COVID-19: A FALÉSIA É ALI

2020-05-20

Por Vantuil Pereira - Doutor em História Social/UFF. Professor Associado do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH/UFRJ). Docente do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos (PPDH).

Homenageio os artistas Aldir Blanc, Ciro Pessoa, Manu Dibango, Ellis Marsalis Jr., Wallace Roney, Bucky Pizzarelli, John Prine, Lee Konitz  A arte abre caminho para pensarmos o novo, para pensarmos a livre expressão no seu sentido mais sublime. A arte liberta.

 

 

Em dezembro de 2019 cientistas chineses da região de Wuhan davam notícias da existência de um novo vírus que vinha acometendo seus moradores. Embora o caso fosse inicialmente reprimido pelas autoridades daquele país, rapidamente a epidemia se espalhou, contaminando mais de 80 mil pessoas em apenas noventa dias na China transformando-se, meses depois, em uma pandemia que, até meados do mês de maio de 2020, quando escrevemos o presente texto, a infestação já atingiu quatro milhões e setecentas mil pessoas no mundo em mais de 150 países[1], causando quase 310 mil mortes.

Na história recente do planeta, nenhum fato foi tão impactante a ponto de frear as economias mundiais, a exemplo do que ocorreu com os Estados Unidos, Inglaterra, França, Espanha, Alemanha e a China estão ou estiveram com suas economias paralisadas. Segundo números mais recentes, há uma expectativa de encolhimento econômico mundial na ordem de 5,5%. Países como a China, que projetavam um crescimento na ordem de 6% em 2020, agora estão prevendo um crescimento de 4%. Trata-se de um cenário ainda com perspectivas positivas, considerando que estamos apenas no começo da pandemia em países como os Estados Unidos, Japão e Inglaterra.

Falando de uma maneira diferente, considerando o quadro atual, tratamos de um evento que poderá produzir um movimento histórico ou um acelerar histórico que nos projetará ou para um melhoramento ou, como tem argumentado alguns estudiosos, para caminhos autoritários, para a falésia, que estaria logo ali.

De imediato, podemos adiantar algumas transformações, sejam elas de impactos mais gerais ou mais restritos. A de caráter mais geral diz respeito ao lugar que o Estado passa a ocupar, no sentido de conter a pandemia em territórios nacionais. Mas ele também se tornou um agente determinante (como nunca deixou de ser) no ordenamento mundial, um propulsor de desenvolvimento econômico e social, à semelhança dos esforços empreendidos no Pós-Segunda Guerra Mundial. O Estado se torna um ente central para não só acudir as populações, como também o principal promotor da economia.

É claro que sempre existirá o risco deste mesmo Estado, em um futuro não muito distante se tornar autoritário, centralizador da vida e agente repressor em dimensões já conhecidas por todos, como foi o caso da Alemanha nazista, da União Soviética, de regimes asiáticos como o Camboja (sob o domínio de Pol Pot) ou repressões como as promovidas no mundo Ocidental (sob direção dos Estados Unidos), sendo recentemente Guantánamo a sua principal expressão, bem como o apoio a regimes e ditaduras militares no Cone Sul, no Oriente Médio ou na África do Sul com o regime do apartheid.

Do ponto de vista mais restrito, podemos notar dois aspectos. O primeiro diz respeito ao campo científico. Assim, em um momento de descrédito do mesmo em países como o Brasil, a ciência ganha uma centralidade, visto que ela se articula a partir da racionalidade e da pesquisa, elementos centrais para a solução de problemas de curto e de médio prazo. Em segundo lugar, devemos ressaltar que o campo científico possui um lugar privilegiado para o seu desenvolvimento: a universidade. Ela retoma um protagonismo determinante e que deve ser ressaltado. Basta notarmos, ainda no caso brasileiro, o protagonismo de professores de instituições como a UFRJ, a FIOCRUZ, USP e outras agências de pesquisa.          

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Estamos diante de um cenário pessimista e incerto para as economias hegemônicas, a questão a saber é o tamanho do impacto que os acontecimentos reservam para países dependentes como o Brasil[2]. Ao nosso juízo, menos importante do que analisarmos a questão sob o prisma da economia é tratarmos da questão social. Sim, este ainda é o principal fator de mudança que a humanidade conhece. São os homens que fazem a História.

À semelhança de acontecimentos anteriormente mencionados, tais como o 14 de julho francês, ou os eventos de 1917, na Rússia, o cenário social, especialmente no Brasil, parecer ser muitíssimo desolador. Isso porque, embora a Covid-19  tenha se caracterizado até agora como uma doença de classe média[3], existe um grande temor das nossas autoridades, nos níveis municipal e estadual, sobre o seu impacto em bolsões de miséria e de desigualdades sociais, representadas pelas favelas no Brasil (especialmente em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Fortaleza e Salvador)[4], razões resumidas por um pesquisador da seguinte forma: “a epidemia começou com uma elite, majoritariamente branca, mas que tem sua cozinheira, sua faxineira, seus cuidadores, majoritariamente negros"[5].

Embora o vírus se alastre para todos os segmentos sociais, ele deixa de ser democrático na medida em que atinge parcelas vulneráveis da população de maneira muito mais drástica para a Covid-19. O que vale dizer que, se ela pode atacar qualquer um, seus impactos serão maiores na população pobre pois a dificuldade de acesso aos servidos públicos de saúde e as condições de vida precárias aumentam a letalidade da doença.

Se a experiência de outros países servir de comparação para este contexto, nota-se nos Estados Unidos, por exemplo, que os problemas históricos e estruturais colocam as populações pobres e negras como as vítimas preferencias da doença.  Segundo dados apontados, em cidades como Chicago (norte dos Estados Unidos), os afro-americanos são responsáveis por mais da metade dos que tiveram resultados positivos e 72% das fatalidades relacionadas à Covid-19, ainda que eles representem pouco menos de um terço da população. No estado da Louisiana (sul dos Estados Unidos), embora os negros representem 33% da população, o número de mortes ocasionadas pela Covid-19 representa 70% daquela população[6].

Embora ainda seja cedo para confirmamos a similaridade dos dados, a tendência já começa a ser notada no Brasil. De acordo com dados do Ministério da Saúde divulgados em 10 de abril último, pretos e pardos são 1 em cada 4 hospitalizados por Covid-19, mas 1 em cada 3 mortos[7]. Em dados mais recentes as coisas ficaram mais claras.

Segundo informações levantadas pelo jornal Folha de São Paulo, enquanto as primeiras vítimas da Covid-19 eram majoritariamente brancas, dois meses depois os números mostram que houve um deslocamento acentuado sobre a parcela negra da população. No relatório do Ministério da Saúde de 8 de maio[8], os brancos perfaziam um total de 34% dos óbitos e os negros 35%, sendo que, no mês anterior os dados eram da ordem de 40 e22% respectivamente[9]. Isto sem contar com a subnotificação que, supomos, impacta mais sobre a população pobre e preta do que os brancos. Mostra, por outro lado, o avanço já evidente da epidemia para as periferias.

Existe um agravante que deve ser mencionado, os dados sobre cor para registro da Covid-19 só passou a ser considerado a partir dos relatórios do mês de abril, isto é, um mês após o início da pandemia, o que eclipsa parte das informações necessárias para o enfrentamento e adequada análise do seu impacto. Mais. Trata-se de uma forma clássica de se escamotear e fazer valer uma forma de racismo, através da invisibilidade física e numérica dos dados e das pessoas vítimas de determinadas situações, sendo a hora e a vez daqueles que são vítimas dessa doença.

 

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Qual seria a explicação para isto? Conforme sugerimos acima, trata-se da expressão de condicionantes que pode ser compreendida como um conjunto de manifestações e práticas que relaciono com o que se denominou chamar de racismo institucional. Ao longo da nossa história, pretos e pardos em estão, em sua maioria, em condições degradantes expressada pelo baixo acompanhamento de saúde (que resulta em doenças crônicas como diabetes, hipertensão, tuberculose e doenças renais), nas condições de vida (que resulta em uma alimentação inadequada, causando desnutrição e obesidade, baixa condições de higiene) e nas condições de trabalho (que resulta em um distanciamento cada vez maior entre o trabalho e a residência).

Entende-se por racismo institucional

Processos de discriminação indireta que ocorrem no seio das instituições, resultantes de mecanismos que operam, até certo ponto, à revelia dos indivíduos. A essa modalidade de racismo convencionou-se chamar de racismo institucional, em referência às formas como as instituições funcionam, contribuindo para a naturalização e reprodução da desigualdade racial[10] {grifos meus].

 

Trata-se, portanto, de um mecanismo (funcional) que, por longa data, vem, aos poucos, pavimentando uma estrada de sofrimento, desrespeito e desumanização que se traduz em coisas concretas.

Segundo Jurema Werneck, inspirando-se nas formulações de Sueli Carneiro e nos ativistas negros norte-americano Stokely Carmichael e Charles Hamilton Stokely Carmichael[11], o racismo institucional atua de forma a induzir, manter e condicionar a organização e a ação do Estado, suas instituições e políticas públicas – agindo também nas instituições privadas – produzindo e reproduzindo a hierarquia racial[12].

Tais pressupostos estão ancorados em uma idealização e imaginário social que foi construído ao longo de todo o processo de escravização de negras e de negros em nosso país. Conforme já foi demonstrado pelos clássicos estudos de Florestan Fernandes, Carlos Hasenbalg e Antônio Sérgio Guimarães, tais elementos persistem em nossa sociedade, como marca de um tempo que ainda não passou[13] e são responsáveis por um conjunto de situações que se tornam mais evidentes em quadros como o enfrentado neste momento.

Outro ponto que devemos destacar diz respeito a um insistente discurso de que as instituições falham no atendimento e nos serviços prestados a determinados segmentos socais. Segundo Sales Jr. há uma aparência de fracasso institucional, que resulta da contradição performativa entre o discurso formal e oficial das instituições e suas práticas rotineiras, mas que não se detém em aspectos informais. Ainda para o autor, esta contradição seria fundamental para a entendimento dos processos de reprodução do racismo em suas mais expressas dimensões, preconceito, discriminação e desigualdade étnico-raciais[14].

Segundo Laura Cecilia Lopez, é necessário demonstrar que  o racismo institucional não se expressaria em atos manifestos, explícitos ou declarados de discriminação, ao contrário, atuaria de maneira difusa no funcionamento diário de instituições e organizações, que operam de forma distinta na distribuição de serviços, benefícios e oportunidades aos diferentes segmentos da população do ponto de vista racial. Extrapola, dessa maneira, relações interpessoais e instaura-se no cotidiano institucional, inclusive na implementação efetiva de políticas públicas, gerando, de forma ampla, desigualdades e iniquidades.

O referido racismo institucional garante a exclusão seletiva dos grupos racialmente subordinados.  Trata-se de uma forma estratégica que garante a apropriação dos resultados positivos da produção de riquezas pelos segmentos raciais privilegiados na sociedade, ao mesmo tempo em que ajuda a manter a fragmentação da distribuição destes resultados no seu interior[15]. Ele opera de forma a induzir, manter e condicionar a organização e a ação do Estado, suas instituições e políticas públicas – atuando também nas instituições privadas, produzindo e reproduzindo a hierarquia racial.

John Rex apontou algumas questões que devemos destacar. Em primeiro lugar a admissão da existência do racismo hoje é muito grande, mas prová-la é muito difícil. Contudo, a prova mais importante da sua existência está na condição de inferioridade econômica dos negros, que pode ser evidenciada por qualquer indicador social que se escolha. Em segundo é que, embora as instituições sejam administradas, governadas por pessoas não racistas ou crentes em teorias racistas, elas podem estar sujeitas ao racismo inconsciente[16].

Enquanto o racismo explícito ou declarado causa mortes, danos, feridas, destruição de propriedade, insultos contra indivíduos negros ou mesmo um sistema legal de segregação, o racismo institucional, aparece menos identificável em relação aos indivíduos específicos que cometem esses atos, mas não por isso menos destrutivo de vidas humanas.

Uma das formas mais acabadas que salta aos olhos pode ser encontrada na organização espacial de nossa sociedade, corporificada, historicamente, sob a forma de favelas no Brasil. Estes espaços passam a ser a grande preocupação das autoridades no quadro da pandemia que avança pelo país. Simultaneamente elas aproximam o que temos apontado no presente texto, o entrecruzamento saúde, condições de moradia e os fatores raciais, visto que estes espações são habitados, em sua maioria, por pretos e pardos[17].

 

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Embora se possa notar tipos e formas distintos de favelas, no tempo e no espaço brasileiro, é possível verificarmos que, quando comparamos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ocorre uma aproximação muito grande entre as condições de vida e o processo de desigualdade racial. Assim, numa combinação entre ocupação, salário e condições de moradia[18], podemos perceber que os negros moram em condições inadequadas[19] porque recebem proporcionalmente menos do que os brancos,

Embora alguns autores procurem analisar as assimetrias raciais no Brasil como parte do processo de modernização industrializante que assistimos desde 1950, é fundamental termos em mente que o passado escravista, extinto há pouco mais de 130 anos [isto é, há pouco mais de 3 gerações][20], tem um peso decisivo em nosso presente. Nas palavras de Florestan Fernandes, o passado não ficou inteiramente para trás[21].

A mentalidade, a cultura e as representações ainda são eivadas de um pensamento senhorial e patriarcal, fazendo com que ranços antigos persistam e façam reproduzir situações raciais que insistem em permanecer[22].

Combinam-se nestes espaços um conjunto de formas multivariadas de violências (simbólica, física, racial, de gênero)[23] que Luïc Wacquant caracterizou como modalidades materiais e simbólicas que não podem ser analisadas ou percebidas de maneira isolada[24], resultando daí a simbologia da violência presente nas favelas políticas de “combate aos crimes” e no encarceramento em massa que nada mais provoca do que o isolamento daquelas localidades e a complexa falta de assistência educacional, de saúde, condições sanitárias, resumidas por um alcaide como economia dos pobres com canos de esgoto[25].

Trata-se do chamado território da pobreza[26], caracterizado por Luiz Antônio Machado da Silva como espaço socialmente construído que produz um efeito perverso, combinando violência nas suas mais variadas formas, marginalização e um amplo espaço de empobrecimento de segmentos não privilegiados da população, agravado pelo histórico processo de pauperização originado a partir de um permanente e crescente desemprego, agravado nestes últimos anos.

Entendemos que a punição não se inicia com o encarceramento em massa, como analisado por Luïc Wacquant[27], mas o próprio processo de favelização se constitui, no Brasil, numa maneira de culpar os negros e os pobres pelos seus “fracassos” e pela sua condição social constitui-se em uma maneira de moralmente responsabilizá-los.

Não menos importante é a responsabilização que muitas vezes recai sobre a população favelada. Loïc Wacquant argumentou que o processo de neoliberalismo social, em curso há mais de uma década, produz uma responsabilização moral dos pobres[28].

Tudo isto é um processo composto e combinado com aquilo que denominei racismo institucional, pois são frutos ora de uma vontade explícita de determinados segmentos[29] (ciosos em garantir sua condição privilegiada)[30], ora de ações  inconsciente mas não menos danosas, sustentadas em um processo histórico que se arrasta por mais de um século, mas que não pode ser creditado ao fracasso do Estado ou na ausência de políticas públicas, como se a determinação de não agir não fosse, por si só, uma decisão política.

Trata-se de um sistema, interligado, que produz um efeito devastador sobre a vida dos pobres (em especial dos negros no Brasil). Assim, sou pobre porque sou negro, por isso não tenho acesso à uma educação de qualidade, a um sistema de saúde digno, a um trabalho qualificado e decente, e por isso acabo tendo que residir em regiões periféricas e/ou em regiões degradadas com condições precárias de sobrevivência.

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Conforme argumentou o psicólogo Daniel de Barros, a falta de estrutura, os amontoados populacionais e a quase impossibilidade de se controlar uma epidemia caracterizada pela Covid-19 põe a nu problemas que estavam em nossa sociedade mas que não percebíamos ou não queríamos enfrentar[31].

No que tange aos problemas estruturais são relevantes as deficiências no sistema de transporte que não conseguem garantir o distanciamento necessário de seus usuários. Cita-se também, em um dos mais graves, a situação do Sistema Único de Saúde que, sucateado desde os anos 1990, agora se mostra incapaz para responder às demandas que necessitamos, sobretudo na disponibilidade de leitos em unidade de tratamento intensivo e em leitos para internações que ocorrerão, se consideramos o que vem ocorrendo em países como a Espanha, Itália, Inglaterra e Estados Unidos.

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Afirmamos que a pandemia ora em curso é fruto da permanente interação humana com a natureza. Tratar-se-ia mais a um acidente de percurso (histórico) do que qualquer maquinação por parte deste ou aquele ator político. No entanto, seu impacto na economia e na vida cotidiana das pessoas é devastador, o que nos coloca diante de dilemas.

A partir deste percurso, penso que a falésia inicialmente apontada poderá ter duas interpretações. A primeira é de que a economia e a crise que a acompanha está batendo à nossa porta, revelando os interesses burgueses em jogo, e poderá tomar rumos mais inesperados, indo no sentido do que foi argumentado por Marildo Menegat, isto é, a barbárie. A crise também poderia desaguar em um Estado autoritário que, aproveitando-se do momento, aprofundaria o controle, o terror e a exceção[32].

Em um outro sentido, falésia diz respeito às vidas humanas perdidas. Conforme apontamos acima, embora a pandemia tenha atingido inicialmente segmentos variados ela (em especial a classe média), em países como os Estados Unidos e o Brasil, a doença ataca sobretudo as populações que historicamente sempre estiveram alijadas de proteção social.

Trata-se aqui de refletir sobre uma ideia apresentada por Judith Butler. A autora argumenta que uma vida só é considerada como tal se a temos como viva. Se certas vidas não são qualificadas como tal, ou se desde o começo não são concebíveis como vida de acordo com certos enquadramentos epistemológicos, “então essas vidas nunca serão vividas nem perdidas no sentido pleno dessas palavras”[33]. Daí a relevância de palavras como o “e daí?”, que demonstra uma face perversa, psicótica e extremamente exclusivista do que seja pessoas, humano e povo, aspecto revelador da face dos dirigentes que temos no país.

Diante da Covid-19 não se tem nem o direito de velar os mortos. Não se tem direito à saúde, porque não se trataria de pessoas, de vidas perdidas. Apenas algo que faria sombra à economia, à produção, ao mercado e ao “deus” dinheiro.

Dessa maneira, tudo faz parte de uma engrenagem há muito montada. Neste caso, o quadro de guerra sugerido por Butler escolhe aqueles que morrerão e os que ficarão vivos: os negros porque pobres, porque possuem a cor da pele diferente do padrão, pois “a carne mais barata do mercado é a carne negra” como nos diz a composição de Seu Jorge, Capelleti e Yuka.

Agamben, Foucault e Mbembe, com os seus conceitos de exceção, de biopolítica e de necropolítica[34] (entendidos a partir do soberano que escolhe quem deve viver e morrer) estão agora menos abstratos. Suas definições foram materializadas em um “monstro” que nos visita, que nos assombra e que nos devora.

Persistem perguntas elaboradas por Butler: o que é uma vida? Quem tem direito de desfrutá-la? [35] O nosso desafio epistemológico e de ação política é o de mudarmos quem faz esta pergunta e para quem perguntar.  

Do contrário estaremos diante de uma falésia, que porá fim à nossa humanidade.

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[1] Relatório OMS Coronavirus disease (COVID-19). Disponível em https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200519-covid-19-sitrep-120.pdf?sfvrsn=515cabfb_2. Acesso em 19/05/2020.

[2] FMI prevê contração de 5,2% do PIB da América Latina em   2020 por coronavírus. Disponível em https://jornaldebrasilia.com.br/economia/fmi-preve-contracao-de-52-do-pib-da-america-latina-em-2020-por-coronavirus/. Acesso 20/05/2020.

[3] Barra tem mais casos de coronavírus do que 10 estados e 72 países. Jornal O Globo, 13/04/2020. Disponível em https://oglobo.globo.com/rio/barra-tem-mais-casos-de-coronavirus-do-que-10-estados-72-paises-24366373, acesso em 12/04/2020. Veja também Covid-19 é mais letal em regiões de periferia no Brasil. Jornal O Globo, 03/05/2020. Disponível em https://oglobo.globo.com/sociedade/Covid-19-mais-letal-em-regioes-de-periferia-no-brasil-24407520. Acesso 03/05/2020.

[4]Correio Braziliente, 03/04/2020. Disponível em https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/04/03/interna-brasil,842068/coronavirus-favelas-e-periferias-preocupam-autoridades-e-pesquisadore.shtml, acesso em 13/04/2020.

[5]Folha de São Paulo, 10/04/2020. Disponível em  https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/coronavirus-e-mais-letal-entre-negros-no-brasil-apontam-dados-da-saude.shtml, acesso em 13/04/2020.

[6]https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/reuters/2020/04/08/coronavirus-mata-mais-negros-em-estados-dos-eua-indicam-dados-preliminares.htm, acesso em 13/04/2020. Cf. também “Negros enfrentam altas taxas de infecção por coronavírus nos EUA”, jornal O Estado de São Paulo. Disponível em https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,negros-enfrentam-altas-taxas-de-infeccao-por-coronavirus-nos-eua,70003264668, acesso em 13/04/2020 e “Negros e latinos enfrentam taxas altas de infecção nos EUA”. O Estado de Minas, 09/04/2020. Disponível em  https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/04/09/interna_internacional,1137136/negros-e-latinos-enfrentam-taxas-altas-de-infeccao-nos-eua.shtml, acesso em 13/04/2020.

[7]Folha de São Paulo 10/04/2020. Disponível em  https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/coronavirus-e-mais-letal-entre-negros-no-brasil-apontam-dados-da-saude.shtml, Op. Cit. Veja também Correio Braziliense, 11/04/2020. Disponível em https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/04/10/interna-brasil,843753/letalidade-do-novo-coronavirus-e-maior-entre-negros-e-…,acesso em 13/04/2020. É importante destacar que os dados disponíveis oficialmente estão deveras “contaminados” pela subnotificação. Estudos tem indicado que tantos os casos de contaminação quanto de mortes podem ser superiores aos apresentados pelo Ministério da Saúde. Cf. Para especialistas, Brasil vive ‘apagão’ de dados sobre a Covid-19. O Globo, 02/05/2020. Disponível em https://oglobo.globo.com/sociedade/para-especialistas-brasil-vive-apagao-de-dados-sobre-Covid-19-1-24406659. Acesso em 02/05/2020.

[8] Boletim Epidemiológico Ministério da Saúde 15, de 8 de maio de 2020. Disponível em https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2020/May/09/2020-05-06-BEE15-Boletim-do-COE.pdf. Acesso em 20/05/2020.

[9] Folha de São Paulo 17/05/2020. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/apos-2-meses-brasil-nao-sabe-a-cor-de-29-dos-mortos-pela-covid-19.shtml. Acesso em 17/05/2020.

[10] LOPEZ, Laura Cecília. O conceito de racismo institucional: aplicações no campo da saúde. Interface. v.16, n.40, p.121-34, jan./mar. 2012, p. 127.

[11] CARMICHAEL, Stokely. O poder negro. 2ª edição. Belo Horizonte: Editora Nandyala, 2018.

[12] WERNECK, Jurema. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde Sociedade. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016.

[13] A relação de obras a este respeito é imensa e variada. Por ora fiquemos apenas com FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes.São Paulo, Ática, 1978 [1965]; HASENBALG, Carlos A. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979 e; GUIMARÃES, A.S. Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo: Ed. 34, 2005.

[14] Sales Jr. Apud FERREIRA, Tarcisio José. A capoeira na escola: lei 10.639/2003 como política pública afirmativa. Monografia apresentada ao curso de Especialização em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça da Universidade de Brasília, UNB, 2014, p. 35.

[15] Geledes,  Racismo Institucional: uma abordagem conceitual. Disponível em http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/FINAL-WEB-Racismo-Institucional-uma-abordagem-conceitual.pdf. Acesso, 03/05/2020.

[16] John Rex Apud. WIEVIORKA, Michel. O racismo, uma introdução. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 31.

[17] Cf. KALCKMAN, Suzana; SANTOS, Claudete Gomes dos & BATISTA , Luís Eduardo. Racismo Institucional: um desafio para a equidade no SUS? Saúde Sociedade, v.16, n.2, p.146-155, 2007; ROSA, Luiz Gustavo F. da; CHRISTÓVÃO, Renata Gomes; FURLIN, Mirela & LASTA, Jeanice B. Percepções e ações dos enfermeiros em relação ao racismo institucional da saúde pública.  REUFSM - Revista de Enfermagem da UFSM, v. 9, E8, p. 1-19, 2019.

[18] Segundo dados do IBGE (2017) a presença dos pretos ou pardos na Agropecuária (60,8%), na Construção civil (63,0%) e nos Serviços domésticos (65,9%) é mais acentuada – justamente as três atividades que possuíam menores rendimentos médios em 2017. Já as atividades de educação, saúde e serviços sociais (ocupações com maiores rendimentos) são as que contavam, em 2017, com a maior participação de pessoas ocupadas brancos (51,7%). No que tange aos rendimentos, segundo os mesmos dados, a população ocupada de cor ou raça branca recebia um rendimento-hora superior à população preta ou parda em todos os níveis de escolaridade, sendo a diferença maior no nível de instrução mais elevado, R$ 31,90 contra R$ 22,30, ou seja, 43,2% a mais para brancos. FONTE: Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2018. Rio de Janeiro : IBGE, 2018. Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101629.pdf, acesso em 19/04/2020.

[19] Segundo dados do IBGE, em 2017, a proporção de pessoas residentes do domicílios particulares permanentes com restrição ao acesso a serviços demonstrava uma desvantagem para os negros, assim, enquanto os negros (pretos ou pardos) perfaziam um total de 114 milhões de habitantes (ao passo que os brancos seriam 90 milhões), 15,9% de condições de moradia[19] ao passo que os brancos somavam 9,4%[19]. Esses números se repetem em outros segmentos. No caso dos negros, 31% possuíam restrição ao sistema de educação, 20% de proteção social; 45,3 ao serviço de saneamento básico; 30% à internet, sendo que somavam 21% dos que tinham ao menos 3 restrições. Em contrapartida, os brancos perfaziam 23,6%; 8,6%, 27,9%; 19,1% e 9,2%, respectivamente. FONTE: Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2018. Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101629.pdf, acesso em 19/04/2020.

[20] Considerando a expectativa de vida ao nascer da população. Veja https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/18469-expectativa-de-vida-do-brasileiro-sobe-para-75-8-anos.

[21] FERNANDES, Florestan. “25 Anos Depois: O Negro na Era Atual” In: ____________. Circuito fechado. 2ª Edição. São Paulo: Editora Hucitec, 1979, p. 86.

[22] CHAUI, Marilena. Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1981; CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000 e SCHWARCZ, Lilia M. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

[23] SACRAMENTO, Lívia de T. e REZENDE, Manuel M. Violências: lembrando alguns conceitos. Aletheia [online]. 2006, n.24, pp. 95-104.

[24] WACQUANT, L. A penalidade neoliberal em ação: uma resposta aos meus críticos. Sistema Penal & Violência. Porto Alegre, vol. 5, nº 2, p. 265-273, jul/dez 2013.

[25] Crivella diz que cariocas gostam de morar perto de áreas de risco porque gastam menos com 'cocô e xixi'. Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/03/02/crivella-diz-que-cariocas-gostam-de-morar-perto-de-areas-de-risco-porque-gastam-menos-com-coco-e-xixi.ghtml. Acesso em 18/04/2020.

[26] SILVA, Luiz Antônio Machado da. Polícia e violência urbana em uma cidade brasileira. Etnográfica, vol. 15, Nº1, 2011, p. 67-82.

[27] WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2ª edição. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia; Editora Revan, 2003.

[28] WACQUANT, L. Forjando o Estado neoliberal: trabalho social, regime prisional e insegurança social. In: MALAGUTI, V. (Org.). Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

[29] FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil: aspectos do desenvolvimento da sociedade brasileira. 3ª edição, São Paulo: DIFEL, 1979.

[30] SOUZA, Jessé. A classe média no espelho. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2018.

[31] BARROS, Daniel. Heranças da pandemia. O Estado de São Paulo, 6 de abril de 2020. Disponível em https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,herancas-da-pandemia,70003261249, acesso em 06/04/2020.

[32] MENEGAT, Marildo. Convergência do terror. Metaxy. Disponível em https://revistas.ufrj.br/index.php/metaxy/announcement/view/437. Acesso em 25/04/2020.

[33] BUTLER, Judith, Quadros de Guerra. Quando a vida é passível de luto?, São Paulo: Civilização Brasileira 2015, p. 13.

[34] AGAMBEN, G. Estado de exceção. Tradução Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004; FOUCAULT, Michel. Soberania e Disciplina. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979; FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1975 e; MBEMBE, Achile. Necropolítica. Arte & Ensaios, nº 32, dezembro 2016.

[35] BUTLER, Judith, Quadros de Guerra. Op. cit., p. 14.