A CRÔNICA ANUNCIADA DO CORONAVIRUS
Por Ricardo Rezende Figueira - Antropólogo, professor localizado no NEPP-DH/UFRJ, coordenador do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo contemporâneo.
O mais forte nunca é bastante forte para ser sempre o senhor (...).
Rousseau. In O Contrato Social
O COVID-19, um vírus até então desconhecido, assustou e assusta. As notícias começaram em dezembro de 2019, na cidade chinesa de Wuhan. Três meses depois já havia infectado mais de um milhão de pessoas em 190 países (O Globo, 05/04/2020), apesar da tentativa dos chineses em detê-lo, e produziu dezenas de milhares de mortes, especialmente de “idosos, diabéticos, hipertensos e quem tem insuficiência cardíaca, renal ou doença respiratória crônica” (O Globo,12/03/2020) .
Especialistas em infecções, com razão, estavam e continuam apreensivos, mesmo se intelectuais de prestígio não tenham percebido a gravidade do momento, como Giorgio Agamben.[1] O problema se agravou e, apesar de pandemias serem conhecidas,[2] especialmente os governos ocidentais, mesmo os mais ricos, se revelaram incapazes de responder a tempo às necessidades dos cidadãos e, quando começaram a agir, houve falta de solidariedade entre as nações (Notícias.com, 02/04/2020; Portal Saúde Busines 11/02/2020).
Há uma pintura do século XVI, no museu do Prado, em Madri, de Pieter Bruegel, chamado o triunfo da morte. É uma cena terrível, uma área ressequida, a devastação e o fogo percorreram a região e um exército de esqueletos, cercado por outros esqueletos, e a Morte cavalga e leva consigo seres de todas as idades, sexo e classe social, mesmo o rei. Estamos no século XXI, cinco séculos depois, e passaram a habitar nossos olhos e corações as imagens das cidades e praças vazias, como se a cena bruegeliana retomasse com o transporte dos mortos em massa, os enterros solitários, sem a cerimônia de despedida dos familiares e o adoecimento dos profissionais da saúde em países da Europa, como Itália e Espanha (Correio Braziliense, 23/03/2020); de corpos insepultos em ruas no Equador (ZIBELL, 05/04/2020); da violência da polícia contra a população pobre na Índia para que não saísse de casa (DANTAS, 25/03/2020); do presidente de Filipinas autorizando sua polícia a atirar contra quem não se mantivesse em isolamento social (EXAME, 02/04/2020) e de informações crescentes de mortes nos Estados Unidos e no Brasil. O tempo das celebrações da quaresma, que enchia as ruas de procissões e os templos de fiéis nos países católicos, foi diferente. As pessoas estão recolhidas aos espaços privados de suas residências. Foram fortes as imagens do papa Francisco percorrendo as ruas vazias de Roma (TADEU, 17/03/2020), ou, pela primeira vez, o mesmo papa solitário na Praça de São Pedro, por ocasião da benção Urbi e Orbi (O Povo 28/03/2020). Assim, muitos eram os sinais que algo terrível acontecia, um monstro irrompia e trazia medo.
O presidente do Brasil, contudo, em plena pandemia, estava mais preocupado com a economia do que com a vida das pessoas e afirmou que o coronavirus era uma simples “gripezinha” (CAMAROTI, 20/03/2020) e a forma leviana e perigosa como o presidente tratou o tema foi considerada grave um crime contra a humanidade pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD, 03/04/2020) que impetrou conta ele uma denúncia no Tribunal Penal Internacional. O presidente dos Estados Unidos, no primeiro momento também subestimou o problema, era uma simples gripe, mas recuou em seguida e teve comportamento criticado nas compras que fez de equipamentos de proteção individual, como de máscaras e respiradores deixando outros países sem acesso ao produto. Teria enviado 23 aviões cargueiros para a China e o material contratado pelo Brasil, deixou de estar disponível (BERGAMO, 01/04/2020).
Assim, temos uma tragédia, ou, parodiando Garcia Márquez (2009), uma crônica de mortes anunciadas. No romance de Márquez, Santiago Nasar, o personagem principal, vai ser assassinado. A cidade sabe, todos sabem, menos ele. As facas são amoladas e não impedem sua morte e poderiam tê-lo feito. Agora as facas estão amoladas e o vírus está presente. Qual a razão do atraso nas medidas necessárias para frear as mortes ou nas medidas adequadas, se o fato era sabido? É um mero reflexo da incompetência dos governantes ou revela algo mais profundo, substancial? Revelaria também o modelo econômico, onde a vida das pessoas vale menos?
Na crise espanhola do COVID-19, com tantas mortes, o atual governo do país, eleito como fruto de uma coalizão de esquerda, acusou os governantes anteriores de terem diminuído os investimentos sociais. De fato, alguns governos, inclusive o brasileiro, retiraram investimentos em diversas áreas, inclusive na saúde, defendem uma proposta de diminuição do Estado, da privatização da economia e dos sonhos, especialmente do desfazimento da legislação protetora do trabalhador. No Brasil, o próprio Ministério do Trabalho foi desfeito depois de 80 anos de existência e a auditoria do trabalho depende do Ministério da Economia, um sinal claro da ordem de prioridade entre trabalho e capital. E as políticas neoliberais têm sido implementadas desde os anos 1980 e se precipitaram a partir do Governo Temer com reduções mais drásticas de investimentos sociais, constatou Ivo Lesbaupin (03/04/2020), e a resposta à grande crise depende justamente do Estado para salvar vidas e garantir os direitos sociais. O Governo Bolsonaro prosseguiu na mesma linha neoliberal. A Medida Provisória 936, por exemplo, promulgada em 01 de abril de 2020, permite que se estabeleça uma negociação individual entre o trabalhador e o patrão para quem ganha até três salários mínimos ou acima de dois tetos do INSS (R$ 12.202,00). No entanto, a Constituição não admite a redução de salário por acordo individual. E, de fato, tal acordo seria uma temeridade, porque os lados da “negociação” são assimétricos e o sindicato tem o papel de equilibrar de certa forma a relação. As centrais sindicais manifestaram seu desacordo. Exigiram que os sindicatos participem das negociações e defendem a manutenção do salário integral, a estabilidade de 180 dias, a prorrogação do seguro desemprego e a isenção de tarifas para os trabalhadores mais fragilizados.
Neste momento, quando o capital privado é atingido pela crise, a responsabilidade recai sobre o Estado que deve resolver não apenas o problema da saúde das pessoas, mas das próprias empresas. Na ausência do Estado, pessoas, organizações da sociedade civil e religiosas se articulam supletivamente.
A preocupação no caso brasileiro, deve nos remeter ao problema da desigualdade social que é gravíssimo e tem um componente moral, ofende os direitos humanos mais elementares, pois produz e reproduz a fome, o desemprego, o subemprego e a morte. E sobre os idosos e os portadores de certas doenças, no grupo mais vulnerável economicamente, a tragédia será maior. Como estes observarão os quesitos de limpeza, se habitam casas sem água; o isolamento social, se moram em situação precária, amontoados em residências pequenas e insalubres; ou muitos sequer têm casa?
O país está à beira de algo que será uma catástrofe maior pelo tempo com que pode se arrastar a solução do problema, pelo número de pessoas que morrerão, vítimas do coronavirus, mas também pela lentidão das autoridades brasileiras em implementarem medidas preventivas e pela profunda desigualdade social.
É hora de refletir e tomar posição em favor da vida, contra a desordem de um poder que exclui, que não observa os direitos sociais. O poder hegemônico terá medo de uma sublevação, dos pobres nas periferias e nas favelas, famintos e adoecidos se erguerem e a “dominação” construída, no sentido weberiano, não mais funcionar? Se a força hegemônica perder sua legitimidade, e a desobediência entrar no horizonte dessa gente, o mais forte, lembra Rousseau (s/d: p. 18), deixa de sê-lo, “se não transforma sua força em direito e a obediência em dever”. A fome e a doença que rondam, podem criar novidades? O tempo dirá. E, lembrando Neide Esterci que, ao tratar da coerção contra trabalhadores no Norte brasileiro, escreveu que o padrão de violência de fazendeiros e seus prepostos nas fazendas, a partir de 1970, parecia apontar para uma relação que prescindia da “dominação”. Era puro arbítrio e isso podia provocar fugas e denúncias. O metal é afiado na dor que ultrapassa o admissível?
Houve suposições quando a crise estourou na China que o vírus colocava o comunismo contra a parede; outros como Slavoj Zizek foram céticos a tais conclusões. O filósofo e sociólogo esloveno provocou no título de um de seus artigos a respeito do COVID-19 que, ao contrário, era “um golpe ao capitalismo”. Apesar de ser uma crise que poderia refazer as concepções de mundo propostas pelo neoliberalismo, não é seguro que o monstro do coronavirus o consiga e que o mundo saia mais generoso, refaça sua trajetória e amplie sua noção de solidariedade e justiça e faça uma revolução ideológica. O caminho de mudanças é longo.
Referências bibliográficas
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CAMAROTI, Gerson. Em meio à pandemia de coronavírus, Bolsonaro diz que 'gripezinha' não vai derrubá-lo 20/03/2020 18h48 Atualizado há 2 semanas. https://g1.globo.com/politica/blog/gerson-camarotti/post/2020/03/20/em-meio-a-pandemia-de-coronavirus-bolsonaro-diz-que-gripezinha-nao-vai-derruba-lo.ghtml Acesso 06/04/2020.
BERGAMO, Mônica. EUA enviam 23 aviões à China e acendem alerta de desabastecimento para hospitais do Brasil. Folha de S. Paulo.1º.abr.2020 à 1h01. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/04/alta-procura-por-itens-hospitalares-na-china-gera-alerta-em-abastecimento-no-brasil.shtml?origin=uol Acesso 06/01/2020
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atualizado às 09h https://www.terra.com.br/noticias/mundo/coronavirus-no-equador-embalamos-os-corpos-de-minha-e-irma-e-meu-cunhado-em-sacos-plasticos-dentro-de-casa,ec35e39aa27a550fce0f215bddbd33fadqssbf5n.html Acesso 06/04/2020
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