DITADURA NUNCA MAIS

2020-03-29

As sociedades democráticas não comemoram o terror, não celebram a barbárie, não festejam a morte, a injustiça e a dor, não glorificam os algozes e os tiranos.

Por João Ricardo Dornelles - Professor do Departamento de Direito da PUC-Rio; Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio; Membro da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (2013-2016).

Há 56 (cinquenta e seis) anos atrás, na madrugada de 31 de março para 1 de abril (dia da mentira) do ano de 1964, tropas do exército, comandadas pelo General Olímpio Mourão Filho, saíram de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro, dando início ao levante militar que rompeu com o Estado Democrático de Direito e tirou violentamente João Goulart (Jango) da Presidência da República. Iniciava-se um longo período de 21 anos de ditadura empresarial-civil-militar. Uma longa noite escura, sem luar e sem estrelas. Uma noite de terror e medo que se abateu sobre o Brasil.

Hoje, 56 anos depois, após outro golpe contra a democracia realizado em 2016, temos um regime autoritário, com tonalidades fascistizantes sob o comando de Bolsonaro. E a guinada para a extrema-direita estimulou todas as formas de revisionismo histórico sobre os acontecimentos terríveis de março de 1964 que deram início aos anos de chumbo, chegando ao absurdo de o presidente Bolsonaro pedir que as unidades militares celebrem a data (mentirosa) de 31 de março.  

Mortes, execuções, desaparecimentos, torturas, exílio, censura, concentração da riqueza nas mãos de poucos, ódio e intolerância fazem parte do legado da ditadura empresarial-civil-militar.

Há exatamente 56 anos, como hoje, o Brasil vivia um clima de conflito, com o delírio de setores conservadores das classes médias e altas vendo inimigos comunistas por todos os lados em plena histeria coletiva.

A histeria tomava conta da tradicional, pacata e moralista família brasileira. Classes ricas, burguesia urbana e senhores de terras sentiam-se aviltados por um governo que prometia algumas reformas e uma distribuição um pouco mais justa da riqueza nacional.

E esta histeria vinha de longe, vinha desde o pós-guerra, ganhando cores e alarido mais turbulento com a eleição de Getúlio Vargas para Presidente da República, chegando ao ponto culminante em agosto de 1954, quando as forças da retrógradas e do golpismo já preparavam a derrubada do mandatário da nação, democraticamente escolhido pela população brasileira.

Mas a história não é apenas uma sucessão de acontecimentos sem sentido político, também é resultado da ação política dos seres humanos, sujeitos coletivos que podem mudar o seu rumo, como ocorreu com o disparo que tirou Vargas da vida e o colocou na história. A ação humana adiou por dez anos o golpe anunciado pela direita em 1954. Isso não significou, no entanto, que a conspiração tenha cessado. Ao contrário, não apenas continuou, como foi aprimorando as suas táticas e práticas, foi buscando ampliar a sua base de apoio, foi organizando instituições com o objetivo de criar um senso comum favorável ao golpe.

Apesar do freio na conjuntura golpista, a morte de Vargas não foi suficiente para fazer cessar a conspiração. Em nenhum momento destes quase dez anos que vão da morte de Getúlio à derrubada de Jango a direita atrelada aos interesses do capitalismo internacional deixou de conspirar e preparar o golpe. Na verdade, apenas com a vitória de Jânio Quadros, em 1960, a direita, os conservadores, os reacionários, os conspiradores respiraram aliviados. É verdade que o alivio das elites conservadoras durou pouco tempo, já que em 25 de agosto (mais uma vez agosto) de 1961, poucos meses após a sua posse, aquele que “varreria bandalheira”, saiu de cena, renunciou. Talvez sonhasse com o apelo popular para a sua volta triunfal, talvez por simples inconsequência ou inconsistência da sua capacidade de governar. Enfim, mais uma vez, a direita, os golpistas de sempre, as elites oligárquicas, os conspiradores reacionários, o capital internacional dominado pelos Estados Unidos da América, ficaram com os pelos arrepiados, já que a perspectiva constitucional era a posse do Vice-Presidente João Goulart (Jango), que se encontrava em viagem oficial na China.

O susto que abalou as forças conservadoras apontou para mais uma tentativa de golpe (afinal as nossas elites oligárquicas são consequentes e altamente previsíveis no seu menosprezo pela democracia). Mais um golpe foi tentado, um golpe “branco”, com o veto militar à posse de Jango. Mas também foi um momento histórico notável com  mais uma demonstração de grandeza, de luta, de destemor e de virtude do nosso povo e dos trabalhadores que resistiram, através da Campanha da Legalidade, lançada pelo Governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que ganhou as ruas de Porto Alegre para ocupar todo o país e garantir a volta e a posse de Jango.

No período do governo Jango, a luta por transformações sociais ganhou maior destaque e o próprio governo chegou a anunciar as Reformas de Base como políticas públicas que poderiam dar um sentido mais justo para a sociedade brasileira.

Enquanto isso se conspirava abertamente. Nas semanas anteriores ao golpe que impôs a primeira das ditaduras militares do Cone Sul da América do Sul, as classes médias e altas encheram as ruas de São Paulo com a “Marcha com Deus e a Família pela Liberdade” contra a “ameaça comunista” que estaria rondando o país. Marcha  que foi repetida no Rio de Janeiro já com o golpe realizado.

À direita, a UDN (União Democrática Nacional), parte dos militares, capitalistas internacionalizados, Igreja, conservadores e reacionários, todos conspiravam contra Jango, contra a democracia, contra os tímidos avanços sociais anunciados pelo Presidente.

E veio o golpe, na madrugada de 1º. de abril de 1964, com as tropas de Minas descendo e ocupando o Rio de Janeiro, com a farsa armada no Congresso Nacional quando o presidente do Senado, Auro Moura de Andrade, declarou vaga a presidência da República, pois o Presidente João Goulart teria “abandonado a sede do governo e deixado o país acéfalo”, estando Jango em território nacional, em Porto Alegre. Uma farsa protagonizada por canalhas, senadores canalhas, deputados canalhas, militares canalhas, elite canalha, imprensa canalha, classes médias canalhas... como bradou Tancredo Neves em pleno Congresso Nacional: “Canalhas, Canalhas, Canalhas...”.

Na madrugada de 31 de março para 1º de abril de 2020 completamos 56 anos do golpe empresarial-civil-militar que rompeu com a ordem democrática, rasgou a Constituição e derrubou o Presidente João Goulart dando início aos 21 anos de terror de Estado.

Ainda nos primeiros dias do novo regime iniciou-se a perseguição em massa dos auxiliares do governo anterior, dos membros e parlamentares do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), do Partido Comunista Brasileiro, dos outros partidos e organizações de esquerda, dos sindicatos, das Ligas Camponesas, da União Nacional dos Estudantes (UNE). As prisões em massa, as torturas, as primeiras mortes, a censura, o fechamento dos partidos políticos, as cassações de mandatos, foram o cartão de visitas do novo regime ditatorial. Apenas nos primeiros meses de 1964 mais de 50 mil foram presos e torturados. Muitos outros foram mortos. Causa espanto, para qualquer ser civilizado, a imagem de um senhor idoso, Gregório Bezerra, militante do Partido Comunista Brasileiro, , sendo arrastado, acorrentado, pelas ruas do Recife.

O golpe trazia uma novidade. Não se tratava mais das quarteladas tradicionais da América Latina. Era um movimento político que inaugurou uma nova prática que se estendeu pela Argentina, Uruguai e Chile e que tinha por fundamento a Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento[1]. Um movimento que, além do contexto da guerra fria, se atrelava às necessidades do processo de acumulação capitalista transnacional. O regime ditatorial implantado pelo golpe possibilitou uma política econômica baseada na modernização conservadora, dependente, socialmente excludente, concentradora da riqueza.

E esta característica modernizadora e empresarial foi fundamental para a construção do aparato repressivo, da nova institucionalidade ditatorial, do aperfeiçoamento das instituições autoritárias, dos serviços de censura, de vigilância, controle e repressão e, especialmente, do aperfeiçoamento das técnicas de contra insurgência, de informação e de investigação. A tortura, as execuções, os maus-tratos e a violência - práticas sempre presentes na nossa história - passaram a ser matéria para os agentes recrutados pela ditadura.

O financiamento dos órgãos de repressão vinha dos empresários, com apoio de ministros e autoridades econômicas do regime. A Operação Bandeirantes (OBAN) foi organizada com a “vaquinha” promovida por autoridades, grandes empresários e banqueiros. Muitos financiaram a dor, a morte o sofrimento, a barbárie. Existe uma linha direta, uma relação direta entre a sala de tortura, o pau de arara, a “geladeira”, a criação do DOI-CODI, a “Casa da Morte” de Petrópolis (como outras espalhadas pelo país) e as fontes de financiamento empresariais. Aqueles que, em última instância, se beneficiavam do modelo de desenvolvimento da ditadura.

O que surpreende é o longo, inacabado e complexo processo de transição democrática que teve início nos de 1980 e que ainda deixa marcas três décadas depois. Marcas do que resta da ditadura e das práticas políticas dos órgãos repressivos com um alto grau de violência, arbitrariedade e ilegalidade no âmbito de uma sociedade formalmente democrática. Até o golpe de 2016 o processo de transição democrática, iniciado na década de oitenta do século passado, permanecia inconcluso, tendo sido marcado por uma intensa batalha hermenêutica sobre o passado. É justamente através da desconstrução da narrativa oficial da história dos vencedores e da recuperação da narrativa das vítimas, através do seu testemunho sobre as práticas de terror de Estado, é que teria sido possível concluir o prolongado processo de transição.

Após o golpe de a 2016, e após a eleição de forças ultra-reacionárias de extrema-direita, com a  formação de um bloco ultra-conservador composto de militares, evangélicos, proto-liberais, lavajatistas, políticos tradicionais e “terraplanistas bolsonaristas”, a questão da luta democrática antifascista passou a ser o centro para a formação e fortalecimento de um bloco popular e democrático que tenha como centro de sua atuação a luta pelas Liberdades Democráticas, por Direitos Humanos, por renda mínima, por saúde pública universal de qualidade, por políticas públicas sociais e contra a pauta do capitalismo neoliberal.  

No Brasil as políticas de esquecimento, conciliação e repetição de graves violações de direitos humanos foram e continuam sendo um sucesso. A sua história está marcada pelo autoritarismo, a exclusão de amplas massas, pelo elitismo e pela violência  sistemática e massiva contra a população brasileira.

A reflexão contemporânea sobre as violações sistemáticas de direitos humanos nos remete ao campo do direito à verdade, a memória sobre o passado de horror e a luta por justiça e reparação. Revela também que tratar o passado de violações e das suas vítimas é constatar que o presente está marcado pela continuidade das violências, pela barbárie e a produção de novas vítimas. Demonstra que o sucesso das políticas de esquecimento e conciliação levou ao processo da permanente repetição das políticas de exceção e das práticas de terror.

O modelo da ditadura brasileira apresentou uma característica fundacional, que possibilitou a consolidação e a articulação na Operação Condor, de outras ditaduras no Cone Sul do continente sul-americano. Também aprimorou técnicas e práticas repressivas e políticas de exceção que continuam sendo utilizadas pelos órgãos de controle social penal em plena ordem constitucional democrática, especialmente nas políticas de segurança pública com o alvo nas populações mais pobres e nas áreas periféricas, como também nos processos de criminalização das manifestações públicas e do protesto social. Foi durante o regime militar que se aprofundou a militarização das polícias e se aprimorou as “técnicas” de tortura, execuções e desaparecimento de pessoas, realidade presente nas políticas de segurança pública e no tratamento de conflitos de natureza social.

O paradigma do eficientismo penal, adotado através das políticas de confronto e da criminalização das questões sociais, com as ações repressivas atingindo diretamente os segmentos sociais mais pobres e miseráveis, consolidou um modelo militarizado e as práticas de exceção. Os governos de Bolsonaro, no plano federal, e de Witzel e Dória, no Rio de Janeiro e São Paulo, aprofundam as características repressivas genocidas, cujo alvo principal são as populações mais pobres, trabalhadores da cidade e do campo, indígenas e negros. E vivemos hoje um cenário agravado pela crise do coronavírus e a vulnerabilidade ampliada de grandes segmentos da nossa sociedade.

A pesquisa “The Justice Cascade and the Impact of Human Rights Trials in Latin America”, realizada por Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling sobre os processos de transição democrática na América Latina demonstrou que existe uma relação entre a aplicação dos mecanismos de justiça de transição (julgamentos; comissões da verdade, políticas de responsabilização dos agentes do Estado perpetradores de violações contra os direitos humanos) e o nível de continuidade de violações dos direitos humanos nos países pesquisados. As pesquisadoras utilizaram um critério de medição chamado Escala de Terror Político (PTS - Political Terror Scale), que vai de 1 a 5, medindo as violações mais graves como execuções sumárias, tortura, desaparecimento, prisões arbitrárias etc. Os resultados apontaram que nos países onde os mecanismos da justiça de transição foram aplicados e resultaram em responsabilização dos agentes pelos crimes de massa cometidos durante os períodos de exceção, houve uma diminuição significativa das violações contra os direitos humanos no período democrático. A Argentina e o Chile estavam num nível alto de violações no período das ditaduras (perto de 5). Com a democratização, após a ação das comissões da verdade, o julgamento e condenação dos agentes violadores, o nível baixou de forma intensa (chegando a cerca de 2).

Dentre os países pesquisados pelas autoras, o Brasil foi o único que, na época, ainda não havia instalado uma comissão da verdade ou julgado os agentes públicos responsáveis pelos crimes contra a humanidade. No Brasil, com a sua política de esquecimento e incompletude dos mecanismos da justiça de transição, verificou-se que houve um aumento na escala PTS. A partir da democratização as violações de direitos humanos (torturas, prisões ilegais, desaparecimentos, execuções sumárias, autos de resistência etc) não só continuaram como sofreram um aumento significativo. É a lógica da repetição, a continuidade, da permanência histórica de práticas de terror de Estado. Com o golpe de 2016, a intervenção militar federal no Rio de Janeiro e a eleição de governos, federal e estaduais, com características antidemocráticas e fascistizantes está sendo aprofundada a tendência do aumento de graves violações de direitos humanos.

As Comissões da Verdade - como mecanismos da Justiça de Transição -, juntamente com os movimentos de direitos humanos, as organizações de familiares de mortos e desaparecidos, movimentos populares, entidades como a OAB, mesmo com suas limitações, desempenharam um papel importante de ruptura com a lógica da repetição histórica das violações sistemáticas e massivas de direitos humanos. Também foram um instrumento importante para revelar os crimes cometidos durante a ditadura militar, apontando os responsáveis por tais atos, identificando as cadeias de comando e as fontes de financiamento empresarial para as práticas do terror de Estado. Nas suas recomendações apresentaram propostas de políticas públicas de não repetição.

Os retrocessos civilizatórios, com o golpe de 2016 e o revisionismo histórico imposto pelo governo Bolsonaro em relação à ditadura militar e às conquistas das décadas anteriores, recolocam a questão da memória, verdade e justiça como um campo de luta política sobre as narrativas da história brasileira.  

Para se construir a paz social no presente e no futuro, não se pode perder de vista a vigência das injustiças passadas e a atualidade do sofrimento imposto. Como também articular as injustiças e violências do passado com as violências que no presente se repetem de forma intensa. E é a memória das vítimas que pode contribuir como condição necessária para romper com a lógica das violências do passado que se reproduzem no presente.

Assim, hoje, dia 31 de março de 2020 ou amanhã, 1º de abril de 2020, nada temos a comemorar. As sociedades democráticas não comemoram o terror, não celebram a barbárie, não festejam a morte, a injustiça e a dor, não glorificam os algozes e os tiranos. Somente personagens políticos antidemocráticos, sociopatas, amorais e antissociais enaltecem torturadores, elogiam execuções e perseguições, exaltam e gozam e sentem prazer com o sofrimento e a dor do outro.

O que se impõe é um exercício de memória coletiva, lembrando a nossa história, nossas vítimas, nossas dores e sofrimentos, para que NUNCA MAIS SE REPITA.

PELAS LIBERDADES DEMOCRÁTICAS !!!

TORTURA NUNCA MAIS !!!

DITADURA NUNCA MAIS !!!

 

 

 


[1] A Doutrina da Segurança Nacional (DSN) foi elaborada pelos militares norte-americanos no período da guerra-fria. O principal inimigo, na visão da DSN, é o marxismo-leninismo, com a ideia de que a luta de classes se trava em todas as esferas da vida social. Ver COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional – O Poder Militar na América-Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 1978.