EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE COVID-19/CORONAVIRUS: REFLEXÕES A PARTIR DA PESQUISA SOBRE O USO DA TECNOLOGIA NOS SISTEMAS PÚBLICOS BRASILEIROS
Por Camila Iwasaki, Clara Azevedo, Erica Peçanha e Erick Roza [1]
As recomendações e medidas necessárias de isolamento social, tomadas para tentar frear o espalhamento do Covid-19/Coronavirus, e a consequente suspensão das aulas em quase todo território nacional, lançaram holofotes sobre desafios que ainda persistem no cenário educacional brasileiro. Diante da ausência de orientações e parâmetros mais claros por parte do Ministério da Educação, cada rede de ensino municipal ou estadual[2] vem buscando se articular (em tempo recorde) para manter a relação com os estudantes e fomentar algum tipo de apoio para eles durante esse período.
Todavia, pesquisas recentes demonstram que muitas redes brasileiras ainda não sabem quais estratégias adotar para minimizar os efeitos da pandemia na aprendizagem de seus estudantes[3]. Além disso, os profissionais diretamente envolvidos, como professores, gestores e supervisores, aparentemente não estão participando da formulação dessas estratégias. A falta de escuta daqueles que conhecem de perto os processos educacionais chama a atenção[4], mas a dificuldade na realização de ações e estratégias para mitigar os impactos no cenário educacional não é uma prerrogativa apenas brasileira: um estudo realizado por Fernando Reimers e Andreas Schleicher, divulgado no último dia 30 de março[5], com dados de 98 países, revelou que uma grande porcentagem de governos afirmaram que “nada” tem sido feito quando perguntados sobre estratégias para apoiar o ensino acadêmico contínuo junto aos estudantes durante a suspensão das aulas. A segunda alternativa mais citada pelos respondentes foi a ação de incentivar às escolas para usar recursos on-line.
Sobre este último ponto, no cenário brasileiro, o suporte à distância para os estudantes é mais precário nas redes municipais e estaduais[6]. Em um país como o Brasil, a crise gerada pelo Covid-19/Coronavirus escancara ainda mais as desigualdades, uma vez que certamente os lares mais impactados pela pandemia são aqueles que tem menos infraestrutura e menor acesso à serviços e bens em geral e, portanto, às oportunidades educacionais; e, provavelmente, serão os mais afetados pela crise educacional.
Dessa forma, a corrida das escolas e redes para se adaptarem à crise ganhou um sentido de urgência não apenas por conta das projeções pessimistas sobre os possíveis efeitos negativos que a perda de oportunidades de aprendizagem pode trazer aos estudantes, mas também porque no cenário nacional as escolas públicas, muitas vezes, cumprem um papel de suprir necessidades básicas de alimentação, cuidado e socialização dos estudantes. A crise desvela em grande medida a importância desse equipamento público e de seus profissionais, principalmente em localidades de média e alta vulnerabilidade social – dimensão que tem sido pouco explorada em pesquisas, que se centram em mapear as estratégias de ensino remoto e pouco buscam identificar as ações (ou falta de) e desdobramentos que as redes, escolas e profissionais da educação têm realizado no território nacional para suprir as necessidades básicas das famílias. Sabemos que há redes trabalhando intensamente no fortalecimento do cadastramento único das famílias, na disponibilização de kits de higiene e alimentação ou mesmo na disseminação de informações sobre a pandemia, facetas que poderiam também estar sendo mapeadas e dariam a real dimensão do trabalho dos profissionais da educação. O fato de estas não serem funções diretas das escolas ofusca uma realidade bastante concreta, ao menos nas redes públicas, e que tem efeitos, sem dúvida, sobre a realização da atribuição direta e maior finalidade dessas instituições, a aprendizagem do estudante. Portanto, é algo que ainda precisa ser melhor observado, sobretudo no contexto atual.
Centrando-se aqui no tema da aprendizagem e nos caminhos para sua realização de maneira remota no cenário atual, um estudo do CIEB[7] constatou inúmeros desafios vivenciados pelas secretarias estaduais e municipais de educação no oferecimento de atividades à distância durante a pandemia. Com o objetivo de apoiar as redes nesse desafio, o próprio CIEB lançou no início de abril um conjunto de Estratégias de Aprendizagem Remota para Secretarias de Educação. Na mesma linha, o Todos pela Educação soltou uma nota técnica[8] com um panorama de evidências científicas mais recentes sobre ensino à distância e os desafios desse período, destacando quatro mensagens principais, resumidas em: (i) soluções de ensino à distância podem contribuir e devem ser implementadas, mas é preciso cuidadosa normatização e, desde já, atenção ao planejamento de volta às aulas; (ii) uma estratégia consistente para o ensino a distância é aquela que busca mitigar as condições heterogêneas de acesso e efeitos junto aos estudantes; (iii) é possível e fundamental diversificar as experiências de aprendizagem dos estudantes para além da aula on-line; (iv) atuação dos professores é central e é necessário apoia-los.
Seguindo essa mesma perspectiva, o relatório da pesquisa de Reimers e Schleicher, por sua vez, propõe um roteiro para guiar a resposta educacional à pandemia, aportando recomendações para os governos e, de maneira um pouco mais ampla, reforçando, entre outros alertas, a importância de: criar um comitê de crise com diferentes representantes do sistema educacional que possam elaborar e implementar um plano emergencial para lidar com a crise e suas consequências e seguir com o ano letivo; desenvolver ações voltadas para simplificação e priorização dos currículos; combinar aprendizagem remota com diferentes meios de ensino – on-line quando possível, mas também textos ou tarefas em livros ou cadernos de atividades, programas de TV, transmissão de programas de rádio, por exemplo; ter atenção aos processos de formação continuada emergencial para os professores conseguirem desenvolver as atividades propostas; intensificar as ações de comunicação com pais e professores; apoiar e oferecer serviços sociais aos estudantes de famílias mais vulneráveis.
Caminhar ainda mais com a reflexão e trocar conhecimentos sobre perspectivas que contribuam para que as redes possam se organizar frente aos novos desafios que vêm enfrentando nesse cenário é fundamental. É aqui que se situa a pequena contribuição deste texto.
Pouco antes da crise eclodir, em meados de março, finalizamos o relatório da Pesquisa sobre o uso da tecnologia nos sistemas públicos de ensino, realizada pela Tomara! Educação e Cultura em parceria com a Imaginable Futures, o BID e a Fundação Lemann. A pesquisa teve duas fases: a primeira, entre os meses de abril e junho de 2019, mapeou reflexões teóricas e visões sobre o tema, com revisão de literatura, entrevistas semiestruturadas e grupo de discussão com especialistas e gestores públicos de educação. Seus resultados[9] embasaram a coleta de dados realizada na segunda fase, realizada entre setembro de 2019 e fevereiro de 2020, com dez estudos de caso sobre o uso e a aplicação da tecnologia por Secretarias de Educação, regionais e escolas em todo território nacional, e que pode apreender, na diversidade de situações encontradas, algumas particularidades e, sobretudo, recorrências, que a seguir serão resumidas.
Estudos de caso: o uso da tecnologia nos sistemas públicos brasileiros
O exercício de olhar as especificidades e buscar recorrências nas dez diferentes iniciativas pesquisadas permitiu refletir sobre aspectos que podem favorecer ou inibir a implementação de uma política de uso de tecnologia nos sistemas públicos de ensino. Foi possível identificar um conjunto de características que, em maior ou menor grau, resulta em iniciativas que funcionam melhor e em iniciativas que acumulam mais gargalos, isto é, que não conseguem avançar ou que avançam muito pouco. Por exemplo, a existência (ou não) de uma visão mais positiva das lideranças das redes de ensino sobre a tecnologia, o modo como a tecnologia é utilizada (ou não) para atender problemas educacionais concretos ou mesmo se seu uso está conectado (ou não) aos valores e princípios educacionais são aspectos que parecem garantir maior ou menor aderência da solução tecnológica escolhida e que impactam diretamente os caminhos vivenciados na implementação das ações junto às escolas. Algumas regularidades encontradas forneceram pistas a respeito de (a) visões e premissas sobre usar ou não a tecnologia; (b) aspectos da governança no desenvolvimento das iniciativas pesquisadas nas redes de ensino; (c) condições que favorecem a execução das ações por parte das escolas; e (d) entraves vividos na implementação dos projetos e iniciativas com aplicação da tecnologia nas redes de ensino.
Os resultados obtidos com o estudo dos dez casos permitiram a construção de algumas narrativas comuns aos diferentes cenários e que aqui serão analisadas à luz da pandemia COVID-19/Coronavirus e seus impactos para a educação, com a expectativa de contribuir para aprofundar o debate sobre os desafios na adoção de estratégias de ensino remoto e uso de tecnologia por parte dos sistemas públicos de educação no Brasil.
O impacto da visão da liderança: a crença (ou não) na tecnologia e seus desdobramentos
Nos dez casos estudados há uma crença positiva sobre o uso da tecnologia associada à educação, tanto entre os gestores da Secretaria quanto entre os profissionais que atuam nas regionais e escolas. Este foi um dos aspectos comuns a todas as iniciativas pesquisadas, seja porque os recursos tecnológicos são vistos como parte inevitável da modernização de processos, em consonância com o próprio nível de desenvolvimento técnico-científico alcançado pelas sociedades atuais, seja porque considera-se que a tecnologia otimiza tempo dos profissionais e recursos físico-financeiros ou, ainda, por ser vista como uma ferramenta que pode contribuir positivamente para qualificar o processo de ensino-aprendizagem e aumentar a atratividade da educação para os estudantes. Houve alguns poucos casos em que o desenvolvimento de projetos, ações e iniciativas com uso de tecnologia não apareceu como relevante e importante na rede de ensino. Notou-se, nessas situações, uma falta de articulação entre a solução tecnológica e outros aspectos e elementos que compõem o sistema educacional. Nesses casos, a tecnologia parece ter sido acionada mais por um entendimento de que seu uso por parte das escolas seria inevitável do que pelas suas possibilidades de alavancar e otimizar processos e valores educacionais.
Tendência talvez esperada, também se mostraram mais vulneráveis à implementação como política pública os projetos e ações que não conseguiram aliar sua execução a ações de provimento de infraestrutura nem contaram com processos organizados de planejamento, desenvolvimento, suporte, manutenção, monitoramento, avaliação e replanejamento.
Assim, tanto as condições de implementação como a visão sobre a tecnologia têm efeitos que precisam ser considerados. De modo geral, a pesquisa revelou que a presença de vontade política, necessária para garantir que as ações aconteçam, somada a uma visão positiva da liderança sobre o uso da tecnologia em processos educacionais são componentes de iniciativas bem sucedidas. O uso da “tecnologia pela tecnologia” ou o entendimento dos gestores das redes de ensino de que a tecnologia deve ser usada por ser inevitável não demonstra efeitos animadores.
Em tempos de Covid-19/Coronavirus, o ensino remoto irá encontrar dificuldades de ser implementado se for apenas uma escolha tomada pelas lideranças para não deixar os estudantes sem aula nesse período; para dar certo, a escolha pelo uso da tecnologia tem que estar conectada com o propósito da aprendizagem ou de outros objetivos educacionais que se deseja alcançar – pois, sem conexão, provavelmente não funcionará.
Por que usar tecnologia mesmo?
Uma das evidências demonstrada pela pesquisa é que é preciso que a iniciativa faça sentido entre seus usuários/beneficiários para que seja incorporada em suas práticas e disseminada em suas redes. Nos casos investigados, verifica-se que uma grande barreira é o fato de gestores e/ou professores que utilizam as ferramentas tecnológicas considerarem seu uso como “mais trabalho”, retrabalho, mecanismo de vigilância ou mesmo de pouca utilidade para o cotidiano escolar. Esses sujeitos demandam formações qualificadas, acesso a dados consolidados, ou mesmo canais de comunicação e participação que contribuam na compreensão das ferramentas como soluções reais para melhoria da qualidade das aulas e otimização dos processos de gestão e comunicação.
A apropriação da tecnologia enquanto ferramenta que pode contribuir para qualificar processos administrativos, comunicacionais e pedagógicos passa pela constatação prática de que o uso de tecnologia aplicada à educação trará ganhos efetivos para os profissionais ou para a aprendizagem dos estudantes. Isso só é possível, de acordo com os casos estudados: (i) se, no uso de tecnologia por parte das equipes escolares, os sistemas, ferramentas, softwares e dispositivos envolvidos não apresentarem falhas constantes – tais problemas geram retrabalho e dificultam a rotina das equipes, gerando resistência ao uso; (ii) se as ferramentas digitais e tecnológicas trouxerem alguma vantagem evidente frente ao modo de fazer analógico – há uma curva de aprendizagem no uso de tecnologia e, por vezes, é visto como arriscado mudar procedimentos e práticas consideradas historicamente eficazes pelas equipes escolares (com uso do papel, da caneta, do livro impresso etc.); (iii) se os ganhos obtidos com o uso de tecnologia, no compito geral, produzirem mais conhecimentos e dados que possam ser úteis – mesmo em casos em que o processo de implementação foi conturbado, a avaliação foi positiva quando os resultados obtidos puderam ser aproveitados pelas equipes escolares.
Assim, à luz da pesquisa, pode-se refletir que para que as ações de ensino remoto com uso de tecnologia desenvolvidas durante a pandemia tenham melhores resultados, há que se perseverar na busca de sentido em relação ao problema que se deseja responder, que deve estar articulado com: a solução tecnológica escolhida; os recursos físicos, financeiros, materiais e humanos empreendidos; os processos de planejamento, engajamento, formação, acompanhamento e avaliação realizados; a finalidade da iniciativa; e os resultados alcançados com o desenvolvimento das ações.
A compreensão de que o uso da tecnologia com sentido nas rede de ensino passa por uma construção, composta por diferentes etapas, que precisa ser planejada e envolve inclusive mudanças na cultura organizacional, coloca em questão essa quase obrigatoriedade para que as redes adotem estratégias de ensino remoto a qualquer custo, em um curto espaço de tempo. Mesmo em localidades em que há infraestrutura e uma cultura prévia de uso da tecnologia, há entraves consideráveis vividos no processo de implementação (abordados mais a frente) e, num período de distanciamento social, é preciso considerar que os recursos podem ser ainda mais escassos e que o suporte necessário pode ficar ainda mais fragilizado.
Por isso, é importante avaliar mais a fundo os propósitos, as expectativas e as condições disponíveis para se construir nas redes de ensino um ambiente de aprendizagem remoto em curto espaço de tempo; do mesmo modo, para se apostar em estratégias mais estruturadas de educação à distância é importante ter planejamento, infraestrutura por parte de quem leciona e de quem assiste às aulas, organização de rotinas e combinados, existência de protocolos, formação dos envolvidos para uso dos sistemas, softwares e recursos educacionais e tecnológicos, organização do tempo e disponibilidade dos envolvidos, entre outros.
Sem atenção a esses elementos, corre-se o risco de as estratégias acabarem não encontrando aderência, não alcançando a rede como um todo ou não chegando a quem mais precisa e, provavelmente, tem menos recursos (como equipamentos em bom estado e conectividade) para usufruir das ofertas do ensino remoto ou da educação à distância. Ao elaborar o plano de ação a ser seguido durante e após a pandemia por parte das redes de ensino é preciso verificar se os limites para a implementação de uma estratégia de ensino remoto com uso da tecnologia são preponderantes sobre as possíveis vantagens e, em caso positivo, optar por outras formas de contato com os estudantes, que explorem canais já existentes e, ainda, possam alcançar da mesma maneira todos os estudantes. Todavia, a estruturação e início de um processo de fortalecimento do uso da tecnologia nas redes pode ter nesse momento uma janela de oportunidade, mas sempre lembrando que é preciso fazer sentido para todos os envolvidos.
De cima para baixo: o lugar dos processos participativos e a importância de conhecer todos os envolvidos no processo educacional
A pesquisa revela que a visão da liderança sobre a implementação de ações com uso da tecnologia, na maioria dos casos pesquisados, é de que ela deve prezar pelos chamados processos bottom-up, de modo que o desenho, planejamento e implementação possam ser retroalimentados a partir das contribuições dos diferentes atores da educação. Apesar disso, a maioria das iniciativas teve um planejamento e um processo de implementação top-down: vieram de cima para baixo, das equipes das Secretarias de Educação e, em alguns casos, implantadas de maneira impositiva e compulsória. As ações participativas, quando existem, aparecem apenas em alguma parte do processo de execução da iniciativa. Evidenciou-se ainda, na maioria dos casos, que os órgãos centrais não realizam um mapeamento prévio de necessidades e habilidades requeridas aos envolvidos, principalmente das equipes escolares.
Assim, não nos parece estranho essa tendência top-down se repetir nas estratégias e ações pensadas no contexto da pandemia. Supõe-se também que se ações de ensino remoto forem propostas de maneira descolada dos contextos, não considerarem os requisitos e necessidades formativas dos envolvidos e as condições de infraestrutura, financeiras e de recursos materiais e físicos, muito provavelmente serão experiências frustrantes – isso sem falar da própria rotina dos profissionais das escolas durante o período de isolamento, desafiadora e com possíveis efeitos na saúde física, mental e emocional. Soma-se a isso um aspecto importante evidenciado nos casos estudados: muitos atores escolares já se encontram descrentes sobre a eficácia de projetos com uso de tecnologia, que “prometem muito” mas “entregam pouco”. Não há receita única para a situação, mas, com certeza, esses ingredientes e modos de fazer precisam ser revistos.
Há que se considerar, ainda, que o desconhecimento sobre condições das vidas dos estudantes é um ponto bastante frequente nas redes de ensino e foi confirmado na pesquisa. Poucas redes possuem dados cadastrais organizados, a ponto de facilitar o contato com os estudantes – seja por telefone, e-mail ou de porta em porta. Também não há mapeamento prévio sobre as condições de infraestrutura, físicas, familiares e sociais da vida dos estudantes. Poucos estados/munícipios dos casos investigados caminhavam para manter, por exemplo, contato com famílias e estudantes via mensagem de celular. Na maioria das vezes, as informações para as famílias são disponibilizadas via site e/ou nas reuniões bimestrais ou semestrais, e apenas para aqueles que podem ir. Apesar de os estudos e pesquisas apontarem para os benefícios do uso da tecnologia no fortalecimento da relação família-escola-estudante[10], essa perspectiva ainda não aparece em sua potencialidade.
Lidar com essas diferentes dimensões no processo de planejamento e implementação das ações durante a pandemia exige uma organização mínima para consolidar os conhecimentos já existentes ou organizar novos dados e informações sobre gestores, professores, estudantes e famílias. Entender as condições pré-existentes (infraestrutura, conectividade, equipamentos, etc.), mapear habilidades e necessidades das equipes escolares, dos estudantes e suas famílias, organizar dados básicos sobre as condições socioeconômicas são ações-chave para que as redes possam traçar um diagnóstico mínimo e priorizar ações mais efetivas durante e após a pandemia.
Ter também canais institucionalizados para uma escuta atenta dos profissionais da rede de diferentes segmentos, estudantes e suas famílias com certeza possibilitará uma melhor definição do tipo de suporte que pode ser ofertado a depender das condições existentes, da infraestrutura, dos recursos materiais, financeiros e humanos, das contingências e desafios que estão sendo vivenciados por todos os envolvidos. Frente a realidade existente, torna-se possível definir o que faz mais sentido para a relação entre os profissionais das escolas e os estudantes. As prioridades devem ser escolhidas com esse foco: o estudante no centro da decisão e as equipes escolares com condições para atender às responsabilidades a elas atribuídas. Só dessa forma é que se garantirá uma oferta educacional de maneira qualificada e cada vez com mais equidade.
A figura do gestor público e a importância da corresponsabilização de todos pelas ações
A análise dos dez casos revelou que a figura de um ou mais gestores dos órgãos centrais das Secretarias de Educação aparece como fundamental para o desenvolvimento dos projetos, a articulação de parcerias e a qualificação das ações, fazendo diferença para garantir a continuidade e o fortalecimento das ações com uso de tecnologia como política educacional. Aparentemente óbvia, tal percepção é importante e precisa ser destacada: mesmo que existam diretrizes e protocolos consistentes, as políticas de estado e governamentais são feitas e implementadas por pessoas, e o perfil e a postura desses sujeitos também fazem diferença.
O perfil dos profissionais e o conhecimento técnico que possuem sobre a tecnologia para qualificar processos administrativos e educacionais, bem como o tipo de protagonismo e engajamento para o desenvolvimento de ações, impactam não apenas nos seus resultados, como permitem sua maior ou menor disseminação nas diferentes instâncias. Uma equipe com boa formação técnica e conhecimento de processos internos consegue contornar até mesmo as limitações de infraestrutura para colocar as soluções tecnológicas em prática e trazer parceiros para suprir lacunas de pessoal e/ou realizar ações variadas (desenvolver soluções, efetuar a manutenção, acompanhar o uso da solução escolas, realizar a formação dos envolvidos, etc.).
A pesquisa demonstrou que além de dominar o tema da aplicação da tecnologia na educação, essas equipes também precisam contar com conhecimentos sobre gestão pública e estabelecer boa relação com os órgãos fiscalizadores, no sentido de viabilizar e facilitar trâmites burocráticos e administrativos para que as ações aconteçam. Assim, são equipes que também possuem um perfil para empreender com liderança e capacidade de articulação e negociação, conseguindo fomentar parcerias na própria Secretaria de Educação, com outros órgãos públicos e com agentes da iniciativa privada para qualificar a iniciativa. Esses profissionais centralizam as ações de gestão, acompanham a implementação e possuem grande poder de mobilização dos demais atores.
São sujeitos que concentram grande parte do conhecimento sobre o projeto e são capazes de produzir uma visão articulada sobre todos os processos que devem ser desenvolvidos para que a iniciativa aconteça. Muitas vezes, carregam consigo o histórico de fracassos e sucessos, assim como o passo a passo do processo de implementação e tomada de decisão – e não é raro que tal conhecimento não esteja formalmente registrado, o que fragiliza a memória do projeto no caso de sua eventual saída. Ao mesmo tempo em que esse conhecimento acumulado e sua apropriação sobre a iniciativa os tornam profissionais de referência, corre-se o risco de o projeto sofrer grandes reveses caso esses sujeitos deixem de desempenhar suas funções. Há, claro, que se ter cuidado para não personificar processos ou idealizar pessoas, porém, ao mesmo tempo, as pessoas, de carne e osso, fazem diferenças nos processos.
Nesse sentido, mesmo diante do cenário da pandemia, é preciso investir em aspectos relacionados à dimensão da governança, na qualificação da equipe gestora responsável de maneira combinada com o fortalecimento dos atores envolvidos na cadeia do sistema, que precisam estar preparados e com condições de trabalho para realizar as atividades a eles designadas. Para isso, garantir, por exemplo, a existência e circulação de informações, protocolos e manuais para a implementação das ações estruturadas de ensino remoto durante a pandemia é fundamental. Vale fortalecer essa dimensão da formalização, inclusive com dispositivos legais e normatizações que facilitem o (re)conhecimento, implementação e a disseminação das ações a serem desenvolvidos por todos os atores na cadeia do sistema. A pesquisa revelou que, em geral, os projetos são iniciados com pouco respaldo normativo, sem orientações, diretrizes e protocolos claros, gerando dúvidas nas equipes escolares e, consequentemente, impactando o alcance de resultados.
No cenário da pandemia, o distanciamento social intensifica a necessidade de que tais orientações sejam elaboradas de maneira simples, objetiva, clara, e sejam disseminadas amplamente para garantir o mínimo de alinhamento nas redes de ensino. Tal função a ser cumprida por parte das Secretarias de Educação é primordial para a sustentação e corresponsabilização por aquilo que acontecerá junto aos estudantes.
Da mesma forma, há que se prover institucionalmente condições mínimas físicas e materiais e suporte para as ações. A infraestrutura apareceu como um gargalo relevante em boa parte dos casos estudados (falta conectividade no estado/cidade, faltam equipamentos em quantidade ou com especificação técnica adequada, entre outros), mas não é um fator que inviabiliza os projetos: na ponta os sujeitos são capazes de realizar arranjos os mais variados para viabilizar condições melhores de trabalho. Todavia, aparecem como fundamentais para a boa implementação a existência de recursos dimensionados e suficientes para implementação e manutenção do uso da tecnologia nos âmbitos da gestão, da aprendizagem e da comunicação. Tomar conhecimento sobre deficiências e lacunas existentes entre os profissionais e escolas e criar estratégias para provimento de infraestrutura, conectividade e recursos para quem precisa é estratégico para obter melhores resultados durante a crise e na retomada das aulas presenciais.
A agência dos atores escolares: a falta de apoio, acompanhamento a avaliação das ações
Sintoma de que o suporte e atenção dados pelas instâncias superiores às escolas para implementação de iniciativas com uso da tecnologia encontra-se fragilizado é a relevância da agência das equipes que estão nas escolas para superar adversidades, evidenciada com a pesquisa tanto nas iniciativas de provimento de infraestrutura e nas que usam a tecnologia para a gestão e monitoramento da informação, quanto para a prática e gestão pedagógicas. Nos projetos estudados que têm como foco a promoção da cultura digital ou do uso de softwares de apoio para o desenvolvimento de ações formativas para professores e estudantes, por exemplo, percebeu-se que a qualidade do suporte e da atenção dados pelas demais instâncias não vem sendo ofertada a contento, o que tem efeitos na qualidade dos processos vivenciados nas escolas.
O modo como se investe no apoio e no acompanhamento das equipes envolvidas na cadeia da rede de ensino e que colocam de pé a iniciativa mostrou-se decisivo para o êxito, a continuidade e/ou aprimoramento das soluções estudadas. Esse suporte e apoio, que vão da atenção à necessidade de formação específica à escuta das dificuldades e desafios, estabelecendo relações de parceria e confiança, fazem diferença para o engajamento. Quando isso não ocorre, é preciso contar com a “boa vontade”, ou mesmo com a motivação e disposição dos profissionais, que viram “referências” e “exemplos heroicos” para rede por superarem adversidades na realização de ações. Com efeito, tal proatividade seria potencializada se os profissionais tivessem condições e suporte compatíveis com as responsabilidades que lhes são designadas.
Nos casos em que as equipes escolares encontram maior apoio das instâncias superiores, nota-se que existe maior engajamento, que passa por uma escuta interessada e que conta com canais de participação para registro de sugestões e críticas dos usuários de diferentes perfis ao longo de sua implementação (técnicos da Secretaria, gestores, professores, estudantes e familiares). O acompanhamento com caráter formativo e informativo das escolas, pelas instâncias regionais, pode fazer diferença também, desde que esses sujeitos dominem a temática da tecnologia, conheçam e estejam apropriados do passo a passo de desenvolvimento do projeto e das orientações e normativas da Secretaria e tenham condições (físicas, financeiras, materiais) de realizar esse trabalho de suporte junto às equipes escolares.
Nas experiências que se mostraram mais problemáticas, dentre os dez casos estudados, houve pouco investimento na formação e preparação de atores externos às instâncias de gestão da Secretaria, que estão ligados diretamente à implementação e atuam nas instâncias regionais ou nas escolas. E fica nítido que a falta de acompanhamento, monitoramento e avaliação das iniciativas dificulta a percepção e revisão desses cenários. A “cultura avaliativa” se alicerça, na maioria dos casos estudados, em avaliações informais baseadas no cotidiano e na percepção subjetiva dos gestores e usuários dos sistemas públicos de ensino, sendo menos recorrente o aporte de estudos, diagnósticos e evidências consistentes que permitam aferir os resultados e propor correções de rota.
Dessa maneira, qualquer que seja a ação remota a ser desenvolvida durante a pandemia é importante garantir que gestores e professores sejam foco de formações qualificadas e que existam canais de comunicação e participação para compreensão de como as ações planejadas estão acontecendo na prática. Tais elementos são fundamentais para a qualidade do apoio direcionado aos estudantes, a otimização dos processos de gestão e comunicação e, fundamentalmente, para equilibrar e dimensionar o melhor uso do tempo e dos recursos disponíveis. Há que se compreender que quando não há oferta de condições favoráveis, escuta, formação e acompanhamento das ações, a responsabilidade pela implementação recai às escolas e, no caso da pandemia, especialmente em cima dos docentes. A potência e criatividade existente nas escolas para lidar com condições adversas não deve ser ignorada, mas poderia ser direcionada e aproveitada, não mais para cobrir problemas estruturais, mas para incremento e fortalecimento das próprias políticas a serem implantadas.
Nesse sentido, planejar um sistema de acompanhamento com caráter formativo e informativo das escolas, pelas instâncias regionais, quando possível, pode fazer diferença. Também não se deve deixar de lado a dimensão de monitoramento e avaliação do que tem sido feito. Quando tudo passar e as aulas presenciais retornarem, será fundamental lançar mão de avaliações diagnósticas junto aos estudantes que permitam identificar quais são as lacunas de aprendizagem sentidas durante esse período que devem ser foco do ano letivo como um todo. Também será igualmente importante atentar para processos de suporte e acompanhamento não só pedagógico, mas de apoio emocional e de outras naturezas, como financeiro, para os profissionais das escolas. Nesse momento, fomentar uma cultura de aprendizagem coletiva da rede e de reflexão sistêmica sobre os efeitos reais da crise na vida pessoal e educacional de todos os envolvidos pode ser um aspecto fundamental para enfrentar os desafios sentidos e vividos nesse novo cenário.
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Esperamos que as reflexões expostas possam contribuir para que as lideranças educacionais tomem as melhores decisões nesse período complexo e difícil, considerando os desafios e alternativas aqui apresentados e que foram mapeados com a realização dos estudos de caso sobre o uso da tecnologia em dez sistemas de ensino brasileiros.
Em nossa visão, se os esforços das redes se centrarem apenas na realização, a qualquer custo, da carga-horária per si ou na aplicação do currículo por meio do ensino remoto tal como previsto antes da pandemia, sem condições de trabalho adequadas ou sem considerar a importância da escuta dos implicados, suas necessidades, demandas e idiossincrasias produzidas com a crise, podemos ter mais frustração, mais desconexão do processo de aprender com a realidade vivida e sentida pelos estudantes, e gerar ainda mais descrença junto aos gestores, docentes e profissionais das escolas em relação ao potencial uso da tecnologia para qualificar a aprendizagem.
Estamos diante de uma janela de oportunidades para aprofundar a reflexão sobre quais são os processos de ensino-aprendizagem mais eficazes e equitativos considerando cada contexto e cada realidade. Que saibamos aproveitar e que possamos de maneira urgente valorizar a importância do desenvolvimento cognitivo, mas também emocional, físico, cultural das crianças e jovens. Quem sabe se o próprio conteúdo a ser tratado com professores e estudantes passar por essa discussão, talvez já consigamos caminhar um pouco mais.
São Paulo, 22 de abril de 2020.
[1]Texto finalizado em 22 de abril de 2020.
Camila Iwasaki é sócia-diretora da Tomara! Educação e Cultura, cientista social pela USP, mestre em Gestão e Avaliação da Educação Pública pela UFJF e especialista em Gestão de Projetos em Organizações do 3o Setor pela PUC/SP. Clara Azevedo é sócia-diretora da Tomara! Educação e Cultura, é mestre em Antropologia Social pela USP e cientista social pela mesma universidade. Erica Peçanha é doutora em Antropologia Social com pós-doutorado em Educação pela USP, além de pesquisadora do nPeriferias – Grupo de Pesquisa das Periferias (IEA-USP). Erick Rosa é doutor em Comunicação Social pela USP e possui graduação em Comunicação Social e em Ciências Sociais pela mesma universidade. Este texto é inspirado no relatório da Pesquisa sobre o uso da tecnologia nos sistemas públicos de ensino, realizada em parceria com a Imaginable Futures, o BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento e a Fundação Lemann, que contou com a participação dos seguintes pesquisadores: Júlia Serra Y. Picchioni, Ana Luiza Mendes Borges, Felipe Paludetti, Fernando Cespedes, Gláucia Silva Bierwagen, Isadora Silva de Araújo, Larissa Jordão Pino, Maíra Vale, Marina Defalque e Paulo Neves.
[2]Para saber sobre algumas medidas tomadas em âmbito estadual e federal, vale conhecer o levantamento disponível no portal Educação e Coronavírus, coordenado pela pesquisadora Carolina Campos e que conta com apoio do Instituto Unibanco, disponível em: http://educacaoecoronavirus.com.br/consulte-o-levantamento/
[3]85% das 3302 secretarias de educação respondentes de recente pesquisa realizada pelo CIEB disseram não ter estratégia definida para realizar o registro de presença e ou a avaliação de aprendizagem dos estudantes durante o período de distanciamento social, por exemplo. CIEB, Aprendizagem remota em tempos de pandemia. Disponível em https://pandemia.cieb.net.br
[4]Sobre esse tema, vale a leitura do artigo https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/os-impactos-da-covid-19-nas-politicas-publicas-da-educacao-basica/?utm_source=estadao%3Afacebook&utm_medium=link, que menciona também alguns aprendizados que já podem ser percebidos entre os educadores na experiência de ter que conduzir estratégias de ensino remoto sem preparo prévio.
[5]Para acessar a versão traduzida do estudo, ver: https://globaled.gse.harvard.edu/files/geii/files/um_roteiro_para_guiar_a_resposta_educacional_a_pandemia_da_covid-19_reimersschleicher_ceipe_30032020_1.pdf
[6] A pesquisa Sentimento e percepção dos professores brasileiros nos diferentes estágios do Corona vírus no Brasil, realizada pelo Instituto Península coletou dados de 2400 professores e professoras de educação básica de todo o Brasil entre 23 e 27 de março de 2020. Dentre os respondentes, 14,1% dos professores municipais disseram que suas redes estão realizando ações de suporte à distância para os estudantes, contra 36,2% de professores estaduais e 65,3% de professores das redes particulares.
[7] CIEB. Planejamento das Secretarias de Educação do Brasil para Ensino Remoto. (abril/2020/V8). Disponível em: https://cieb.net.br/wp-content/uploads/2020/04/CIEB-Planejamento-Secretarias-de-Educac%C3%A3o-para-Ensino-Remoto-030420.pdf
[8] Para acessar a nota técnica do Todos pela Educação, ver: https://www.todospelaeducacao.org.br/_uploads/_posts/425.pdf?1730332266=&utm_source=conteudo-nota&utm_medium=hiperlink-download
[9] A Nota Técnica que apresenta os principais resultados da fase 1 da Pesquisa sobre o uso da tecnologia nos sistemas públicos de ensino está disponível em:
https://drive.google.com/file/d/1ahAj5-RvQkIUlT_zka6IX8XdQt9tlh8J/view?usp=sharing
A Nota Técnica da Fase 2 ainda não foi publicada.
[10] Diferentes autores vão demonstrar que a tecnologia tem potencial a ser explorado para facilitar a relação entre comunidade escolar, familiares e estudantes (ESCUETA, M. et al. Education Technology: An Evidence-Based Review. Cambridge, MA: National Bureau of Economic Research, ago. 2017. Disponível em: <http://www.nber.org/papers/w23744.pdf>; FGV-CEIPE. Revisões de Literatura de Evidências Educacionais: Relatório Final Tecnologia e Educação. Circulação interna. Fevereiro de 2019.). A aplicação da tecnologia para que alunos e suas famílias tomem melhores decisões em relação ao processo educacional (por exemplo, encorajamento familiar acerca das atividades, melhorias no fluxo informacional entre escola e casa, transição de sucesso para a faculdade e ao longo da graduação e intervenções para desenvolvimento de uma mentalidade mais focada para a educação nos alunos) demonstra ter impactos relevantes, sobretudo quando as mensagens são customizadas para cada família.