OCUPA TIJUCA: O NASCIMENTO DE UM MOVIMENTO SOCIAL
Por Diego Medeiros - professor formado em História (UNIRIO) e Mestre em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH-UERJ).; Luciana Tosta - professora, Licenciada e Mestre em Artes Cênicas (UNIRIO) e Doutoranda em Educação (UFRJ); Monica Bahia Schlee - arquiteta, paisagista e urbanista (UFF), Mestre em Estruturas Ambientais Urbanas (USP), Mestre em Arquitetura da Paisagem (PSU/USA) e Doutora em Arquitetura (UFRJ).
INTRODUÇÃO
“Sonho de uma humanidade que torne o mundo humano, sonho que o próprio mundo sufoca com obstinação na humanidade”.
Theodor Adorno
“Esse é um pensar que percebe a realidade como processo, que a capta em constante devenir e não como algo estático. Não se dicotomiza a si mesmo na ação. ‘Banha-se’ permanentemente de temporalidade cujos riscos não teme”. Paulo Freire
Este artigo tem como objetivo apresentar um panorama das ações do movimento social Ocupa Tijuca com foco em uma de suas ações, em andamento, que consiste na mobilização e no desenvolvimento de instrumentos de conscientização e engajamento social frente à crise sanitária decorrente da pandemia COVID-19. Esta ação engloba a arrecadação e distribuição de cestas básicas, material de limpeza e, sobretudo, a organização, a comunicação e a informação da população de quatro favelas na Tijuca, sobre os cuidados e as medidas necessários para enfrentar a pandemia causada pelo coronavírus[1].
O Ocupa Tijuca é um movimento coletivo, descentralizado, sem hierarquia, de caráter suprapartidário, sem vínculos com doutrinas religiosas, que tem como premissa a gestão horizontalizada e a criação de parcerias para a construção das ações sociais que se propõe a realizar. Seu principal objetivo é contribuir para a emancipação da sociedade, no sentido dado pelo frankfurtiano Theodor Adorno: aquela que possui a potência da transformação em favor da democracia. Para este pensador a emancipação é uma das duas partes da bildung[2], a outra é a adaptação. Todo sujeito precisa se adaptar às regras sociais para viver no mundo organizado, porém, isto não pode prevalecer em detrimento da emancipação, que requer dos cidadãos traços da inadaptação e desenvolvida capacidade crítica e autocrítica (ADORNO, 2000).
O neoliberalismo, além de se valer e de fomentar novos mecanismos de homogeneização de visões de mundo, vem intensificando a opressão e aumentando a desigualdade social, mas este processo não começou há pouco tempo. A História do Brasil nos mostra o quanto, desde a colonização, este quadro é prática hegemônica, imposta pelos novos donos da terra, com o aculturamento do povo nativo e a escravidão.
Adorno aponta para a dialética existente no conceito de esclarecimento: por um lado a razão permitiu o desenvolvimento científico e ampliou os saberes humanos, contribuindo para a evolução das sociedades, porém ela não nos salvou das barbáries, não nos conduziu à emancipação, pois sempre esteve amalgamada a uma determinada formação social e educacional. Por outro lado, este autor defende que o esclarecimento e a formação de uma visão crítica é a única chave para se libertar do obscurantismo que vem sendo um dos principais instrumentos da opressão (ADORNO E HORKHEIMER, 1985); nas palavras de Maar, “trata-se de advertir a razão contra si mesma em nome de si mesma” (ADORNO, 2000, p.20). Impedir que a população desenvolva um pensamento crítico sobre os fatos históricos e a complexidade do mundo e da conjuntura à sua volta é uma das formas de mantê-la sob o julgo da opressão.
Para aqueles que conseguem enxergar a situação do Brasil, que vem se agravando desde 2016, ao reviver mais um golpe contra a democracia e os direitos humanos, forjado para a manutenção dos privilégios da elite e usurpação da soberania nacional, a sensação de impotência pode ser também muito opressora. A partir de 2018 começam a surgir e se recompor diversos movimentos e coletivos sociais.
Neste contexto, agravado pela ascensão ao poder do governo de extrema direita, em 2019 surge o movimento Ocupa Tijuca, formado por pessoas com histórias de vida e formações bastante diferentes, que moram ou se identificam com o bairro da Tijuca e se uniram em prol de um interesse comum: planejar e desenvolver ações que informem a população sobre a violação dos seus direitos. As ações realizadas, esquetes teatrais na rua, papos com os transeuntes, panfletagem sobre as perdas sociais e ambientais, apoio em hortas comunitárias, têm em comum a preocupação com o potencial pedagógico e interativo das ações.
HISTÓRICO
A eleição do atual governo de extrema direita gerou dois movimentos dentro do campo progressista e de esquerda: o primeiro, positivo, ou seja, de pessoas procurando organizações políticas e movimentos sociais para se juntar e resistir ao desmantelamento do estado de direito e das instituições; o segundo, negativo, ocasionado pelo medo de perseguições, prisões, torturas e mortes ocorridas durante a Ditadura Militar no período de 1964 a 1985, e que afastaram muitas pessoas do engajamento político.
A primeira reunião do coletivo contou com cerca de trinta pessoas, reunindo professores, pesquisadores, sindicalistas, médicos, designers e aposentados, a maior parte não vinculada a organizações políticas e/ou culturais. Estiveram presentes pessoas, que - embora ali estivessem não como representantes de instituições e sim como cidadãos - fazem parte do Sindicato dos Professores do Estado e do Município (SEPE) e do Teatro do Oprimido. Nessa reunião o debate gerado levou à conclusão da necessidade de disputar o território e esclarecer a população sobre a violação dos seus direitos sociais. Assim, o coletivo se batizou Ocupa Tijuca, com a proposta de retomar a construção da democracia pela base.
A forma de organização do Ocupa Tijuca se inspira nos movimentos de Ocupação que surgiram no mundo desde 2006 com a Revolução dos Pinguins, no Chile. O coletivo é suprapartidário e horizontal. A assembleia é o espaço deliberativo e onde ocorrem os principais debates, que também acontecem em dois grupos de whatsapp: um formado por cerca de vinte pessoas que formam o núcleo do grupo – este tem o objetivo de organizar as ações encaminhadas pela assembléia – e outro, formado por cerca de oitenta pessoas, parceiros e simpatizantes da causa.
A metodologia de ação se desenvolve a partir de Grupos de Trabalho (GTs): de formação, de organização das atividades e de comunicação. O primeiro tem a função de construir processos de formação de temas prioritários, tirados em assembleia, através da escrita de textos e debates. O segundo busca organizar as diversas ações feitas pelo grupo, como conferências, rodas de conversa, panfletagens, apresentações de teatro, atividades em praças públicas, apoio a hortas comunitárias e atendimento psicológico. O terceiro GT é responsável pela divulgação das ações do coletivo nas redes sociais.
Entre maio de 2019 até março de 2020 (o momento da necessidade de isolamento social), foram realizados três debates sobre a Reforma da Previdência, dois debates para as eleições do Conselho Tutelar, duas panfletagens na Praça Sãens Pena (uma sobre a Reforma da Previdência e outra sobre as perdas dos direitos sociais, os ataques à educação pública e desmantelamento dos órgãos ambientais ocorridas no atual governo) e uma apresentação de teatro na Praça Sãens Pena, também sobre a Reforma da Previdência. Para realizar estas atividades construímos parcerias com sindicatos (SEPE e SINDPETRO); além disso, o Ocupa Tijuca fez o evento Pré-Grito dos Excluídos e participou de iniciativas como o Grito dos Excluídos, assim como de diversos protestos e manifestações.
Outra vertente de ação foi a aproximação e o apoio a coletivos como o Brota na Laje, que tem como principal atuação a realização de um curso de pré-vestibular comunitário que atende jovens das favelas da Tijuca. Através deste coletivo conhecemos o Projeto Formiga Verde que tem como meta a criação de uma horta comunitária no Morro da Formiga. Atuamos na articulação de parceiros de apoio à campanha de doações para montagem da horta e contamos com a colaboração da Associação dos Docentes da UERJ (ASDUERJ), da Associação de Docentes da UFF (ADUFF). Além disso, participamos de reuniões, panfletagens e mutirões para dar início ao projeto. Fizemos também duas campanhas de doação de brinquedos; uma do dia das crianças e outra de Natal, para a comunidade Indiana, uma das localidades que integram a favela do Borel.
Com a chegada da pandemia ao Brasil e ao Rio de Janeiro, as preocupações do grupo se voltaram para uma questão premente: a sobrevivência da população vulnerável moradora das favelas do bairro, em especial das comunidades dos Morros da Formiga, do Borel, Indiana e Salgueiro. Mais uma vez, o princípio que orienta a ação do grupo é a conscientização e seu potencial emancipador, não o assistencialismo, embora na atual situação este se faça necessário.
Os desafios para alavancarmos nossas práticas são grandes, sobretudo neste período de pandemia. Um deles é a dificuldade para obtenção de recursos para promover as ações, o que, com frequência, acarreta dificuldades para realização das atividades nos coletivos. Outro desafio a destacar é a dificuldade de conciliação dos afazeres da vida dos voluntários, que na sua grande maioria são trabalhadores na ativa e vivem o cotidiano asfixiante da atualidade; em suas rotinas de trabalho, estudo, cuidados com a família e com a casa. As ações são planejadas e executadas pelos voluntários, disponíveis naquele determinado momento, para atuar mais ativamente em uma atividade específica. No Ocupa Tijuca existem especialistas em diferentes áreas: assistência social, jurídica, docência, arte, arquitetura, teatro, urbanismo e sociologia, assim como articuladores das comunidades, que se juntaram ao grupo de forma mais engajada na ação contra o coronavírus nas favelas.
Acreditamos que é a identidade dos movimentos sociais que orienta as escolhas das suas ações, e estas são criadas pela heterogeneidade das identidades dos seus membros, nas suas diferentes formações culturais e acadêmicas, de nível econômico, profissões, idades, e desejos.
As escolhas das ações dependem das experiências vividas, de cada integrante e do grupo; como forma de identificação, reconhecimento, pertencimento e maneiras diferentes de conhecer, ler e entender o mundo, que coadunam na percepção e realização dos objetivos do coletivo. As mudanças sociais dependem das vontades, dos valores, dos desejos, daquilo que motiva cada um a agir. Contudo, esses sujeitos estão também submetidos às estruturas sociais objetivas, a questões relativas às classes sociais e à política. Entendemos que a pluralidade agrupada no Ocupa Tijuca enriquece as reflexões e tomadas de decisões; nada está previamente dado, nós vamos (re)construindo as nossas próprias estruturas ao criar novas possibilidades de atuação na sociedade.
A CRIAÇÃO DE UMA REDE DE SOLIDARIEDADE
O Ocupa Tijuca atua dentro do limite territorial da Tijuca e seu entorno, esse bairro com fronteiras flexíveis e diversas favelas superpopulosas e densas, com habitações precárias, pouco ou nada arejadas, com falta de saneamento básico e de circulação de ar. A densidade e a aglomeração são tudo o que o coronavírus precisa para se propagar com rapidez. O grupo social que mora nestas condições está, há décadas, abandonado pelo poder publico, à mercê de um sistema opressor que tem seus alicerces no projeto neoliberal, com prioridade ao lucro, ao mercado financeiro, no consumo e na exploração do trabalhador. Contudo, a epidemia Covid 19 desnudou, aos olhos do Brasil e do mundo, a necropolítica, termo cunhado pelo filósofo Achille Mbembe[3], que rege o atual governo, que não se importa com a degradação e a morte da população trabalhadora.
Diante deste quadro o Ocupa Tijuca começou a construir e fortalecer parcerias - que já vinham sendo estabelecidas com alguns dos articuladores das comunidades - e tomar contato com a situação a que estavam submetidos os moradores das favelas, sem ter como ganhar seu sustento por causa da necessidade de isolamento social. Desta forma, o Ocupa resolveu partir para a ação e surgiu a ideia da campanha de arrecadação virtual Favelas da Tijuca Precisam de Ajuda através de uma vaquinha http://vaka.me/953382. Logo as tarefas foram divididas, os GTs ativados e até o dia 18 de maio, arrecadamos cerca de R$ 18.100,00, além de mantimentos suficientes para montar 14 cestas básicas.
Optamos por dividir os recursos das doações em alimentos e material de limpeza, de acordo com a necessidade de cada lugar, mas para que isso se efetivasse e correspondesse às demandas específicas de cada comunidade, percebemos a necessidade de ampliar o diálogo com os articuladores locais. Desta forma, foi criado o grupo de whatsapp Favelas da Tijuca e, a partir dos questionamentos feitos diretamente aos articuladores de cada comunidade, fomos percebendo que quem sabe o que é preciso é quem está dentro. Como, por exemplo, quando foi relatada a necessidade de contratar um carro de som e faixas para levar informações às diversas localidades da favela, avisando as pessoas da necessidade de se proteger ao ficar em casa e informando sobre medidas de limpeza. Ou, quando os articuladores afirmaram que nossas preocupações nutricionais eram um “preciosismo” e que o que importa nesse momento é matar a fome do maior número possível de pessoas. Assim, percebemos que as boas intenções não são suficientes para entender outras realidades, que mesmo sendo tão próximas geograficamente, são distantes nas necessidades, nas urgências, nos desejos e na conformação das classes sociais.
Uma das principais metas do coletivo Ocupa Tijuca é esclarecer as pessoas menos favorecidas, que sempre tiveram poucas oportunidades de estudo e trabalho, sobre os mecanismos de poder que as oprimem. Estas ações pedagógicas buscam informar sobre direitos, políticas públicas, cidadania, com o objetivo último de emancipar. Percebemos que não adianta dar os materiais sem ensinar como usá-los, como por exemplo, para fazer a limpeza das mãos, dos alimentos, do ambiente ou usar e higienizar as máscaras. Outros dilemas surgiram: Como estabelecer a confiança necessária para esta conversa crucial? Como nos aproximar e reforçar o apelo para ficar em casa, mesmo nas condições que essa população vivencia?
Trata-se de uma oportunidade única para reavaliar e avançar na construção contínua do coletivo, para podermos nos adaptar às demandas da sociedade e desta maneira encontrarmos as respostas mais adequadas em diálogo com a comunidade. Sabemos que estas não serão definitivas e precisarão de revisões periódicas. Seguimos certos de que nossos sonhos começam a se tornar realidade quando os compartilhamos e ajudamos aos outros a encontrar meios de suprir suas necessidades e se emancipar socialmente.
CONCLUSÃO
O Ocupa Tijuca acredita na democracia, na liberdade, na justiça social e na igualdade de direitos e que estas conquistas se dão por intermédio da emancipação humana. Acreditamos ainda que é através do trabalho de base que essa emancipação virá. Diante desse contexto, o papel dos movimentos sociais é o de provocar o sistema, para que este concretize políticas públicas relacionadas às lutas por direitos e também mostrar que outras soluções, calcadas na solidariedade e respeito entre as pessoas, são possíveis.
Ao planejar e realizar as ações o Ocupa pretende dialogar com a população carente sobre as redes de poder que a engendra e viver conjuntamente com eles experiências de solidariedade, companheirismo, responsabilidade, coletividade, democracia, auto-organização, enfim, diversos hábitos e valores fundamentais para que construamos, juntos, as mudanças necessárias para uma sociedade mais justa. Toda essa transformação começa pelo engajamento do povo, a maioria composta pelas minorias.
O corpo formador do coletivo Ocupa possui diferenças internas, como acontece em todo grupo social, mas seus membros se unem por acreditarem nos valores humanistas e traçarem, juntos, metas com um direcionamento comum. Providos de consciência histórica, sentimentos de empatia e de solidariedade, seus membros nutrem em conjunto o desejo por mudanças e acreditam que suas ações possam contribuir para uma sociedade melhor.
O Ocupa Tijuca é um movimento que se estrutura para operacionalizar ações, mas se questiona sobre as estruturas que tendem a enrijecer as próprias ações e hierarquizar seus integrantes. Planos para o futuro? Temos vários, como continuar nossas ações iniciadas antes da pandemia, e ampliá-las, participar de editais para geração de recursos, além de continuar com a campanha de doações.
A razão iluminista jogou seus holofotes sobre as ciências, mas o que surgiu dessa sociedade global foi a ganância capitalista, hoje neoliberal. Sabemos que a tarefa de enfrentar os desafios que surgem nesta caminhada é hercúlea. Porém, também acreditamos que a nova revolução, após a tecnológica, será a do afeto, da empatia, da solidariedade, do velho e esgarçado amor. É isso que nos move.
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação. Tradução: Wolfang Leo Maar. 2.ed. - Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 2000.
________________e HORKHEIMER. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução: Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Revista Arte & Ensaios, ppgav/eba/ufrj, n. 32, 2016.
[1] Cabe destacar que os autores não necessariamente refletem a opinião da totalidade dos membros do Ocupa Tijuca, mas procuram aqui analisar essa experiência que teve início em maio de 2019.
[2] Termo alemão que significa ao mesmo tempo educação e formação cultural.
[3] Um dos objetivos do artigo Necropolítica, segundo seu autor, é discutir “formas de soberania cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material dos corpos humanos e populações”. Para tal, trata das relações entre biopoder, soberania, estado de exceção e políticas da morte; também propõe novos conceitos para tentarmos compreender o mundo atual como: necropoder e mundos da morte, além do de necropolítica (MBEMBE, 2016, p.125).