DERRIDA HOJE: PERSPECTIVAS DA DESCONSTRUÇÃO
A desconstrução, se qualquer coisa como tal existe, como gostava de insistir Derrida, conduziu a inúmeros desdobramentos ao longo de quase cinco décadas de produções filosóficas, seja, por exemplo, através de um embate contínuo com a metafísica ocidental, quando esta responde pelo nome de metafísica da presença, de etnofalologocarnocentrismo ou de humanismo metafísico, seja na proposição, no campo ético-político, científico e estético de uma série de quasi-conceitos e orientações que visam pensar a desconstrução no seu caráter afirmativo.
As reflexões sobre o terrorismo e sobre a “guerra santa” não deixam de estar acompanhadas, em Derrida, da crítica aos Etáts Voyous¹, assim designados pelo Ocidente como prerrogativa para ações políticas externas que se dão no campo da exceção. Aos horrores da colonização e da guerra e suas reminiscências ou mesmo sua ameaçadora continuidade na mundilatinização, segue-se não apenas um pensamento sobre a necessidade do perdão e a exigência de reparações históricas, mas uma tentativa de investimento na reformulação das organizações internacionais, diante da possibilidade de um outro pensamento da soberania, bem como a defesa dos direitos humanos, aos quais se aliam a questão da pena de morte e dos crimes contra a humanidade. Apesar das dificuldades próprias ao mundo contemporâneo ou mesmo intrínsecas à democracia, como seu caráter auto-imunitário, Derrida não deixa de pensar uma democracia por vir, uma promessa sempre em realização, em que a hospitalidade incondicional assume uma importância chave, assim como a capacidade de reinventar as instituições, o humano e o mundo, de reconhecer e de bem viver com as diferenças num mundo comum, partilhado também como os demais seres vivos, dando ensejo a uma nova fitozooantropolítica, que se pensa diferentemente da biopolítica de Foucault e Agamben. Essa promessa compreende um outro pensamento do que se constituiu tradicionalmente como sujeito, desdobrando-se num diálogo profícuo com a psicanálise, principalmente de Freud e Lacan, mas também de Nicolas Abraham e Maria Tokov, bem como com as filosofias de Nietzsche, Husserl, Heidegger, Levinas, entre outros (Benjamin, por exemplo), imantando uma “ética hiperbólica”, uma “ética da responsabilidade”, uma “ética do questionamento”, uma “ética da hospitalidade”, uma “ética da alteridade”, uma “ética do perdão”, uma “ética do incondicional” entre os muitos outros nomes designados por seus intérpretes e comentadores, que propulsionaram o pensamento de Derrida em múltiplos domínios, como a pedagogia (com sua ideia de uma universidade incondicional), a biologia (com seus quasi-conceitos de grama e de a-vida-a-morte), a etologia (que reúne seus escritos sobre os animots), a botânica (inserindo na filosofia noções como disseminação, arborescência, deiscência), o direito (com sua contribuição para o pensamento sobre os direitos humanos e o direito internacional em geral), a psicanálise (que envolve um trabalho sobre o luto, o inconsciente, a pulsão de morte, a crueldade, a cripta), a estética (particularmente, a literatura, a pintura, a linguagem, a língua e o idioma) e a filosofia em geral, servindo-se de quasi-conceitos como escritura, rastro, différance, perjúrio, segredo, farmacon, khôra. O próprio Derrida não deixou de estar em diálogo constante com esses vários campos do saber, e mesmo com outras tradições pensantes, passando pelas universidades de Buffalo, Irvine, Chicago, Santiago, Rio de Janeiro, Nova Deli, Tóquio, Casa Blanca, etc.
Assim, perguntamos: Quais os desdobramentos da desconstrução hoje? Quais as heranças da desconstrução para pensar o presente?
Convidamos a todos os interessados nessas temáticas, a partir do pensamento de Derrida e em sua atualização por intérpretes e comentadores, bem como no seu diálogo com outros campos de conhecimento, a enviar artigos, resenhas, ensaios e traduções para o site da Revista Ítaca até o dia 20/04/2024, espaço que está aberto para a discussão e divulgação de ideias privilegiando nesse dossiê o pensamento de Derrida, que consideramos de suma importância para discutir questões da ordem do dia.
¹Entre as traduções do termo “voyous”, indicamos duas:
1) como "canalha", em que se ressalta o caráter inescrupuloso, sem princípios, delinquente que religa o termo inglês "rogue" ao francês "voyous", uma vez considerada a origem do debate que remonta à sua utilização depreciativa pela Estratégia de Segurança Nacional nos Estados Unidos, nos anos 1980, em sua campanha de difamação de certos Estados como justificativa de sua política externa intervencionista nos rogue states, o que será desconstruído por Derrida, dispondo-se, nesse sentido, da tradução de Cristina de Piretti (DERRIDA, J. Canallas: dos ensayos sobre la razón. Madrid: Editorial Trotta, 2005);
2) ou como “vadios”, segundo tradução de Fernanda Bernardo, Hugo Amaral e Gonçalo Zagalo (DERRIDA, J. Vadios: dois ensaios sobre a razão. Coimbra: Palimage, 2009) que privilegia, no vadio, aquele que despista, seduz, atrai, propondo outras vias que o caminho direto e faz da rua o seu meio e sua vida. O vadio é o marginal, o malandro que desdenha da lei e atrai sobre si a vigilância, a polícia e a violência neoliberal, dando margem a uma vadiocracia, um Estado virtual que representa um princípio de desordem à ordem pública. "A postura dos Estados-Nações é a mesma do caráter bestial errante do vadio. Aqueles determinam o outro enquanto vadio, rogue, voyous ou como bestas. Bestializar o inimigo é uma forma de ataque para diminuí-lo e menospreza-lo, para então pautar-se na argumentação da falta de humanidade ou de ordem e organização, de um Estado são e de direito." (MORAES, Marcelo. Democracia Espectrais, por uma desconstrução da decolonialidade. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2020, p.134).