Edição Atual
APRESENTAÇÃO
Ainda na esteira do processo de internacionalização do direito que consolida-se como fenômeno essencial do mundo contemporâneo, resultante da integração econômica global e da reconfiguração das relações internacionais, verificou-se que no segundo semestre de 2024, tal fenômeno mostrou-se ainda mais crucial diante de crises humanitárias, mudanças ambientais drásticas e avanços no reconhecimento de direitos globais.
Dentre os fatos marcantes ocorridos neste período, destacam-se os diversos desastres ambientais, especialmente os provocados pelas mudanças climáticas, que ocasionaram aumento significativo no fluxo migratório. Embora a questão dos deslocados ambientais seja amplamente discutida em fóruns internacionais, até o momento, não há um tratado global específico dedicado exclusivamente a essa matéria.Este tratado buscaria abordar lacunas legais relativas a migrações forçadas por eventos climáticos extremos, fornecendo proteção jurídica a milhões de indivíduos afetados. Essa medida seria especialmente relevante diante das catástrofes ambientais registradas no semestre, incluindo os ciclones devastadores no Sudeste Asiático e os incêndios na Amazônia e na Califórnia, que reforçaram a necessidade de normas internacionais efetivas para a justiça climática.
No campo dos direitos humanos, o Tribunal Penal Internacional (TPI) avançou significativamente ao emitir mandados de prisão contra líderes de grupos envolvidos em crimes de guerra nas crises de Gaza e no Sahel. Em novembro de 2024, a Corte Interamericana de Direitos Humanos também proferiu uma decisão histórica em defesa de povos indígenas da América Central, condenando práticas de desapropriação territorial associadas a megaprojetos econômicos, reafirmando o direito à autodeterminação e à consulta prévia.
O direito ambiental, por sua vez, ganhou força adicional com as recomendações da ONU para garantir transição energética justa e sustentável, um esforço multilateral para padronizar e acelerar a transição energética em países em desenvolvimento. Em relatório publicado em setembro de 2024, especialistas e governantes, buscam garantir que crescente demanda por minerais essenciais para energia renovável seja conduzida de forma equitativa e sustentável. O relatório destaca justiça, direitos humanos e transparência como pilares para um desenvolvimento econômico global responsável e inclusivo
A nível europeu, a Convenção Europeia de Direitos Humanos (ECHR) esteve no centro dos debates após a decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEHD) em favor de ativistas climáticos que, em setembro de 2024, haviam processado Estados-membros da UE por falhas em cumprir metas ambientais do Acordo de Paris. A decisão judicial, que reforça a obrigação dos Estados de proteger o direito à vida em face das mudanças climáticas, representa um precedente fundamental na interseção entre direitos humanos e direito ambiental.
Por outro lado, a diplomacia global experimentou tensões e progressos. Vários representantes de países árabes e europeus, incluindo o chefe da diplomacia da UE, Josep Borrell, discutiram, em setembro, em Madri como avançar na chamada solução de dois Estados para o Oriente Médio, que propõe a criação de um Estado palestino que conviva com Israel. Embora a implementação de acordos ainda enfrente desafios, o evento marcou um ponto de articulação entre direito internacional humanitário e direitos humanos.
Por fim, no cenário africano, mesmo completando 43 anos em 2024, não houve avanço significativo na revisão da Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos. Uma das discussões antigas visa a criação de um protocolo adicional com o objetivo de garantir a proteção de mulheres em conflitos armados, refletindo os impactos contínuos dos conflitos no Sahel e em outras regiões.
A INTER – Revista de Direito Internacional e Direitos Humanos, portanto, reafirma seu papel enquanto espaço essencial para análises críticas e contemporâneas, evidenciando as múltiplas facetas do direito internacional diante de novos e urgentes desafios que emergiram ao longo de 2024.
Para abrir o presente número, a INTER apresenta uma seleção de estudos que abordam temas centrais do Direito Internacional edos Direitos Humanos, refletindo sobre os desafios e avanços ocorridos no segundo semestre de 2024.
Abrimos com o artigo Brief reflections on the Russian-Ukrainian war and the international and transversal protection of migrant children's rights de Vinícius Abrantes e Thiago Giovani Romero. O estudo investiga as iniciativas globais e regionais para a proteção das crianças migrantes em situações de deslocamento forçado, oferecendo uma perspectiva crítica sobre o papel das agendas públicas e políticas internacionais nesse contexto.
Na sequência, Amina Welten Guerra, em A conexidade entre tratados internacionais, costumes e princípios gerais de direito, explora a interconexão entre as principais fontes do Direito Internacional. O trabalho propõe uma abordagem integrada que fortalece a compreensão da teoria internacionalista e oferece novas perspectivas sobre os subsistemas normativos.
Túllio Vieira de Aguiar analisa em O direito à habitação no contexto das normativas internacionais os desafios e avanços na implementação do direito à habitação como Direito Humano fundamental, sublinhando a necessidade de políticas públicas eficazes e cooperação internacional para enfrentar desigualdades.
Benedetta Arrighini, no estudo Encouraging cooperation with common understanding: how the eu and mercosur define the rule of law?, aborda comparativamente o conceito de Estado de Direito na União Europeia e no Mercosul, destacando as possibilidades e os desafios para o diálogo inter-regional em tempos de retrocessos regionais.
Rafael Fonseca Melo e Lucas Carlos Lima trazem uma análise do caso Nicarágua v. Colômbia II em O caso Nicarágua v. Colômbia II e a identificação do costume internacional relativo à delimitação da plataforma continental para além das 200 milhas náuticas. O artigo enfatiza a metodologia da Corte Internacional de Justiça para identificar regras costumeiras e suas implicações para o Direito Internacional Marítimo.
Doglas Lucas e Eduarda Franke Kreutz, em Os direitos das pessoas com deficiência e o impacto das decisões proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, exploram o impacto das decisões paradigmáticas da Corte Interamericana na formulação de políticas e legislações protetivas para pessoas com deficiência na América Latina.
The right to food as a human right in the international order and addressing food insecurity: the lessons from Josué de Castro for combating hungerde André Luis Valim Vieira e Rodrigo Rezende Batista revisita as contribuições de Josué de Castro para a discussão do direito à alimentação. O artigo sublinha a importância de fortalecer esse direito como questão central na ordem internacional.
No estudo A usurpação de territórios Mapuche em meio ao expansionismo (neo)liberal, Lays Serpa de Souza de Oliveira e Silva e Márcio Luis da Silva Carneiro destacam os impactos do expansionismo neoliberal nos territórios Mapuche, propondo soluções sob a ótica do Direito Internacional das Catástrofes.
Audiolivro versus Livro Falado: como a diferença entre esses termos é relevante para o Tratado de Marraqueche e o direito brasileiro, de Barbara Teles Araujo da Silva, discute as implicações legais e práticas das distinções entre audiolivros e livros falados, contribuindo para maior clareza no campo da acessibilidade e direitos autorais.
Finalizando este volume, apresentamos o artigo As catástrofes climáticas: a necessidade de uma interpretação sistêmica do Direito Internacional baseada no Direito Internacional Ambiental, no Direito Internacional dos Direitos Humanos e no Direito Internacional das Catástrofes de Sidney Guerra, André Ricci de Amorim e Brenda Maria Ramos Araújo. O texto aborda como o ano de 2023, o mais quente já registrado, trouxe desafios únicos e urgentes para o Direito Internacional. Partindo das consequências das mudanças climáticas, como secas, enchentes, aumento do nível do mar e redução da biodiversidade, o artigo defende uma abordagem sistêmica que integre o Direito Internacional Ambiental, o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Internacional das Catástrofes. Essa integração, segundo os autores, é essencial para superar lacunas jurídicas e garantir soluções efetivas para prevenir, mitigar e superar catástrofes climáticas, tendo como objetivo central os interesses da humanidade.
A equipe editorial da INTER celebra os resultados alcançados e renova seu compromisso com a qualidade e relevância acadêmica. Desejamos a todos uma excelente leitura!
Rio de Janeiro, 30 de dezembro 2024.
Sidney Guerra – PhD
Professor Titular da UFRJ
Editor da INTER – Revista de Direito Internacional e Direitos Humanos