DIREITO DE RESISTÊNCIA DO EMPREGADO E O COVID 19
Por Gabriel Oliveira Lambert de Andrade - Graduado em Direito pela PUC/RJ; Pós-Graduado em Direito do Trabalho pela Escola de Magistratura Trabalhista do TRT da 1a Região; Professor do Curso de Extensão em Compliance da PUC/RJ.
Elevados ao status de direito universal dos homens, conforme consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos, os direitos à vida, à saúde, a segurança pessoal e a segurança social, dentre outros, além da garantia de recurso efetivo para qualquer ato que viole os direitos fundamentais, são inerentes a qualquer ser humano.
Como não poderia ser diferente, a Constituição Federal de 1988 confirmou a importância dos direitos acima citados, incluindo-os no rol de cláusulas pétreas, ou seja, normas imutáveis pelo poder constituinte derivado.
Nas relações de trabalho subordinadas, a principal característica que distingue um trabalhador autônomo do empregado é a subordinação jurídica, que se consubstancia no Poder Diretivo do empregador sobre o trabalho do empregado.
Para quem não está afeito ao termo, o “Poder de direção é a faculdade atribuída ao empregador de determinar o modo como a atividade do empregado, em decorrência do contrato de trabalho, deve ser exercida”[1].
Os direitos fundamentais, além de outros previstos na legislação trabalhista, representam limites ao poder diretivo do empregador na gestão dos contratos individuais de trabalho. Portanto, toda vez que o empregado tiver ameaçado um dos direitos e garantias previstas em lei, poderá o trabalhador se insurgir, exercendo seu direito de resistência.
Para ilustrar a limitação do Poder Diretivo do empregador, podemos citar o caput do artigo 170 da CRFB, que prevê que “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995)”
Portanto, a busca da valorização do trabalho, a justiça social e a defesa do meio ambiente, inclusive no que se relaciona ao meio ambiente de trabalho, é um dos limitadores do poder diretivo do empregador.
Como é público e notório, o mundo está enfrentando uma pandemia, através do vírus CORONAVÍRUS, que já contaminou centenas de milhares de pessoas, levando à óbito uma dezena de milhares delas.
Entendendo a gravidade da situação, pois não se trata apenas “de uma gripezinha”, diversas autoridades mundiais conclamaram a população de seus países, estados ou municípios a não saírem de suas respectivas casas, excepcionando apenas os serviços essenciais, entendendo que não há segurança para as pessoas transitarem livremente, sem o risco de contágio e disseminação do vírus.
Os Decretos 10.282 e 10.288, ambos de 2020, decretados pelo Executivo Federal, definem 36 atividades essenciais, entre elas: assistência à saúde; atividades de segurança e defesa nacional; transporte intermunicipal, interestadual e internacional de passageiros; transporte por táxi e por aplicativos; serviços de telecomunicações, energia elétrica e gás; produção e venda de produtos de saúde, higiene, alimentos e bebidas; serviços bancários e postais; produção e venda de combustíveis; transporte e entrega de cargas; serviços relacionados à imprensa.
A Constituição Federal a de 1988 lista, entre os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” e o “seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.”
Destaca-se que é obrigação do empregador proporcionar para os empregados um ambiente de trabalho seguro e saudável, na forma do artigo 225 da Constituição Federal que diz que: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo para as presentes e futuras gerações”.
Nunca é demais lembrar que existe a figura da responsabilidade civil do objetiva do empregador, quando o dano causado ao empregado independe de culpa, apenas pelos riscos da atividade exercida. O Código Civil de 2002, no art. 927, parágrafo único, sugere que o empregado terá direito à indenização, independentemente da culpa do empregador, quando a atividade normalmente desenvolvida pela empresa implicar, por sua natureza, risco para os direitos do empregado.
Neste cenário, com exceção dos empregados que trabalham nas atividades essenciais, nos demais ofícios, poderia o empregado se insurgir da obrigação legal de comparecimento ao local de trabalho, já que há efetivo risco para a integridade física do empregado, podendo exercer o direito de resistência para preservá-la, tendo em vista que não teria o empregador como garantir um meio ambiente saudável de trabalho.
Portanto, toda vez que o trabalhador tiver um direito em risco, poderá se utilizar do direito de resistência, que seria legitima recusa para garantir o exercício de um direito fundamental a ele conferido e que estivesse ameaçado de violação.
Há na legislação trabalhista soluções práticas para a efetiva solução do problema. O que demandaria a interpretação da legislação sobre o prisma Constitucional.
A primeira é o teletrabalho, que é a prestação dos serviços de o empregado fora das dependências do empregador, regulamentado pelos artigos 75-A e seguintes da CLT.
A segunda possibilidade, esta já debatida pela mídia, indica a possibilidade de concessão de férias coletivas, sem o aviso antecipado de 30 dias.
Uma hipótese que ainda não observei na mídia especializada, seria a aplicação da Lei 9601/98, a lei que implementou o Banco de Horas. Se é possível que seja exigido do empregado a realização de horas extraordinárias, com a possibilidade de compensação futura, a contrário senso e se coadunando com o princípio da igualdade, poderia o trabalhador possuir horas negativas, para a compensação futura, em decorrência de um motivo de força maior.
Outra possibilidade de pouco debate, seria a aplicação principiológica da legislação de seguridade e assistência social, que garante o direito à saúde, conforme previsão do caput do artigo 1º da Lei 8212/91, com o deferimento coletivo do benefício previdenciário, que assim dispõe:
Art. 1º A Seguridade Social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinado a assegurar o direito relativo à saúde, à previdência e à assistência social.
Vejamos ainda o texto do caput do artigo 2º e 3º da mesma lei, que confere ao Estado a obrigação de realizar efetivas medidas para redução do risco de doenças e assegurar, através da Previdência Social, meios indispensáveis de subsistência, quando o segurado estiver impossibilitado de trabalhar:
Art. 2º A Saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 3º A Previdência Social tem por fim assegurar aos seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, idade avançada, tempo de serviço, desemprego involuntário, encargos de família e reclusão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente.
Tratando especificamente do benefício de auxílio-doença, artigo 59 da Lei 8213/91 assim o define:
Art. 59. O auxílio-doença será devido ao segurado que, havendo cumprido, quando for o caso, o período de carência exigido nesta Lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias consecutivos.
Nesta hipótese, deveria ser concedido pelo INSS, ao empregado, o benefício previdenciário de auxílio-doença, após o período de 15 dias de afastamento, em decorrência da impossibilidade física na realização do serviço.
As medidas governamentais propostas até o momento, só oneram majoritariamente os empregados e, em alguma medida, os empregadores, sem assumir a responsabilidade do Estado pelo cumprimento dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.
Portanto, a omissão do Governo Federal viola os princípios que fundamentam o Estado Democrático de Direito, desvirtuando-o de seu objetivo principal, já que o Estado foi criado para o servir aos cidadãos e não ao contrário.
A abstenção do Poder Executivo, abandonando os hipossuficientes num momento de indiscutível calamidade pública, deixando-os a mercê da própria sorte, deve ser repreendida pelos demais Poderes da República.
Quem deveria assegurar a efetividade do Estado Democrático de Direito não poderia “soltar a mão de ninguém”, ainda mais num momento desses.
[1] NASCIMENTO, Amauri Mascaro, 2009, p. 660.