A “NORMALIDADE” DA COVID-19 E A VIDA COTIDIANA

2020-05-20

Por Valéria Cristina Gomes de Castro - Tecnologista em Saúde Pública (FIOCRUZ); Mestre em Saúde Pública ENSP-FIOCRUZ; Doutoranda em Serviço Social pela UFRJ.

 “O planeta rodará sobre seu eixo
Em busca do mesmo sol que perdemos
Abraçando suas mesmas faces ardentes
Festejando a volta da claridade”

(Iasi, 2017, p. 25)

Este artigo busca trazer algumas considerações sobre a pandemia da COVID-19 provocada pela disseminação do novo coronavírus e a situação em relação à vida cotidiana das famílias diante desse grave problema sanitário. A nova realidade social imposta pelo surgimento da doença viral tem provocado grande surpresa e apreensão diante dos acontecimentos e mudado a vida de todos tornando impossível ignorá-la, a mídia invade nossos sentidos com informações a todo instante que nos dão a dimensão da magnitude do problema e do que ainda pode estar por vir.  Inicialmente se esperançava a possibilidade de que estivesse havendo um exagero por parte da imprensa ou manipulação de alguns setores políticos no país, no entanto, o avanço da doença em outros países (como a Itália e posteriormente os EUA) reafirmou a gravidade da situação, inédita para todas as gerações ainda vivas no país, apesar dos mais velhos ainda guardarem as histórias contadas por seus avós quanto a outras epidemias no Brasil, principalmente da gripe espanhola no início do século XX.

Diante desse quadro, o distanciamento social se tornou uma nova realidade e evidenciando condições desiguais e opressões que há muito tempo afetam a vida dos brasileiros, especialmente dos grupos de maior vulnerabilidade, como idosos e portadores de doenças crônicas, que nos mais pobres, negros, indígenas, apresenta maior incidência e gravidade. Estes grupos já sofrem habitualmente com violência doméstica e outras formas de violência, além de lidar com o malabarismo do orçamento doméstico diante da escassez de recursos.

A Importância da Saúde: valorizada quando perdida

A saúde é um bem essencial e no Brasil vem sendo garantido por meio de políticas públicas de acesso a serviços e de ações de promoção à saúde, que no país é organizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que é uma conquista fundamental da população brasileira para atendimento à saúde da população. No cotidiano, geralmente não percebemos a importância de um sistema de saúde público, gratuito e que garanta o acesso a diferentes níveis de atenção a toda a população. Mesmo aquelas pessoas que pagam por planos de saúde, utilizam frequentemente o SUS, como por exemplo, em situações de emergência; na Vigilância Sanitária (que promove ações a fiscalização e educação no controle das condições de meio ambiente, da produção e circulação de bens, produtos e serviços, etc.) e também nas ações de Vigilância Epidemiológica (como as vacinas e controle da ocorrência de doenças, etc.).

A experiência dramática da COVID-19 tem demonstrado o que já se preconizava na criação do SUS, ou seja, a saúde tem uma dimensão de atendimento e assistência individual, mas também uma dimensão coletiva, que não pode ser relegada, ou seja, é uma condição que envolve uma concepção bio-psico-social. Outra questão que parecia deixada a segundo plano, devido ao crescente corte de recursos do SUS, é a importância de um sistema público e integrado, no qual as ações de vigilância em saúde e atenção hospitalar se articulem. Porém, estas medidas tão elementares e preconizadas pelo SUS, e que aparece agora como uma “novidade” necessária em muitos países diante da atual emergência em saúde.    

Os grupos mais vulnerabilizados (idosos, portadores de doenças crônicas, entre outros) cotidianamente já enfrentam dificuldades no dia a dia, e a atual situação de pandemia acentua ainda mais os problemas. Diante desse enorme desafio a toda a humanidade, vivemos o desejo de retornar imediatamente a normalidade, por outro lado, se reconhece que a dita normalidade necessitava urgentemente de mudanças, tanto na distribuição de bens e serviços, bem como, na forma de lidarmos com o meio ambiente, com a política e as relações sociais.

Saúde e Pandemia

Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), agência destinada às questões relativas à saúde fundada em 1948 e que reúne muitos países, a partir de março de 2020 a COVID-19 (doença causada pelo Novo Coronavírus) foi considerada uma pandemia, ou seja, uma doença infecciosa que se espalhou a vários continentes ao mesmo tempo. As infecções ao longo dos anos moldaram cidades e possibilitaram organizar sistemas e serviços de saúde, alterando consideravelmente o modo de viver em diferentes sociedades. Os microorganismos causadores dessas infecções também sofrem mudanças pela ação humana, se adaptando as novas circunstâncias. É o que discute Magalhães e Machado (2014, p. 109) na resenha sobre o livro de Ujivari (2011) que discute as pandemias e os novos desafios a humanidade diante da velocidade dos deslocamentos populacionais e a disseminação de agravos transmissíveis.

Assim, com o tempo, os humanos modificam o ambiente onde vivem aumentando as chances de sobrevivência. Os microrganismos também se modificam para aumentar as suas chances. Assim, outros seres evoluem e se estabelece um ciclo.

Esta condição atravessa diferentes setores da organização da sociedade, interferindo na economia, no judiciário, legislativo, na vida religiosa, acadêmica, no meio ambiente e tantos outros, ressaltando a centralidade da saúde para a vida do planeta. Diferentes alternativas vêm sendo apontadas para enfrentamento da pandemia, como distanciamento social, uso de mascarás, lockdown (bloqueio total), entre outros. Porém, essas medidas não são novas e apesar de não terem sido usadas recentemente no Brasil, na proporção que hoje observamos, fazem parte da história da saúde pública em diferentes épocas.

Observamos os relatos do uso de quarentena no Brasil em 1886, quando foi criado o lazareto da Ilha Grande na região sul do estado do Rio de Janeiro, que funcionava “como um centro de triagem e isolamento dos visitantes e imigrantes que chegavam aos portos brasileiros, visava impedir a propagação de enfermidades infecciosas no país” (Santos, 2007, p. 1174). Esta autora destaca que as desigualdades sociais já estavam presentes desde aquela época, em que havia diferentes classes na distribuição interna do lazareto, que era pago de acordo com as instalações ocupadas no navio de origem.

Todos os quarentenados eram obrigados a pagar as taxas de internação estipuladas pelo governo, que cobriam despesas com socorros médicos e farmacêuticos. É importante destacar que o Lazareto oferecia aos internos instalações equivalentes àquelas disponíveis nos navios, distribuídas entre primeira, segunda e terceira classes. Os internos tinham direito de controlar seus pertences, depois de desinfetados, e preservar junto a si o que julgavam necessário para a estada no Lazareto. (SANTOS, 2007, p. 1176)

A maior epidemia já relatada no mundo foi a da gripe espanhola, e que matou mais de 30 milhões de pessoas, principalmente na Europa. Nessa época, assim, como em outras epidemias, como a cólera, a peste entre outras, as ações de isolamento, assim como outras medidas sanitárias, são ferramentas fundamentais utilizadas na saúde como forma de diminuir a disseminação das doenças. É o que discute Souza (2007) sobre a situação da cidade de Salvador diante da epidemia de gripe espanhola em 1918. A autora analisa como a doença se espalha pela vida social, influenciando as relações sociais e de poder. Apesar disso, o conhecimento médico permanece relevante para combate à epidemia. Os relatos desse período impressionam por sua atualidade.

Todavia, apesar da perplexidade geral diante da virulência de uma doença até então manifestada de forma benigna, à opinião pública não ousava colocar em dúvida a capacidade daqueles homens da ciência para desvendar o mistério que envolvia o agente causal da moléstia. Ainda que criticasse a lentidão do processo, posto que a vida e a morte urgiam, a imprensa baiana fazia questão de ressaltar: “Não se pense, contudo, que sejamos capazes de pôr em duvida as aptidões e comprovada competência dos ilustres médicos [...] que se acham incumbidos dos estudos clínicos sobre a epidemia” (Diário da Bahia, 03.10.1918, p. 1). (SOUZA, C. 2007, p. 167-168)

Atualmente a existência das redes sociais, como exemplo, facebook, whatsapp, instagram, twitter e todas as novas tecnologias, especialmente na área biomédica, reacendem esperanças e ampliam opiniões sobre a vivência durante a pandemia. Porém, surpreendentemente, a ideia de isolamento social preconizada pelos médicos e organismos de saúde se confronta com a posição de governos e políticos, que no Brasil atualmente tem ocorrido principalmente em relação ao governo federal. A ideia de isolamento vertical (apenas dos grupos de risco) e isolamento horizontal (para toda população) evidenciam não somente visões de saúde, mas diferentes formas de pensamento sobre a sociedade e o papel da ciência na vida das pessoas e dos riscos e regras aos quais devemos, ou não, seguir.

Os países que defenderam anteriormente um distanciamento social limitado, como Itália, EUA e Inglaterra, assistem agora a um quadro desastroso, com dezenas de milhares de pacientes infectados e mortos pela doença, além de hospitais sem insumos (materiais e humanos) suficientes para o combate ao coronavírus. Apenas após a mudança de conduta, tais países começaram a vislumbrar alguns sinais de controle da pandemia. Manter o isolamento social com a paralisação das atividades não essenciais é uma medida dura, mas necessária. É uma recomendação da OMS, das entidades científicas e médicas brasileiras e internacionais, assim como de governadores e prefeitos. Vale notar que essas medidas, baseadas em evidências científicas, foram testadas e aprovadas nos países que até este momento conseguiram os melhores resultados na luta contra a pandemia. (ABRASCO, 2020)

A importância da ciência em nossas vidas e os saberes acumulados por gerações são muito relevantes para a nossa sobrevivência. Os discursos que exaltavam o senso comum e as soluções mágicas para os problemas de saúde, são cada vez mais ineficientes diante do caos causado pelo avanço da pandemia da COVID-19, em que muitos dos que relegavam a ciência a algo obsoleto e ineficiente, com cortes profundos de verbas nas universidades e institutos de pesquisa, agora apostam, sobretudo, nesta para uma possível resposta a pandemia.

O pensamento que despreza o racionalismo e as descobertas científicas, principalmente quando se referem às ciências sociais e humanas, não parece ter respostas para emergências sociais. As ideias que fortalecem apenas o senso comum, não são novas e atravessam séculos, principalmente diante de questões que ultrapassam as certezas cotidianas, como a ocorrência de guerras, epidemias, crises humanitárias e econômicas, etc. Esse pensamento que constitui a base do pensamento conservador evoca na maioria das vezes, ideias de diferenças raciais e étnicas (de povos com a mesma origem), sendo utilizados para justificar a ocorrência de crises sociais, e designando aos diferentes a raiz do problema e se fortalecendo da confiança e desespero das pessoas para implantar suas ideias, com atitudes nada ingênuas ou espontâneas, com isso aumentando a discriminação, preconceito e intolerância entre os povos. É o que podemos observar em relação à xenofobia (aversão a coisas ou pessoas de origem estrangeira), nutrida em relação aos refugiados de diferentes países, e mais recentemente de muitas pessoas em relação aos chineses diante da atual pandemia.

A radicalização de determinados grupos, como ocorre com grupos terroristas na Europa e outros países, por exemplo, não transforma toda a população originária de alguns países como terroristas, violentos ou portadores de moléstias e de maus hábitos, ao contrário, muitos fogem exatamente da barbárie vividas em seus territórios. A realidade do fundamentalismo e da radicalização religiosa observada em alguns grupos, atenta para a relevância da fé como mediação de várias questões sociais e políticas, mas que em sua radicalidade e irracionalidade extrema pode causar muita dor e sofrimento.         

O fundamentalismo religioso observado em muitos países atinge principalmente os jovens, mais também mulheres e mesmo crianças. Essas conversões carregam conteúdos de violência extrema a outras crenças e, por vezes, também antifeministas, agindo pelo incentivo e estímulo ao pertencimento a uma coletividade, e desenvolvendo o sentimento de proteção de grupo, por meio de uma disciplina rígida e inquestionável rumo ao martírio. É o que discute o diretor do Observatório de Radicalização da Maison des Sciences de l’Homme de Paris sobre as ações terroristas na Europa.

As mulheres jihadistas, assim como seus homólogos masculinos, aspiram pertencer a uma coletividade que dá sentido à vida e cujas normas hiper-restritivas aumentam essa necessidade de pertencimento, e isso de modo que a integração e a repressão se tornam amplamente indistintas. Quanto mais as normas são rígidas, até repressivas, mais o indivíduo anômico em busca de um pertencimento sente-se seguro em seu desejo de fazer parte dessa referida comunidade. (KHOSROKHAVAR, 2018, p. 503)

No Brasil ainda vivemos distante dessa realidade, mas a inversão da ideia de um Estado laico (sem controle religioso), atenta para os riscos de imposição de valores e crenças que poderão se sobrepor e justificar decisões que no domínio da fé tendem a excluir e menosprezar conhecimentos e conquistas adquiridas pela humanidade no decorrer dos séculos. Essas medidas apareciam até recentemente como resposta a crise econômica que já demonstrava sua força, no entanto, o avanço da pandemia do Coronavírus parece ter colocado em questão muitas certezas e a indefinição do futuro, alertando para necessidade de novos modos de viver pelo bem da humanidade. Para Iasi (2017) a crise econômica se desenvolve em uma crise política com uma profunda luta entre as facções da classe dominante, que entre outros fatores, tem no conservadorismo uma forma de legitimação.

o quadro se completa com uma ofensiva conservadora na sociedade, com graves traços fascistizantes, tais como a intolerância religiosa, o irracionalismo, o anticomunismo, o nacionalismo vazio de elementos minimamente progressistas, a homofobia, o machismo e outras manifestações que capturam para uma lógica reacionária o descontentamento com as instituições democráticas burguesas. (IASI, 2017, p. 11)

O pensamento social predominante em nossa sociedade contribui para fortalecer ideias predominantes em nossa sociedade, perpetuando desigualdades, discriminações e violências a determinados grupos, como mulheres, negros, indígenas, idosos, entre outros. Assim, a violência como forma de legitimação da ordem burguesa e a imposição de regras por meio da imposição da força, é um grave risco que vivemos diante do avanço do conservadorismo em que diferenças religiosas, de gênero (contra as mulheres, LGBTQI+, negros), se tornam tão graves que ameaçam à vida.  Nesse cenário, a diminuição da convivência social, necessária em tempos de pandemia, atenta para o risco que muitas pessoas terão que conviver obrigatoriamente com agressores no mesmo espaço doméstico, e também na ausência de limites de alguns governantes quanto a opiniões e decisões que ultrapassam questões éticas e técnicas. Esses fatores interferem também na atuação de muitos profissionais de saúde, exigindo destes uma postura altamente crítica e dinâmica.  

Nesse contexto barbaramente regressivo, emergem traços renovados de conservadorismo que atingem a formação e o trabalho profissional, como o metodologismo, o teoricismo acrítico, o aligeiramento da formação e da pesquisa, o pragmatismo, o voluntarismo e o voluntariado, o contentamento com o possibilismo, que reeditam características do passado recente (Boschetti, 2015). São incidências conservadoras que remodelam a atuação do Serviço Social nas políticas sociais e podem fazer retroceder as históricas conquistas alcançadas nos últimos três decênios e que marcaram a ruptura com o Serviço Social acrítico. (BOSCHETTI, 2015, p. 68)

Consideramos que vivemos na atualidade desafios inimagináveis a bem pouco tempo, em que é necessária criatividade e prudência quanto a decisões políticas e pessoais. Nesse contexto, a vida coletiva torna-se muito reduzida e o compartilhamento de ideias mediadas principalmente pelos meios de comunicação, especialmente as redes sociais, que espalham conteúdos nem sempre verídicos ou confiáveis. Porém, a realidade nos traz questões muitos importantes a serem enfrentadas e tomarmos consciência de que a vida, embora mais restrita aos espaços familiares, reproduzem todas as contradições que já vivíamos anteriormente, acrescidas das novas questões relacionadas aos iminentes riscos de adoecimento e morte. A atual crise sanitária exige a necessária ação conjunta de todos os setores da sociedade (políticos, cientistas, profissionais de saúde, religiosos, trabalhadores em geral) na busca da união de saberes científicos e conhecimentos populares sobre territórios e conhecimentos da terra, a fim de alcançarmos o objetivo mais importante de salvar o planeta e a vida que existe nele.

“A Vida Acima do Lucro!”

 

Referências Bibliográficas

ABRASCO. Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Disponível em: <https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/institucional/sociedades-cientificas-cobram-embasamento-cientifico-das-acoes-da-uniao/46574/>.  
Acesso em 10 de abril de 2020

BOSCHETTI, I. Agudização da barbárie e desafios ao Serviço Social. Revista Serviço Social n. 128. P 54-71. São Paulo, 2017. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/sssoc/n128/0101-6628-sssoc-128-0054.pdf>.
Acesso em 14 de abril de 2020

IASI, M. A Esfinge que nos devora: os desafios da esquerda brasileira. Disponível em: <https://marxismo21.org/wp-content/uploads/2017/05/Mauro-Iasi-A-esfinge-que-nos-devora-as-perspectivas-na-esquerda-no-Brasil.pdf>.
Acesso em 13 de abril de 2020

IASI, M. Outros Tempos. RJ. Ed. Mórula, 2017.

KHOSROKHAVAR, F. Revista Sociedade e Estado – Volume 33, Número 2, 2018. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/se/v33n2/0102-6992-se-33-02-00487.pdf>. Acesso em 08 de abril de 2020.                       

MAGALHÃES, S. e MACHADO, C. Conceitos epidemiológicos e as pandemias recentes: novos desafios. Cad. Saúde Colet. n. 22 (1) p. 109-10, Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/cadsc/v22n1/1414-462X-cadsc-22-01-00109.pdf >. Acesso em 20 de maio de 2020.

SANTOS, M. Lazareto da Ilha Grande: isolamento, aprisionamento e vigilância nas áreas de saúde e política (1884-1942). Revista História, Ciências, Saúde Rio de Janeiro v.14, n.4, 2007.  Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v14n4/04.pdf>. Acesso em 10 de abril de 2020.