O FRACASSO DO NEGACIONISMO E DO GOLPISMO DE BOLSONARO DIANTE DA PANDEMIA

2020-04-01

Por Pedro Cláudio Cunca Bocayuva - Porfessor do NEPP-DH/UFRJ

Novamente o otimismo da vontade pode vencer as forças regressistas do fascismo social e do autoritarismo de Estado com apoio no pessimismo da razão? A resposta a esta pergunta depende do modo como extraímos as lições da conjuntura nacional aberta pela tentativa golpista da manifestação de domingo 15 de março e da tentativa de negar a importância da epidemia global do coronavírus.  Já que, uma vez que fracassaram os intentos de perpetrar um golpe contra o legislativo e o judiciário, contra a democracia, e que também fracassou o intento de diminuir a importância da pandemia do coranavírus aos olhos da população, podemos afirmar que vivemos momentos de defesa de valores e tendências positivas para o resgate de uma política de defesa de direitos? Como toda crise orgânica, como toda a crise de hegemonia, que se dá quando governos fracassam, por vezes emergem potencialidades de virada catártica, de mudança súbita e imprevista para superar os quadros catastróficos e o fatalismo que conduz para regimes de guerra civil ou de exceção. A emergência da força potencial do argumento em defesa das políticas e ações públicas fitossanitárias, a retomada do discurso científico e da visão pública no terreno epidemiológico, sanitária e das políticas de saúde fazem parte de um efeito político pedagógico que está impactando o Brasil e o mundo.

A onda neoliberal, o fascismo social e o discurso sobre as políticas de guerra foram duramente afetados pelas lições iniciais da pandemia do Covid-19. A apologia da guerra comercial e cibernética contra a China e das ações contra a Venezuela e o Irã estão temporariamente secundarizadas, pois, em toda a parte, os governos tem de se render a uma evidência de realismo em ações públicas de proteção da vida e da saúde das populações, são obrigados a sair da inércia fatalista própria às fórmulas dominantes do ajuste estrutural neoliberal, de naturalização do endividamento e da precarização.  A economia política do fluxo de capital global, que tolera as guerras locais e os processos de crueldade contra as classes subalternas e os grupos oprimidos, fica sem resposta quando o sistema é obrigado a parar e as soluções só podem ser sociais, públicas e coletivas.

Por isso, a razão cínica que negava a pandemia acaba de receber uma grande derrota no país. O movimento do negacionismo, sobre a memória histórica do desastre que foi a ditadura, não precisou mais do que o efeito das forças da contaminação viral de modo a que se desnudasse a impotência do discurso que fazia a apologia da tortura e sua outra face mentirosa. A da negação da pandemia como um processo de risco sistêmico com grande margem de incerteza quanto a duração e certeza quanto a efeitos imediatos devastadores. Isto contribuiu para que as mobilizações convocadas ilegalmente pelo governo fracassassem ante os imperativos da realidade.

Os fenômenos mórbidos da destruição da democracia e o desmonte das máquinas públicas se revelaram um enorme fiasco no modo de governar a crise por parte da administração Bolsonaro . O que colocou o Brasil em um estado de fragilidade ambiental e sanitária que, se tornou um verdadeiro crime de responsabilidade em função da negação da gravidade potencial da pandemia

O golpe contra as instituições sofreu uma derrota parcial uma vez que a verdade avassaladora do fato social se impôs, a pandemia é real e contaminou parte da comitiva presidencial brasileira, que se rendeu ao projeto de subordinação ao dispositivo militar e as guerras neocoloniais da potência norte-americana. Na mesma hora em que assistíamos estarrecidos a uma convocação para a quebra da República, onde o executivo apoiou e lidera um clamor para fechar o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, tínhamos a assinatura de acordos nefastos para a soberania e a defesa nacional e para a paz mundial. No momento em que o governo apoiava uma espécie de “Marcha sobre Roma”, desde de dentro do Palácio, o povo na Itália sofria as dores da pandemia, no mesmo momento em que Washington clamava contra a Venezuela depois da destruição do Iraque e da Síria, que tentava culpar a China, a cúpula do governo norte-americano e o grupo palaciano bolsonarista já estavam contaminados pelo caráter global do processo de contágio. A pandemia não seguiu as razões do poder e a racionalização ideológica cínica da negação que cai diante do real da pandemia. O golpe não prospera e a Venezuela é temporariamente poupada do ataque militar aberto, pois que as outras formas de cerco contra seu povo continuam.

O negacionismo já não encobre a verdade sobre as questões da história e da memória e do seu elo atual com os genocídios e os efeitos catastróficos dos novos fascismos, dos racismos e das guerras contra as populações. A criminalização e o encarceramento em massas não garantem a segurança e a defesa da vida. Fracassando no domínio da segurança pública, do emprego, da renda, da educação e da saúde o governo Bolsonaro já não pode culpar os mesmos, usar o argumento da corrupção ou reafirmar as políticas neoliberais como antídoto para a crise. Se tornou urgente e evidente a necessidade dos governos nacionais e locais de tomarem medidas de salvação pública através da adoção de flexibilidade orçamentária para o gasto, de políticas anticíclicas para evitar o colapso material e a explosão social.

Os governos precisam mudar o eixo das prioridades para as diretrizes e ações em matéria de política sanitária, epidemiológica e de atendimento hospitalar emergencial, que se colocam como exigências prementes. A economia neoliberal já mostrou que fracassa, já apresenta a sua face real de destruição das condições que permitem lidar com a gestão de recursos hídricos e o saneamento ambiental, com as políticas públicas sociais e com o contexto aberto pela pandemia. O governo se dividiu entre a área de saúde com ações justas e concretas e as forças envolvidas no golpe político e na destruição de direitos sociais, culturais, econômicos e ambientais do povo brasileiro. Na opinião pública o protesto nas cidades já fez o barulho necessário para marcar o apoio para as medidas que fortalecem a saúde, a pesquisa e as ações emergenciais em oposição ao caráter grotesco e caricatural que assumiu o discurso da negação. Bolsonaro perdeu apoio e credibilidade para liderar a nação neste momento de ameaça grave para a saúde coletiva. 

As janelas se tornaram o lugar de um vasto protesto que rejeita a negação ou o fatalismo de que a opção é pela contaminação, Bolsonaro ficou exposto ao ridículo que já marcava sua administração na área internacional, de educação, de ciência e tecnologia, de meio-ambiente, de geração de trabalho, de provocação contra os outros poderes e os governadores e de incitação para a ruptura institucional. A greve na área de segurança no Ceará, o Carnaval pentecostal e o comportamento de seu Ministro da Justiça só não foram piores que os resultados pífios da política econômica.

Será que mais uma vez parafraseando Antonio Gramsci, que usou um aforisma de Romain Rolland para cunhar a máxima sobre “o pessimismo da razão, o otimismo da vontade”, poderemos considerar a relevância (otimista apesar da dor) para uma tomada de consciência das verdadeiras prioridades nacionais? Será que o interregno paradoxal aberto pelo fracasso temporário de mais este avanço para o Estado de Exceção poderá trazer o bom senso necessário para a busca de soluções com base em políticas públicas e direitos humanos? Será que apesar do quadro catastrófico e, da ameaça de risco da pandemia as soluções públicas de proteção coletiva vão prevalecer sobre as formas autoritárias de gestão das políticas, da economia da emergência social sanitária ante os desafios de gerar imobilidade pela informação e cooperação, e não pela violência do Estado? Será que as medidas coercitivas vão respeitar as necessidades e garantir a adequação das medidas via políticas de saúde e abastecimento com a proteção das populações e com foco nas dimensões desiguais que o quadro apresenta em matéria de ação básica, no espaço das cidades e para as populações e grupos mais vulneráveis?

Não existe nenhuma exigência fatalista que nos condene a repetir os erros iniciais do internamento em massa ou os erros da negligência ante o quadro já evidente, aprender com os erros dos chineses e dos italianos tem permitido soluções mais virtuosas de amortecimento no ritmo e nas consequências da contaminação para que se possa manter as condições de atendimento emergencial. Este processo de aprendizagem pela violência dos fatos revelou a importância de ter sistemas nacionais como o SUS operando com qualidade e eficiência, de ter governos responsáveis e capazes de unificar a sociedade para as ações coletivas, para a mudança de comportamento. E, finalmente, para a importância da qualidade dos processos, o apoio ao pessoal, a disponibilidade dos meios e da infraestrutura que relaciona as diferentes dimensões de pesquisa & desenvolvimento, de atenção básica, de saneamento, de atendimento emergencial, de diagnóstico com a clareza da informação consistente. O que depende de instituições médicas, dos laboratórios e instituições públicas de pesquisa e de tod@s que nos diferentes âmbitos de atendimento de saúde, de segurança, de transporte, de serviços básicos, e de abastecimento cuidam para que o impacto da pandemia se reduza.

Estamos torcendo para que os modelos matemáticos de medida de aceleração da contaminação e dos óbitos possa acusar tendências e indicadores que invertam a tendência para o agravamento. Desta forma estaremos atuando via os mecanismos de reforço da cidadania, com a mobilização institucional e da opinião pública. Demonstrando o vigor da face positiva da democracia quando se relaciona com a vontade coletiva favorável ao quadro social de conjunto da necessidade de medidas especiais de isolamento, bem como do provimento de bens públicos e de atitudes responsáveis e qualificadas. Que a crise de fato se torne uma oportunidade para enfrentarmos os desafios desta pandemia e todo o quadro das necessidades de ação sanitária e epidemiológica que se relacionam com o direito humano à saúde.