens que ousaram pensar e falar, de igual para igual,
com as nações que estavam no centro decisório do mundo, uma fala que tinha como
objetivo central a autonomia do seu próprio país, de sua nação tropical e mestiça.
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