Dos alicerces do racismo: uma breve reflexão sobre o caso Vini Jr.
Dos alicerces do racismo: uma breve reflexão sobre o caso Vini Jr.
Por Pedro Barreto Pereira*
No último domingo, 21/5, o jogador brasileiro Vinícius Júnior foi vítima de mais uma agressão racista nos gramados espanhóis. As imagens, tão grotescas quanto abjetas, correram o mundo e hoje são amplamente conhecidas. Mas um trecho é especialmente chocante. Um adversário — branco e louro — domina Vini pelas costas, em um golpe conhecido como “mata-leão”. Ao tentar desvencilhar-se, o craque acerta o rosto do algoz que, teatralmente, rola na grama, como se atingido por um míssil. Após checar as imagens selecionadas pelo VAR (sigla para Video Assistant Referee), que deixam de fora o ataque do agressor louro e mostram apenas o revide do futebolista negro, o árbitro decide pela expulsão do brasileiro.
Nas redes, hashtags sobre o caso ganharam os trend topics. Mas nada muito diferente que os já incontáveis casos semelhantes ocorridos anteriormente. O que leva à reflexão sobre como deixar fazer a já desgastada pergunta: “até quando?”. Para tentar responder, recorro a alguma literatura sobre o racismo e os direitos humanos à luz da perspectiva crítica. Frantz Fanon nos ensina que o racismo é herdeiro da colonização. A partir dela, europeus, com o objetivo de saquear riquezas, escravizaram e assassinaram populações inteiras nas Américas, África e Ásia, sem jamais terem respondido por tais crimes.
No Brasil, os povos originários foram exterminados sob o pretexto da “guerra justa”: o fato de indígenas não falarem a mesma língua, nem professarem a mesma fé que os ibéricos justificaria a sua escravização, tortura e morte. O mesmo se passou com as cerca de 5 milhões de pessoas traficadas da África para cá em condição de escravização durante mais de três séculos. E assim, indígenas e negros tinham a própria humanidade arrancada. Se sequer detinham o status de “humano” reconhecido, não poderiam reivindicar direitos.
O processo de desumanização atravessou séculos. Não obstante o ordenamento jurídico, a legitimação discursiva do racismo se manteve. Gilberto Freyre, conhecido como um dos maiores intelectuais deste país, escreve Casa-grande & senzala, em 1933, defendendo que a miscigenação seria benéfica para o caráter brasileiro. Foi preciso que Abdias Nascimento, em 1977, contestasse Freyre, atestando o que denominou de “mito da democracia racial”: por trás da máscara de um país harmoniosamente mestiçado estavam, isso sim, a violência, o estupro, o açoite.
Na Europa e no Brasil, como visto, o racismo tem raízes profundas. E elas estão presentes mesmo onde não são visíveis. A perspectiva crítica dos Direitos Humanos questiona o caráter “universal” da Declaração da ONU de 1948, pois ela seria oriunda do pensamento liberal eurocêntrico. Lembremos ainda que o documento foi firmado após o holocausto nazista, que vitimou 11 milhões de pessoas, embora a narrativa dominante fale nos “apenas” 6 milhões de judeus mortos nas câmaras de gás e não nos negros, ciganos, homossexuais, comunistas, entre outras vítimas lidas como “não-arianas”. Voltando um pouco mais, em 1945, o Tribunal de Nuremberg julgou e condenou oficiais alemães, mas não os estadunidenses e dos demais países que compunham o bloco dos “aliados”, que cometeram os mesmos crimes de guerra e contra a humanidade. Do mesmo modo que espanhóis, portugueses, ingleses, franceses, italianos, belgas, holandeses etc., até hoje não são lembrados pela narrativa hegemônica pelos horrores perpetrados fora de seus continentes.
O teórico da Filosofia do direito e político grego Costas Douzinas defende que não são os homens que fazem o direito, mas sim que o direito constitui o homem. Para ele, é a partir do entendimento de que um indivíduo possui direitos que ele pode ter o seu status de “humano” reconhecido. Douzinas e outros autores filiados à teoria crítica questionam a ideia de “ponto de chegada”: estaria mesmo encerrado o debate sobre um direito fundamental no momento em que ele é positivado? Outro aspecto de ressalva seria o jusnaturalismo: seríamos todos igualmente portadores de direitos a partir do dia em que nascemos? Como já mencionado, outra característica problemática da perspectiva tradicional seria o universalismo: como poderia ser universal o entendimento de direitos em um mundo tão culturalmente diverso?
Derrubando os alicerces
Diante de tantas controvérsias, o teórico espanhol Joaquim Herrera Flores afirma que é preciso uma “filosofia impura” dos Direitos Humanos, relacionando o entendimento ideal desses direitos com a realidade social dos indivíduos que têm a sua dignidade violada. Segundo Flores, Douzinas e outros/as autores/as, não será o ordenamento jurídico puro e simples que garantirá a efetividade dos direitos. Apenas a luta social, permanente e cotidiana.
Desse modo, podemos concluir que não bastarão hashtags, notas de repúdio, placas de publicidade à beira do gramado, cinicamente clamando “não ao racismo”. São os mesmos autores desses dizeres que, se não incentivam a violência e a opressão racistas, são coniventes, fingindo não ver quando um jogador negro é ofendido, agredido e humilhado. Evidente que o racismo não está apenas no futebol, nem somente na Europa. Em seu DNA estão os genes do colonialismo e do capitalismo. Por isso, se manifesta e se reproduz em todo o mundo, ainda que disfarçado, ou hipocritamente tolerado.
Este texto propôs um olhar a partir da imbricação das diferentes formas de opressão do homem pelo homem que estruturam o mundo em que vivemos. Isso em pleno 2023. Não basta, portanto, retocar a parede e esconder o que está por trás da tinta branca. É preciso derrubar a casa e reconstruí-la sobre novos alicerces. E nessa luta, é preciso reunir não apenas as pessoas que sofrem cotidianamente com violações de seus direitos e liberdades. Mas sim, todas aquelas que acreditam na importância de um mundo menos desigual para si, seus filhos e as futuras gerações.
*É jornalista, doutor em Comunicação pelo PPGCOM/UFRJ, professor substituto do Nepp-DH/UFRJ, professor colaborador do PPGMC/UFF e autor do livro “Notícias da pacificação: outro olhar possível sobre uma realidade em conflito” (Editora UFRJ, 2020).