COVID-19: UMA PERSPECTIVA DO OLHAR DO FEMININO
Profª Dra. Luciana de Almeida Campos, Professora do curso de Licenciatura em Pedagogia ISERJ/FAETEC. Pós Doutoranda em Ciências Sociais, Doutora em Serviço Social, Psicopedagoga, Neuropsicóloga, Psicóloga, Pedagoga. Email: luciana.campos360@gmail.com
Profª Dra. Lucy de Almeida Oliveira, Professora do curso de Licenciatura em Pedagogia ISERJ/FAETEC. Doutora em Psicologia Social, Especialista em Inclusão,Psicopedagoga, Pedagoga. Email: lucyalmeida2004@yahoo.com.br
A chegada do Coronavírus nos lembra que a incerteza permanece um elemento inexpugnável da condição humana. Todo o seguro social em que você pode se inscrever nunca poderá garantir que você não ficará doente ou será feliz em sua casa. (Edgar Morin)
Os pintores renascentistas pediam que seus modelos posassem para que pudessem ser retratados por seus pincéis. A ausência de muitos movimentos, facilitava a tarefa do artista. As autoras deste artigo, se propõem a uma façanha: pintar um quadro com pessoas em movimento, ou melhor: iniciar reflexões sobre uma crise mundial que está em eclosão e na qual ambas estão envolvidas, como cidadãs e mulheres.
A COVID-19, ou o Cornoavírus acometeu toda a população mundial. Em 30 de janeiro de 2020, a OMS indicou que esta doença alcançou Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional e em 11 de março de 2020, foi finalmente considerada uma pandemia. Trata-se de um vírus com nível de letalidade considerado baixo, mas que por ter alto grau de contágio, rapidamente espalha-se, favorecendo uma demanda desproporcional à capacidade dos sistemas de saúde. A doença começou na China e rapidamente alcançou a Europa e os demais continentes. Até a data da conclusão deste artigo, 126.681 mortes foram contabilizadas mundialmente. Com a intenção de minimizar o colapso nos sistemas de saúde, medidas de confinamento coletivo, com a suspensão de aulas e trabalhos presenciais foram tomadas. Com isso, as famílias estão no Brasil, a cerca de 1 mês, vivendo confinadas em suas residências.
As mulheres e a vida familiar diante do confinamento
A filósofa estadunidense Judith Butler (2013) questiona o limite da categoria mulher. Reflete que no século XXI seria impossível falar da “mulher universal”, como se falava no passado por exemplo. Isto porque estamos diante de uma diversidade de mulheres, com seus atravessamentos de classe, raça e cultura. O modelo de feminilidade utilizado no passado, como categoria unívoca, estava a serviço de uma heteronormatividade vigente.
A compreensão das relações familiares e o papel da mulher neste contexto é complexa, pois possui variáveis e fatores que se diferenciam em cada situação ou momento vivido. Hoje, a relação do feminino com o biológico, não é mais vista como uma relação direta, uma vez que nascer em um corpo de homem não necessariamente irá se converter compulsoriamente em um modelo de masculinidade. O mesmo vale para o corpo biológico de mulher, que não necessariamente resultará na expressão de comportamentos identificados com o feminino.
É neste sentido que buscamos iniciar algumas reflexões sobre responsabilidades como cuidar dos afazeres domésticos e da criação dos filhos na maioria das vezes ficam como encargo compulsório da figura feminina. Embora as mulheres estejam atuantes no mundo do trabalho, inclusive destacando-se em vários contextos em relação ao desempenho masculino, será importante refletir em que medida estas atribuições do doméstico ao universo feminino mudaram.
Será que a carreira fica em segundo plano, em detrimento da manutenção da vida familiar? Será que ainda é vista como responsabilidade feminina que a harmonia ganhe espaço neste núcleo, levando estas mulheres a acumularem mais responsabilidades e funções, abarcando os papéis de esposa, mãe, profissional, dona de casa?
O arquétipo da mulher que retém a sabedoria, o bom senso e a sensibilidade não se descontrói com o passar do tempo. Dotada de bom senso, é ela quem consegue antever as situações conflituosas, contornando e sutilmente direcionando soluções. Neste sentido, ESTÉS coloca que:
A compulsão das mulheres no sentido de ‘tudo curar, tudo consertar’ é uma importante armadilha formada pelas exigências a nós impostas pelas nossas próprias culturas, especialmente as pressões no sentido de que provemos, que estamos aí sem fazer nada, ocupando espaço e nos divertindo, mas sim, que temos um valor resgatável. (Estés, 1994, p. 354)
A luta das mulheres por novas conquistas e reconhecimento de sua função no mundo envolve seu lugar no seio da família: são filhas, mães, esposas, avós, que procuram ainda desvencilhar-se de velhas crenças.
É neste contexto que surge a pandemia, em pleno século XXI, desafiando velhos paradigmas, levando famílias a viverem em confinamento, a se relacionarem obrigatoriamente em tempo total. A COVID-19 devolve uma estrutura familiar antiga, nunca vivenciada na modernidade. Ela obriga a que se retomem papéis no contexto doméstico, privado, particular.
Aliados a esta estrutura, associam-se sentimentos como o medo, a fragilidade, a insegurança. Existe um inimigo à solta, e mais uma vez cabe à figura feminina controlar sua prole. Neste momento, trabalho, dinheiro, sexo, tudo é relegado a um segundo grau de importância e é hora de recompor uma velha estrutura que já não existia mais.
De acordo com Perrot (2007), destacar as mulheres significa verificar que elas têm uma história da qual são também sujeitos ativos. A autora, que analisa a condição feminina, busca dar visibilidade à luta de mulheres em diferentes espaços, tanto no público quanto no privado. A autora analisa a disseminação da figura feminina sem que seja aprofundada sua essência. São imagens que representam, na maioria das vezes, o imaginário masculino. Basta analisar a maneira pela qual os pintores percebiam a feminilidade. Perrot coloca, ainda, em relação às mulheres.
Elas são descritas, representadas, desde o princípio dos tempos, nas grutas da pré-história, onde a descoberta de novos vestígios das mulheres é uma constante, e chegando à atualidade nas revistas e nas peças publicitárias contemporâneas. Os muros e as paredes da cidade estão saturados de imagens de mulheres. Mas o que se diz sobre sua vida e seus desejos? (Perrot, 2007, p. 24)
É neste sentido que buscamos analisar o que pensam as mulheres sobre o confinamento obrigatório, considerando-a tradicionalmente como figura central estruturante do contexto familiar. Assim, a constituição feminina expande-se em diferentes aspectos, dentre os quais estão a espiritualidade, o conhecimento, a reinvenção do cotidiano.
Assumindo de forma mais presente o papel de esposa, mãe, dona de casa, profissional, a mulher expande sua atuação e ocupa este novo espaço: ela continua se movimentando. É necessário se reinventar diante do inimigo à espreita, e ela tenta se disciplinar diante do perigo da pandemia.
Diante do desmoronamento estrutural de seu cotidiano, a mulher necessita se reinventar, criar novas estruturas para a manutenção de seu contexto familiar. Viver em confinamento exige um refazer constante. As táticas de sobrevivência diante do isolamento social exigem que os grupos familiares se reestruturem diante da convivência permanente e inevitável. São mães e pais que deixam de sair para o trabalho, crianças que ficam sem creche nem escola. Não tem passeios, nem divertimento fora do lar. Devem ser recriadas novas formas de convivência e manutenção do equilíbrio emocional.
Método
Essa pesquisa foi realizada com 1011 mulheres, através do questionário Google Forms e compartilhado pelo aplicativo WhatsApp entre os dias 13 e 14/04/2020.
Essa pesquisa destaca o papel feminino em meio ao confinamento social obrigatório devido a pandemia do COVID-19. Nossa hipótese inicial era de que este confinamento trouxesse modificações de base no seio familiar, e ainda verificar como o papel da mulher se apresenta nessa nova organização.
Análise dos Dados
O questionário alcançou 1011 mulheres, sendo 58,6% pertencendo à faixa etária de 31 a50 anos de idade. Destas, a maioria, 66,1% é casada e 11,8% é separada ou divorciada. 94,3% residem na região sudeste do Estado do Rio de Janeiro. 20 respostas correspondem a mulheres que vivem fora do Brasil. Com renda familiar predominantemente na classe B com 46% das respostas, temos também elevado número de mulheres situadas na classe C, totalizando 31.6%. Os menos percentuais estão concentrados nas classes A 9,3% e D/E com 13,2%. As respondentes, em sua maioria, possuem formação de nível superior, sendo que 45,6% possuem ainda pós-graduação.
Constatamos que 47% das entrevistadas trabalham em Home Office, seguindo 22,9% que não têm como trabalhar em casa. Com o confinamento e as famílias convivendo ininterruptamente juntas do ponto de vista do espaço físico, a maior parte declara que as relações familiares estão boas (31,2%) e um percentual próximo, 30,4%, diz que as relações estão inconstantes: ora boas, ora ruins. Especificamente com relação à vida conjugal, a maior parte, 33,6% diz que está normal. 21,5% diz que está inconstante e apenas 11,6% diz que está ótima. Com relação à frequência sexual, 65,9% diz que a rotina sexual não foi alterada no confinamento, 23,5% diz que a intensidade diminuiu e 10,5% experimentou um aumento de encontros sexuais.
Com a família full time em casa, a quantidade de afazeres domésticos se multiplica e nos interessou verificar o impacto disto na rotina das famílias. A maior parte das mulheres 27,4% diz que realiza trabalhos domésticos maiores que o restante da família, 16,6% diz que as tarefas foram reorganizadas, mas que ainda assim trabalha mais que o (a) parceiro(a), 16,6% divide as tarefas com o (a) parceiro (a) e também com os filhos. Apenas 10% diz que as tarefas domésticas são divididas de modo justo na família. O acompanhamento das tarefas pedagógicas, já que a maior parte das escolas particulares continua tendo aulas online fica em sua maior parte por conta da mulher, com 34,7% e apenas 11,9% dos (das) parceiros (as) dividem igualmente esta responsabilidade.
Quanto à espiritualidade das mulheres consultadas, a maior parte (54,7% ) sente-se mais aguçada neste momento de crise, contrapondo-se a 42,8% que não verificou mudança nesta dimensão com o confinamento. Recebemos uma observação crítica de que não incluímos espaço para o ateísmo, como se a espiritualidade fosse uma dimensão compulsória da vida.
A vida social tem sido cultivada apesar do distanciamento físico, pois 58% tem buscado contato diário com amigos, 32% faz contato eventual com os amigos e 10% se afastou dos amigos.
O evento que mais preocupa as mulheres que responderam à pesquisa é relacionada à duração deste tempo de confinamento (48%), seguindo a o desemprego como a segunda preocupação (19%), 11,7% preocupam-se com o aumento do próprio estresse e ansiedade e 11,4% com a estabilidade emocional das pessoas em geral.
Grande parte das mulheres notou um acréscimo no índice de ansiedade: 77,3% em contraposição a 22,7% que não verifica aumento de ansiedade.
O estresse e a ansiedade decorrentes do confinamento aumentam, o que é preocupante. As incertezas com relação ao futuro e as mudanças que ocorreram de maneira rápida e inesperada, favorecem o quadro e acreditamos que ainda estamos em um momento de adaptação às novas exigências dessa nova forma de viver. Considerando que muitas pessoas já traziam problemas emocionais, o agravamento da situação é uma realidade.
A maioria de 91,1% é favorável à continuidade da medida de confinamento como estratégia de diminuição do contágio, contra 8,9% que não é favorável. Finalmente, 55, 8% das mulheres estão satisfeitas com as medidas de políticas públicas para o enfrentamento da crise promovidas em sua cidade, ao passo que 44,2% não está satisfeita.
Quanto à continuidade do confinamento social diante da pandemia, 91,1% das mulheres entrevistadas se coloca a favor do confinamento para diminuir a transmissão da COVID-19. 55,8% estão satisfeitas com as políticas públicas adotadas e 44,2% se manifestaram insatisfeitas.
Conclusão:
Em nossa pesquisa, quando nos referimos a mulheres, cabe colocar que nos referimos ao sentido de gênero, não nos limitando à heterossexualidade. Assim, a pesquisa pressupõe respeito a questão da diversidade de gênero.
A maior parte de nossas colaboradoras reside na região Sudeste do Brasil, possui boa formação acadêmica e estão situadas nas classes médias da população: 79,6% integram as classes B e C. Podemos inferir que estas famílias, cujas mulheres em sua maior parte estão inseridas no mercado de trabalho, contam com a prestação de serviços de trabalhadoras domésticas ou diaristas para as atividades cotidianas. Na presença desta mão de obra, os conflitos decorrentes da injusta divisão de tarefas domésticas sobrecarregando as mulheres, fica atenuada. Com a retirada destas prestadoras de serviço do cenário, teríamos uma ótima oportunidade de reestruturar o cotidiano das famílias. Contudo, a partir destes dados, podemos verificar que as famílias continuam reproduzindo o modelo patriarcal sobrecarregando a maior parte das colaboradoras a terem de se dividir entre tarefas de trabalho, tarefas domésticas e educação de filhos, o que nos leva a verificar uma continuidade dos modelos tradicionais de organização familiar.
Biroli (2018) afirma que as mulheres costumam dedicar o dobro do tempo às tarefas domésticas e cuidado com os filhos que os homens. Segundo a autora, esta constatação é central para compreender a manutenção e permanência das desigualdades de gênero, sempre levando em conta a conexão que gênero está relacionado com classe, raça e cultura. Biroli considera esta questão central, pois argumenta que as mulheres não estão excluídas de participar da esfera pública, contudo já entram em desvantagem nas instituições pela sobrecarga que experimentam no seu cotidiano. Nos espaços púbicos de gestão, as mulheres possuem renda média 25% inferior aos homens, apesar de terem crescente acesso à educação formal. Isto favorece uma qualificação diferenciada entre os trabalhos de homens e mulheres.
Será que no imaginário dos filhos, ocorre que “se o homem se dedica exclusivamente ou majoritariamente ao trabalho e a mulher se desloca entre os afazeres da casa e do trabalho, seria o trabalho do pai mais valoroso?” Quanto a esta questão, Biroli (2018) afirma que o trabalho doméstico sempre se inscreveu na ordem da “gratuidade” exercida em favor dos homens. Vale lembrar a demora em equiparar o trabalho doméstico às demais categorias de trabalhadores, sugerindo a percepção de trabalhos domésticos como “algo menor”.
Infelizmente, os dados revelam que grande parte das mulheres na situação de confinamento, sentem-se obrigadas a afastar-se de sua rotina de trabalho, assumindo mais e mais deveres, o que se traduz em tensão. Diferentes questionamentos surgem, em relação ao papeis exercidos no contexto familiar. A mulher volta a deixar o espaço público para atuar de modo mais intenso no espaço particular. A mulher, que antes transitava em dois mundos, agora deve reconverter suas energias para uma espécie de reminiscência, que nada tem de nostálgica ou romântica.
Morin (2020, p. ), ao discorrer sobre a pandemia, nos traz a contribuição de que “as certezas são uma ilusão”: “O momento em que vivemos tende a convencer cidadãos e pesquisadores de que as teorias científicas são biodegradáveis e que a ciência é uma realidade humana que, como a democracia, se baseia em debates de ideias, embora seus métodos de verificação sejam mais rigorosos”. A pandemia nos faz caminhar de mãos dadas com a incerteza. As certezas sobre a ciência, sobre segurança e estabilidade financeira, a estabilidade da rotina, das relações familiares, afetivas e sociais e a segurança sobre nós mesmos, nosso equilíbrio e capacidade de autorregulação emocional está em xeque.
Morin prossegue encorajando a “Esperar o inesperado” e nos firmarmos na convicção que as únicas certezas possíveis se ancoram na solidariedade, amor, amizade e comunhão. Mas como tudo isso dialoga com nossa pesquisa? Embora possa não parecer, nem tudo são mensagens de pessimismo. Nossa sondagem pode incipientemente apontar para boas novas. Vide um pequeno percentual de casais cuja relação conjugal está ótima: 11,6%, com aumento de 10,5% de encontros sexuais. Outro ponto positivo: 16% das entrevistadas mencionam uma justa divisão de tarefas domésticas e 11,9% mediam em colaboração equânime com o parceiro a vida pedagógica dos filhos. Não temos elementos para indicar que existe uma correlação destes itens, haja vista a falta de instrumentos estatísticos para esta aferição. Contudo, cultivamos a crença de que novos arranjos conjugais estão sendo gestados. Ou seja, novos homens estão sendo estruturados lado a lado com as novas mulheres. Oxalá que novas reflexões e estudos possam ser impulsionados a partir deste breve flash da realidade!
Referências
BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Editora Boitempo, 2018.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
BUTLER, Judith. Fundamentos Contingentes: o feminino e a questão do “pós modernismo”. Cadernos Pagu. Campinas, 1998. Acessível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8634457, acesso em 13/04/2020.
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
MORIN, Edgar. As certezas são uma ilusão. Acessível em https://www.fronteiras.com/entrevistas/edgar-morin-as-certezas-sao-uma-ilusao?fbclid=IwAR1BVU1K8vR3IqiXwfpDzq0ouAFot_ckfDYffuWAFwPL_S0npNyFzE1Ang, acesso em 15/04/2020.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875, acesso em 13/04/2020.