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  • [CHAMADA PARA DOSSIÊ TEMÁTICO] ENTRELAÇAR: TESSITURAS FILOSÓFICAS-LITERÁRIAS

    2025-08-07

    é sempre do coração que se fala e se escreve.
    só se desconstrói o que se ama;
    e repito (e é preciso repetir),
    se, contudo, para se desconstruir
    (se desconstruir é enxergar a partição
    no coração dos conceitos, eis aqui uma definição),
    precisa-se, para isso, para se fazer isso
    de modo sincero, verdadeiro, de coração,
    que o filósofo que se pretende des-construtor
    tenha, ele também, e talvez sobretudo,
    o coração partido.

    - Rafael Haddock-Lobo

     

    Não é recente a querela entre a filosofia e o que hoje chamaríamos simplesmente a literatura. Desde Platão, o perigo que a prática literária representava ao pensamento filosófico se manifestava na necessidade de expulsar os poetas da polis. Poderíamos dizer, talvez, nos servindo de Jacques Derrida, que os poetas sempre agiram de maneira a misturar os gêneros.

    Por outro lado, é impossível deixar de notar que, se a filosofia surge buscando afirmar sua identidade, ela só pode fazê-lo diante de um outro que lhe aparece como o risco terrível de sua própria ruína, de fato, como a ruína do “próprio”. Nesse sentido, o gesto imunizante não seria apenas secundário, mas participaria da própria constituição da filosofia num dentro/fora indecidível.

    Dois milênios mais tarde, e hoje parece haver uma urgência por “misturar os gêneros”, ou descobri-los, como num susto, sempre já misturados, contaminando um ao outro desde a origem. A rígida hierarquia que tentou assegurar por tanto tempo que os discursos não se misturassem parece começar a perder sua força de lei, mostrando-se, quem sabe, como mais uma ficção legítima. Jacques Derrida, em A lei do gênero, texto apresentado pela primeira vez em 1979, aborda um tema que ganhou relevância em sua trajetória. O filósofo franco-magrebino começa com uma provocação, ao dizer que não pretende “misturar os gêneros”: “NÃO MISTURAR os gêneros. Não misturarei os gêneros. Repito: não misturar os gêneros. Não o farei. Suponham agora que eu deixe esses enunciados ressoarem sozinhos” (Derrida, 2019, p. 251). Nas linhas derridianas: “Vocês poderiam ouvir “não misturar gêneros” como uma ordem breve” (Derrida, 2019, p. 252). Uma lei do deve-se ou não se deve cumprir e, diante dessa ordem, todos parecem saber os limites e as bordas do que constitui um gênero.

    Ao provocar essa questão, abre uma porta: “sim, sim”, pois é como se ao ouvir a palavra gênero, um limite se delineie. E, nesse sentido, quando um limite é fixado, a norma e a rigidez não demoram a aparecer: “Assim, a partir do momento em que o gênero se anuncia, deve-se respeitar uma norma, não se deve ultrapassar uma linha demarcatória, não devemos nos arriscar à impureza, à anomalia ou à monstruosidade” (Derrida, 2019, p. 253). Essa lei vale para todos os gêneros: não se deve misturar. Dada essa constatação, Derrida nos convoca a pensar sobre esses limites: e se fosse impossível não misturar os gêneros, existindo de antemão uma contaminação?

    ​Não sabemos, com efeito, de onde vem – nem com que força ou necessidade – o chamado que parece exigir que uma fronteira seja transposta. Talvez o deslocamento incessante dos sentidos provocado pela tessitura dessa longa escrita clame, hoje, por alguma experiência de pensamento que já não se deixa caracterizar tão somente como filosófica, embora tampouco se tenha simplesmente cruzado o limite em direção ao literário.

    Com relação ao termo “tessituras”, é importante mencionar que a arte de tecer é antiga, sendo uma das atividades que se atrelam às mulheres no ocidente desde a poesia de Homero, com suas personagens femininas que tecem tramas, tal como Penélope e Helena. A palavra texto pertence, inclusive, à mesma origem etimológica de tecido, vem do latim textus, que quer dizer “tecer”, “entrelaçar fios”. Tecido vem de texere, carregando, assim, o mesmo sentido. O texto é tecido, portanto, como bordado.

    ​É preciso, afinal, de alguma maneira, conservar a memória dessa fronteira. Acreditar simplesmente transpô-la reduzir-se-ia a um gesto que permaneceria mais ou menos inconscientemente no interior das próprias estruturas que acreditou ter ultrapassado.

    Contudo, é preciso igualmente sentir o tremor de um limite que nunca esteve verdadeiramente fixo em um lugar, como se flutuasse, tal como um élitro, no movimento pendular de uma agulha a costurar apaixonadamente o texto dessa história. Como diz Clarice Lispector, em Água Viva: “Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais” (Lispector, 2019, p. 30). Teríamos, aí, quem sabe, diante desse outro que escapula e interdita a apropriação, a experiência (sempre impossível) de uma aporia, junto a qual seria preciso demorar-se.

    Seguindo esse fio, a Revista Ítaca convida pesquisadoras e pesquisadores das áreas de Filosofia, Letras, Literatura, Teoria da Linguagem e áreas afins a contribuírem com artigos, ensaios, resenhas, entrevistas e traduções que explorem os entrelaçamentos entre os pensamentos filosófico e literário.

     

    PRAZO PARA SUBMISSÃO: de 08 de agosto a 31 de outubro de 2025.

    Serão aceitos textos em português, francês e espanhol.

    Todos os artigos devem ser formatados de acordo com o modelo da Revista Ítaca, disponível no site, e as submissões deve ser realizadas pela plataforma da Revista: https://revistas.ufrj.br/index.php/Itaca/about/submissions

    O envio de traduções deverá ser acompanhado de documentação que comprove a anuência da(s) respectiva(s) autoria(s) do texto original.

     

    Organizadores:

    Brendow Gabriel (UFRJ

    Guilherme Cadaval (UERJ)

    Pâmela Costa (UFRJ)

    Quésia Olanda (UFRJ)

    Rafael Haddock-Lobo (UFRJ/UERJ)

     

    Referências

    DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada literatura. Trad. Marileide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

    DERRIDA, Jacques. A lei do gênero. Tradução Carla Rodrigues e Nicole Alvarenga Marcello. Revista TEL: Irati, v.10, n.2, 2019. Disponível em: A lei do gênero - Jacques Derrida | TEL Tempo, Espaço e Linguagem. Acesso em: 02 de julho de 2025.

    HADDOCK-LOBO, Rafael. Experiências abissais, ou, Sobre as condições de impossibilidade do real. Rio de Janeiro: Via Verita, 2019.

    LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 2019.

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