SE O SUS ESTÁ MAL, QUEM ESTÁ BEM?
Por Matheus Oliveira de Paula - Estudante de Graduação de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e estagiário no Hospital Federal dos Servidores do Estado (HFSE). [1]; Cinthia de Mello Vitório[2] - Assistente Social do Hospital Federal dos Servidores do Estado (HFSE), Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Especialista em avaliação em saúde pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP).
Para delimitar algumas reflexões sobre o contexto atual da pandemia do coronavírus, vale-se de resgatar um pouco da história da construção e desconstrução do sistema de saúde brasileiro, tecendo uma pergunta “Se o SUS está mal, quem está bem?”.
O contexto vivido pela pandemia de coronavírus é inédito na história da humanidade, entretanto, sua forma de expansão e a dificuldade de contenção de contágio refletem vultuosamente as relações sociais vigentes que vêm sendo reproduzidas cotidianamente. Avista-se, analogamente, quem sentiu, sente e sentirá em maior grau as reverberações da crise sanitária, política, econômica e social que está se sucedendo, tendo raça, gênero e classe delimitada.
A formação social e histórica brasileira foi estruturada por diversos processos que conformaram as desigualdades e as opressões/explorações vivenciadas cotidianamente. No processo de construção do país, o massacre dos povos originários e o alijamento da grande parte da população dos espaços decisórios, fundamentado em práticas racistas, patriarcais, patrimonialistas e clientelistas deu a métrica para as políticas públicas e atuação do Estado. Nesse processo, o Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão, coabitando, ainda hoje, com o racismo sistêmico – estrutural e institucional – reproduzindo na quadra contemporânea o genocídio da população negra.
A história da construção do SUS – Sistema Único de Saúde – caminhou conjuntamente com a história da construção da democracia brasileira, depois da queda do regime civil-militar, que assolou o Brasil durante 21 anos. Na efervescência dos processos de redemocratização da sociedade brasileira a saúde foi um tema central e amplamente discutido por diferentes sujeitos, em distintos espaços. Frisa-se a 8ª Conferência Nacional de Saúde, como um marco na luta pela democratização da sociedade e pela compreensão da saúde como um direito social, afastando-se do entendimento apenas biomédico e compreendendo todas as determinações sociais, políticas, psicológicas e físicas que o conceito de saúde implica.
Nesse fio condutor, saúde ganha um capítulo na Constituição de 1988 como um direito de todos e dever do Estado Brasileiro. Saúde, não significa mais, tão somente, a assistência médica direta – hospitalar – mas abrange toda uma amplitude de direitos sociais que determinam e refletem os índices de saúde de uma sociedade. Desse modo, como proposto no relatório final da 8ª Conferência Nacional de Saúde:
em seu sentido mais abrangente, a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio-ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. (BVS/MS,2020, p.12)
No plano constitucional, como idealizado por muitas mulheres e homens, a questão entorno da saúde mostrou-se arrojada e ousada, ao intentar dar saúde para todas e todos em um país de dimensões continentais e com uma vasta multiculturalidade dentro de seu território. Contudo, a prática desse amplo processo de construção de um sistema de saúde universal não se consolidou como previsto, em face disso, o que houve foi uma contrarreforma do Estado, visando a retomada de superlucros dos grandes capitais e a reedição da subordinação nacional ao capital estrangeiro, em sua fase imperialista, como métrica constante nos países latino-americanos.
Não obstante, é indiscutível os importantes avanços que o SUS teve durante os anos, no que se refere a ampliação do acesso aos serviços de atenção básica e aos programas e portarias ministeriais que criaram políticas específicas e coordenadas para os diferentes sujeitos que utilizam o sistema de saúde, além disso, na contracorrente de todo o subfinanciamento, grande parte dos programas e projetos obtiveram êxito e continuam atendendo e diminuindo as iniquidades sociais em saúde.
É decerto que o SUS já faz parte da vida de toda a população brasileira, de diferentes formas, todos utilizam o SUS, entretanto sua percepção se dá de diferentes maneiras entre os sujeitos envolvidos. Se por um lado, seus serviços são vistos apenas na assistência à saúde, visto a hegemonia da compreensão de saúde como, meramente, ausência de doença e o cuidado apenas no âmbito médico hospitalar, por outro temos um emaranhado de políticas desenvolvidas no SUS que vão desde a pesquisa até a promoção em saúde, prevenção de agravos, vigilância sanitária e educação e comunicação saúde, que em épocas de pandemia é fundamental o seu fortalecimento.
No presente momento, da pandemia de coronavírus, torna-se imprescindível ampliar ainda mais o debate sobre os determinantes sociais do processo saúde doença. Se o conceito ampliado de saúde já é discutido há alguns anos no ambiente acadêmico e nos movimentos sociais, além da formalização constitucional, temos ainda um grande óbice na generalização e ampliação desse debate na sociedade civil. Os determinantes sociais:
(...) estão relacionados às condições em que uma pessoa vive e trabalha. Também podem ser considerados fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrências de problemas de saúde e fatores de risco à população, tais como moradia, alimentação, escolaridade, renda e emprego. (FIOCRUZ/PENSESUS,2020)[3]
A relação com os determinante sociais se dá de sobremaneira importante devido a conexão com a realidade social vivida pelos indivíduos e as diferentes formas de agravos para os sujeitos individuais e coletivos, bem como as desigualdades sociais, raciais e de gênero relacionadas ao processo saúde doença que afetam de diferentes maneiras a coletividade e a subjetividade individual.
Na contracorrente dos avanços consolidados constitucionalmente, o panorama que foi posto para a construção do sistema de saúde articulou-se na segmentação do sistema entre o público e o privado, inviabilizando um sistema de saúde universal. O setor privado, que seria organizado de forma suplementar [4] e coordenado pelo SUS, ganhou novas dimensões devido ao subfinanciamento crônico do SUS e o tímido controle sobre a saúde suplementar, priorizando o mercado privado de saúde frente a saúde pública como direito social e de cidadania.
Ao mesmo tempo em que se dialoga sobre saúde, deve-se atentar que ela se constitui e atribui sentido pensada de forma articulada a seguridade social brasileira, no qual faz parte do tripé saúde, previdência e assistência social. Nesse sentido, seu financiamento está vinculado a receita da seguridade social, o qual tem diversas bases de financiamento e deve ter articulação intersetorial entre as políticas para precisa consecução.
Sabe-se, que o financiamento adequado da seguridade social não vem sendo seguido desde a constituinte, tornando-se uma barreira na concretização da seguridade social. Não obstante, mecanismos como a DRU[5] – Desvinculação das receitas da união – que permite o uso de 30% dos tributos federais vinculados por lei, com despesas “prioritárias” para a realização de superávit primário, além do pagamento para a dívida pública, oneram os recursos que são destinados para as políticas públicas e sociais, como a saúde.
Alia-se a esse panorama a Emenda Constitucional 95, a qual congela os gastos e despesas públicas com a área das políticas sociais por 20 anos, desfinanciando o SUS, causando perdas desmedidas que se demostram na piora das condições de vida da população brasileira a curto e a longo prazo. O Conselho Nacional de Saúde mostrou que as perdas para o SUS, somente em 2019 foi de R$20 bilhões, podendo chegar a R$ 400 bilhões em 20 anos (MS/CNS,2020)
Esse panorama reforça o ajuste fiscal adotado na área das políticas públicas e sociais brasileiras, reposicionando e priorizando o pagamento da dívida pública e o compromisso com o grande capital frente as necessidades da população brasileira. Corroborando o cenário de Contrarreformas aplicadas, reiterando o Estado máximo para o capital e o mínimo para a classe trabalhadora. As perdas para o sistema de saúde representam, sobretudo, um estrangulamento para a saúde pública e um reordenamento ainda maior para o setor saúde de dependência da saúde privada, se o SUS caminhava com um grave subfinanciamento crônico, mostra-se um horizonte de desfinanciamento (MS/CNS,2020).
Esse cenário fragiliza todas as ações e serviços de saúde e se demostra mais aparente nas ações de assistência – importante salientar, que não deve haver priorização de ações frente a outras, entretanto, as ações que se demostram em maior destaque são as ações de assistência [6]– havendo uma progressiva falta de profissionais de saúde, mostrando-se como um grave problema os recursos humanos em saúde, pressionado pela falta de plano de carreira e salários, agravado, além disso, pelas recentes e constantes terceirizações do setor saúde, flexibilizando as relações e contratos de trabalhos, que são dadas pela enredo das OSs – Organizações sociais.
Incorporando ainda, nesse processo, a falta de investimento em infraestrutura das unidades de saúde, no complexo industrial e hospitalar e nas áreas da pesquisa, bem como a falta de equipamentos básicos, materiais hospitalares e medicamentos que as unidades de saúde enfrentam. Esses problemas enfrentados revelam na superlotação das unidades de saúde, na lentidão das consultas e procedimentos e na sobrecarga de trabalho nos profissionais de saúde. Pesa-se que, em oposição a falta de recursos, as (os) pesquisadoras (es) brasileiras (os) contribuem fortemente para a pesquisa nacional e internacional.
O discurso construído e estabelecido em grande parte do ideário social é o da ineficiência do público, contrapondo ao privado, como eficaz e eficiente, de maneira que a solução, então, é a gestão privada, colocando à disposição do mercado a saúde. O problema aparece de forma mistificada, em um discurso no qual há um “problema de gestão”, não havendo falta de recursos, mas a forma como são geridos. Essa prática atrela-se ao discurso neoliberal, tendo a mercantilização dos direitos sociais e da vida como finalidade. Contudo, mesmo as constantes evidências de que as privatizações deterioram os serviços prestados e as condições de trabalho, as medidas levadas a cabo pelos governos continuam no alinhamento e reforço do projeto neoliberal e privatista.
Nesse processo, a precarização gradativa dos direitos trabalhistas mostra a desproteção social generalizada com a qual a classe trabalhadora convive cotidianamente, fundamentada ainda pela atualidade do discurso do empreendedorismo como a nova alternativa para o desemprego, maquiando a informalidade, retórica tal, que é amplamente difundida pela grande mídia e corporações do mercado financeiro. Reposiciona-se o discurso sobre a burocracia da máquina estatal, como ineficiente e impeditiva do acesso aos direitos sociais, com a pretensão de deslocar para o “terceiro setor” as políticas públicas e os direitos sociais. Salienta-se o esfacelamento das políticas sociais realizadas pelas Contrarreforma Trabalhista e Contrarreforma da Previdência.
Se o panorama neoliberal já vem sendo realizado desde a década de 1990, com particularidades e especificidades de cada governo e gestão, no atual momento temos uma ofensiva ainda maior por parte do recente governo. Nesse sentido, há um processo em curso de desresponsabilização do Estado como responsável pela garantia de direitos sociais, ao mesmo tempo em que há uma moralização gradativa da vida social e das expressões da questão social, no qual é naturalizado um processo de culpabilização individual, considerando a desigualdade social um processo “natural”, negando o caráter social e histórico, vinculada a forma de organização da vida social, do processo de produção e reprodução das desigualdades pelo modo de produção capitalista.
É aviltante o desprezo pela vida, pela humanidade, pelo meio ambiente e pelos direitos humanos que o atual governo brasileiro leva a cabo em suas políticas e declarações públicas[7], que configuram axiomático descompasso com as autoridades de saúde mundial, as quais compartilham a devida preocupação com a pandemia instalada e com o aumento no número de mortes no mundo inteiro, o presidente contraria as medidas de isolamento social, pedindo inclusive o fim delas.
No meio do aumento de mortes pela COVID-19 e a disseminação da contaminação pelo coronavírus, que no dia 18/05/2020 já somavam 16.118 mortes e 241.080 casos confirmados (G1,2020), em uma lastimável perda para as famílias e para a sociedade brasileira. A pandemia é constantemente minimizada pelo Presidente da República, chamando, inclusive de “gripezinha”, em uma de suas declarações públicas, ostentando um contínuo desrespeito com as vítimas e seus familiares. Além de contribuir para a fragilização e deslegitimação das medidas de prevenção e disseminação do vírus.
A instabilidade política instalada, já levou a substituição de dois Ministros da Saúde no meio da pandemia, devido as divergências entre o Presidente da República e as orientações do Ministério da Saúde e das autoridades de saúde mundiais, como a OMS – Organização Mundial da Saúde – em relação a continuidade do isolamento social, o qual o presidente demostra descontentamento e pede a reabertura da atividade econômica, estabelecendo um “isolamento vertical”, além de defender o uso do medicamento Cloroquina, com poucos estudos clínicos e insuficiente eficácia no tratamento da doença. Além disso, os constantes conflitos públicos entre Governadores e Prefeitos com o Presidente dificulta a pactuação de estratégias de enfrentamento conjunto. Em um momento de grave crise sanitária mundial, autoridades brasileiras ainda minimizam a pandemia, causando um mal estar nas relações exteriores, que se asseveram como importantes para a contenção da disseminação do vírus, a pesquisa científica e a proteção social dos mais vulneráveis.
Torna-se mais evidente ainda o desemprego estrutural da sociedade brasileira, que nos últimos anos tem-se demostrado crescentes devido à crise estrutural capitalista e as modificações contemporâneas no processo produtivo, com a flexibilização e desregulamentação do trabalho. As relações de subemprego e de trabalho informal que sempre caminharam conjuntamente na história recente brasileira, ainda pressionado pelo passado – e presente – escravista e patriarcal, no qual o mercado de trabalho formal alija negras (os) e mulheres dessas posições. No mesmo sentido, o trabalho por “home office”, ou trabalho remoto, no qual hoje há um reordenamento para essa atividade, não é a realidade da maior parte das (dos) trabalhadoras (es) brasileiras (os).
A crise sanitária mostra-se sobreposta por uma crise de caráter estrutural do modo de produção capitalista, com mais envergadura no Brasil, um país da periferia do capital, no qual as desigualdades se asseveram cada vez mais, agravadas pela superexploração e pelo imperialismo. Nesse sentido, é notável a pressão pela volta da atividade econômica e reabertura dos mercados, preconizada por grande parte da burguesia brasileira e pelo presidente, demostrando o caráter evidentemente classista nas falas.
A falsa dicotomia entre saúde e economia, mascara o caráter mais substancial da sociedade capitalista contemporânea e as expressões mais cruas do neoliberalismo, demostrando a incapacidade da provisão de uma proteção social brasileira robusta e universal, bem como a ineficiência na garantia dos direitos humanos que se demostram extremamente necessários para a manutenção do isolamento social e da proteção da vida dos indivíduos e da coletividade. A economia é posicionada acima da vida, o que já vem há muito sendo denunciado e criticado pelos movimentos sociais e pelas pautas dos movimentos emancipatórias, processo há muito em curso com a mercantilização da saúde e dos direitos sociais.
É notório nesse processo, que mesmo com um sistema de saúde pública universal, tão potente, constitucionalmente, como o SUS, o Brasil enfrente diversos problemas, com os quais já convivia durante décadas, na gestão da pandemia, pressionados pela falta de vontade política na consolidação do SUS e a constante privatização da saúde. Assim, faltam equipamentos básicos para a manutenção hospitalar e para a atenção necessárias aos usuários que adentram as portas das unidades de saúde, nem mesmo no meio de uma das maiores pandemias contemporâneas, que se faz necessário o investimento maciço em saúde e o reordenamento dos gastos governamentais com as áreas sociais é pungente o desprezo pela vida das cidadãs (os) brasileiras (os).
A negligência e a negação da saúde e de direitos sociais já é vivida por grande parte da população brasileira. Populações mais vulneráveis, como a população em situação de rua e as populações que vivem nas periferias brasileiras historicamente sofrem com a ausência de acesso à direitos, inclusive com o acesso à saúde. Essas populações são mais afetadas pela pandemia, mostrando o foço enorme da desigualdade social existente no Brasil.
Soma-se a isso, os constantes problemas de subnotificações de casos do Coronavírus pela falta de testes e pela não realização da testagem em massa, que impossibilitam ter um panorama geral sobre a realidade do número de casos. A contínua falta de registros de raça/cor nos prontuários de notificação da COVID-19, é alarmante, mostrando a despreocupação – e o racismo estrutural – que há com a população negra no país, dados oficiais já mostram que a maior parte dos óbitos são da população negra, entretanto, 1/3 dos dados oficiais não contém essa informação (EL PAÍS,2020), indo em descompasso com as já estabelecidas normativas e com a Polícia Nacional de Atenção Integral da População Negra. Esse registro se dá de sobremaneira importante para a compreensão da população mais afetada e na formulação de políticas públicas para o enfrentamento dos agravos.
À medida que as orientações das autoridades de saúde são o isolamento social e a higiene das mãos e de objetos de uso pessoal e coletivo, grande parte da população ainda convive com condições precárias de saneamento, 48% da população brasileira não tem coleta de esgoto e 35 milhões de brasileiros vivem sem água tratada (AGÊNCIA SENADO, 2019). Ademais, grande parte das habitações brasileiras são precárias, com muitas pessoas de uma mesma família em estreitas moradias, com dificuldades de circulação de ar e com diversos problemas de infraestrutura, evidenciando o problema da habitacional no país. Esse quadro agrava o controle da pandemia do coronavírus e sua disseminação, escancarando a desigualdade social profunda, demostrando que a pandemia não afeta todas e todos da mesma forma, influindo em maior proporção na população mais vulnerável, que tem raça, gênero e classe determinadas.
A dificuldade de contenção da pandemia revela as condições de vida da população brasileira e a realidade dos indivíduos que são reiteradamente inviabilizados perante o Estado, e nesse momento precisam, mais do que nunca, de políticas sociais amplas que garantam o acesso a bens e serviços e o direito à vida. Como relatado em uma entrevista, com Yane Mendes, moradora de uma periferia de Pernambuco, realizada por Ana Clara Peres, para a Revista Radis Comunicação e Saúde (RADIS/ENSP,2020), quando perguntada sobre como a periferia se comporta devido a impossibilidade de permanecer em casa, ela responde:
É o medo de morrer de fome que está fazendo as pessoas saírem de casa e até um pouco negligenciar toda a ação de cuidado. Essa hashtag #FiqueEmCasa é uma hashtag muito elitizada e que, como outras coisas, filtra bastante as pessoas. Na favela, essa é uma realidade utópica. Esse isolamento social também nos é negado. Acho que finalmente estão vendo que somos nós da periferia que movimentamos tudo. (...) Estamos vivenciando uma crise e um impacto econômico muito grande. É como se antes as coisas fossem difíceis e agora, mais difíceis ainda. (...), Mas muitos insistem em ir até lá trabalhar porque precisam. Principalmente, as famílias que têm mais de quatro pessoas dentro de casa. Imagine uma casa pequena, um calor enorme e aí você não pode ligar um ventilador porque a conta de luz vem mais alta do que o normal. A estrutura geográfica das nossas favelas não é desenhada pra gente ficar dentro de casa. Não conseguimos. Isso vai afetar inclusive a saúde mental também dessa população. Esse cuidado com a saúde mental, que também já nos é negado e negligenciado, será ainda mais impactado com tudo isso.
A desigualdade ainda é marcante entre as regiões do país, em relação aos recursos hospitalares, no qual a maior capacidade de atendimento está na região Sul, e as menores nas regiões Norte e Nordeste, comparadas ao Sudeste, já o Centro-Oeste não se difere significativamente do Sudeste (ENSP/FIOCRUZ,2020). Não apenas o acesso à saúde, mas aos direitos sociais são desiguais nas diferentes regiões do país, na qual há um privilegiamento das regiões Sul e Sudeste, entretanto, nessas regiões apesar de terem maiores investimentos e prioridade nas ações do Estado, ainda são demasiadamente desiguais, concentrando muita riqueza, e simultaneamente muita pobreza.
A pandemia do coronavírus é capaz de atingir todas (os) as (os) cidadãs(os), contudo, sem dúvidas, há parcelas mais vulneráveis ao risco de contrair o coronavírus, como exposto acima, algumas questões que demostram as vulnerabilidades vivenciadas pela desigualdade social e pela relações de exploração/opressão de gênero, raça e classe. Além disso, alguns públicos se tornam mais vulneráveis pelo índice de mortalidade quando desenvolvida a COVID-19, pessoas com idade superior a 65 anos, pessoas adultas com doenças crônicas, pessoas diagnosticas com câncer, pessoas com doença renal crônica, com obesidade, com asma e tabagistas. Que se pese nessa análise, uma atenção maior a população idosa, posto que a sociedade brasileira passa por um envelhecimento populacional, ao passo que aumenta seu número de idosos, diminuindo gradativamente o número da população mais jovem.
É demandada uma atenção em especial para a mudança na pirâmide etária brasileira, uma vez que a curto e a longo prazo a população idosa, progressivamente irá demandar mais cuidados e políticas públicas voltadas para a sua saúde e bem-estar. Não obstante, a degradação dos direitos sociais e da saúde pública empurra essa população para a desproteção social, vista as constantes Reformas da Previdência, que precarizam o benefício recebido e amplia a idade laborativa, desconsiderando as especificidades do mercado de trabalho brasileiro. Em relação a saúde, haverá uma necessidade maior pelas ações e serviços de saúde utilizados por essa população, que majoritariamente utiliza o SUS, entretanto, o sufocamento do orçamento da saúde pública deixa a população idosa gradativamente mais vulnerável e com menos qualidade de vida, que se considere ainda a degradação das condições de vida, de um modo geral.
Contrastando com o Art.230 da Constituição Federal, segundo o qual “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida” (BRASIL,2016), o Estado brasileiro não tem garantido uma qualidade de vida para a população idosa, especialmente para as mulheres negras, situação tal que se agrava ao passo que a política de austeridade fiscal é levada em curso.
A informação e a comunicação na contemporaneidade ganharam novas matizes, inflexionada pela generalização dos meios de comunicação em massa, especialmente da internet, dos aparelhos móveis de comunicação e das redes sociais. Reordenou-se assim toda a forma de consumir e produzir conteúdo para atender a rapidez e fluidez das novas formas de comunicação. O desenvolvimento científico e tecnológico aprimorou-se numerosamente e as notícias sobre o mundo são encontradas em instantes. Contudo, a democratização do acesso a internet e aos meios de comunicações não se consolidou e mostra-se em um horizonte longínquo a sua materialização. Os contornos dados as políticas públicas e sociais têm se assentando no incremento do uso da tecnologia da informação, em contraponto a generalização da tecnologia, com discurso de facilitar e desburocratizar o processo de acesso aos direitos.
No contexto da pandemia vislumbra-se demasiadamente como o acesso a informação e a tecnologia se consolidou no domínio de poucas pessoas, e como a ela é usada como um obstáculo no acesso aos direitos sociais, particularmente, no acesso ao auxílio emergencial[8], processo no qual, grande parte da população que tem direito ao auxílio, não consegue o acesso devido a falta de aceso a internet ou a dispositivos móveis. Esse processo não é recente, mas já vem se consolidando há algum tempo nas políticas sociais, como no processo de informatização das agências do INSS – Instituo Nacional do Seguro Social – e a dificuldade que a população tem no acesso a previdência e ao BPC[9] – Benefício de Prestação Continuada.
O reordenamento na forma de consumo e acesso a comunicação ampliou o escopo para informar-se a todo momento dos acontecimentos a nível global e local, ainda colaborando com as mídias alternativas e com a produção e fomento de pautas emancipatórias, entretanto, um fenômeno, que já é anterior ao período da internet, foi ampliado em larga escala, as “fake news”.
As “fake news” ou notícias falsas, dispõem de conteúdos mentirosos, falsos, ou utilizados fora do contexto original, seu assunto, geralmente, é posicionado, intencionalmente, de maneira sensacionalista. Comumente, as notícias falsas são produzidas por robôs, dispondo de um vasto potencial de replicação nas redes sociais, colaborando para um ostensivo processo de desinformação, em curso, o qual prejudica as ações de combate a pandemia e a divulgação do conhecimento científico. Em meio a pandemia cresce o número de notícias falsas atribuídas a instituições científicas, ou a figuras públicas, causando um dano irreversível no processo de comunicação, mesmo quando a notícia é desmentida e provada a sua inveracidade, uma vez que a refutação da falsidade em uma notícia não alcança as pessoas que leram a notícia falsa.
Com a pandemia surgem vários sites e mensagens ao qual pessoas e instituições encontraram uma “cura”, um “remédio eficaz” ou uma vacina para o coronavírus que tendem a enganar e confundir a população, que passa por uma das piores crises sanitárias da história, sobrepondo nesses processos comunicativos conteúdo sem comprovação científica e a sigla ou nome de instituições e organizações confiáveis. Ao mesmo tempo, cresce o número de sites confiáveis que analisam as notícias para manifestar a sua veracidade ou não, como a página do Ministério da Saúde [10]que criou um canal apenas para a análise de informações enviadas pela sociedade civil, visando contribuir para diminuir as notícias falsas. Nesse processo, as orientações gerais são, continuamente, procurar notícias em sites confiáveis e conhecidos e pesquisar antes de replicar notícias com conteúdo potencialmente falsos. Frisa-se aqui, a importância da checagem da veracidade das notícias, e do exercício crítico da dúvida e da indagação sobre as notícias e sobre os acontecimentos narrados.
Em contraste a conjuntura atual, vale deixar aqui a potencialidade e o trabalho realizado pelos conselhos e conferências de saúde, a nível municipal, estadual e federal, no qual há um trabalho de fiscalização e cobrança para que sejam efetivados os princípios e as diretrizes do SUS. A fortificação e a ocupação dos espaços de conselhos e conferências, não só da saúde, mas também das políticas públicas, tidas na sua integralidade e contínua intersetorialidade, é um significativo espaço de reivindicação dos direitos sociais conquistados, fortalecendo a participação da sociedade civil nos processos sociais, vislumbrando mudanças mais amplas que podem ser alavancas para a luta pelos direitos humanos e pela diminuição da desigualdade social.
Nota-se a relevância da comunicação e informação em saúde, que em tempos de pandemia vislumbram-se a magnitude dessas ações, corroborando para compartilhar as estratégias e esforços realizados na prevenção e na contenção da disseminação do coronavírus, bem como na ampliação da importância da saúde pública e do SUS para a sociedade brasileira. Assim, as contribuições da Fiocruz[11] – Fundação Oswaldo Cruz – durante a pandemia são essenciais, com atividades de ensino e pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, informações e observatório sobre o coronavírus e a COVID-19, monitoramento e ações de saúde nas cidades e diversas ações para a contenção da pandemia.
A educação em saúde e a educação popular em saúde, de mesmo modo, mostram-se como um vasto caminho para a discussão e ampliação do conhecimento em saúde e das diferentes formas objetivas e subjetivas de compreender o processo saúde doença, conjuntamente com as particularidades e especificidades culturais, regionais, religiosas e sociais imbricadas nesse processo, além de ampliar a participação social. A importância da coletivização das ações e lutas se dá como uma fecunda estratégia, uma vez que a conjuntura atual é de individualização e particularismo fomentado pelo capitalismo e pela lógica neoliberal.
Reitera-se, assim a importância da defesa e do aprofundamento dos direitos humanos e contra a retirada de direitos, os quais foram duramente conquistados com os embates dos movimentos sociais, que as Contrarreformas conduzem com o ajuste fiscal em curso. Logo, a derrubada da Emenda Constitucional 95 se faz vultuosamente necessária, bem como o cumprimento da Constituição Federal e a luta pela ampliação dos direitos sociais. Ainda se enfatiza a importância da luta contra todas as formas de opressão/exploração de raça/etnia, gênero, sexualidade e classe, que devem caminhar conjuntamente na busca de uma sociedade mais igualitária.
Ao início do texto, foi deixado o questionamento: “Se o SUS vai mal, quem vai bem?”, concluindo é possível alinhavar algumas questões para essa pergunta. Se o SUS vai mal, quem está mal contíguo a ele é toda a população brasileira, todas as mulheres e homens que constroem cotidianamente o país, especialmente a parcela mais vulnerável que historicamente lhes foi negado todos os direitos, inclusive que lhes é negada, e lhes é retirada, a vida. Mas se o SUS está mal, alguém também está bem, e quem está bem é o mercado financeiro, o mercado de planos de saúde privados e o grande capital nacional e estrangeiro, que no processo de mercantilização da saúde, deixa a mercê a população das ações de saúde para gerar superlucros.
Finda-se que a COVID-19 e as medidas de enfrentamento da pandemia vêm acentuando a desigualdade social que é estruturante e estrutural do modo de produção capitalista, e somente em uma organização social fora desse modelo de mercantilização da vida social que se poderá vislumbrar uma sociedade mais igualitária. Aspira-se que a ciência e o SUS se fortaleçam após a pandemia, e que a população acesse os direitos sociais de forma mais justa. Assim, é necessário tecer caminhos e estratégias no processo de luta para uma nova forma de sociedade, na busca pela emancipação humana, e como horizonte uma nova forma de organização social, na qual não haja qualquer forma de opressão/exploração de raça/etnia, gênero, sexualidade e classe.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988: atualizada até a emenda Constitucional nº 95., de 15 de dezembro de 2016. 54.ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
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BRASIL. Lei nº8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Brasília: DF: Presidência da República [2020]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8142.htm. Acesso em: 10 maio 2020.
CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 8. 1986, Brasília. Relatório Final da 8ª Conferência Nacional de Saúde. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/8_conferencia_nacional_saude_relatorio_final.pdf. Acesso em: 06 maio 2020.
PAIM,J.S.O que é o SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.
Saúde perdeu R$ 20 bilhões em 2019 por causa da EC 95/2016.Conselho Nacional de Saúde/ASCOM, Brasília: 28 fev.202. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1044-saude-perdeu-r-20-bilhoes-em-2019-por-causa-da-ec-95-2016. Acesso em: 05 maio 2020.
Brasil tem 16.118 mortes e 241.080 casos confirmados de novo coronavírus, diz ministério. G1 [BEM ESTAR]. 17 maio 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/17/brasil-tem-16118-mortes-e-241080-casos-confirmados-de-novo-coronavirus-diz-ministerio.ghtml. Acesso em: 18 maio de 2020.
NOTA PÚBLICA: CNS exige seriedade na pasta da Saúde diante da 2ª troca de ministro em meio à pandemia. Conselho Nacional de Saúde/ASCOM. Brasília, 14 maio de 2020. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1179-nota-publica-cns-exige-seriedade-na-pasta-da-saude-diante-da-2-troca-de-ministro-em-meio-a-pandemia. Acesso em: 16 maio 2020.
ROSSI,M. População negra vai à Justiça para contar seus mortos por coronavírus e expõe leitura deformada da pandemia. El País Brasil, São Paulo: 15 maio 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05-15/populacao-negra-vai-a-justica-para-contar-seus-mortos-por-covid-19-e-expoe-leitura-deformada-da-pandemia.html. Acesso em: 16 maio 2020.
Brasil tem 48% da população sem coleta de esgoto, diz Instituto Trata Brasil. Agência Senado. 25 set. 2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/09/25/brasil-tem-48-da-populacao-sem-coleta-de-esgoto-diz-instituto-trata-brasil. Acesso em: 13 maio de 2020.
Estudo alerta para diferenças regionais em recursos hospitalares. ENSP/Fiocruz. 30 abril de 2020. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/estudo-alerta-para-diferencas-regionais-em-recursos-hospitalares. Acesso em: 13 maio de 2020.
ROCHA,R.L. Ficar em que casa? RADIS/ENSP/Fiocruz, Rio de janeiro: 06 maio 2020. Disponível em: https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/home/opiniao/editorial/ficar-em-que-casa. Acesso em: 13 maio 2020.
PERES,A.C. Entrevista: “Nunca tivemos o direito de ficar em casa”. RADIS/ENSP/Fiocruz, Rio de Janeiro: 16 abril de 2020. Disponível em: https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/home/entrevista/nunca-tivemos-o-direito-de-ficar-em-casa#access-content. Acesso em: 13 maio de 2020.
[1] E-mail: matheusdepaula.ufrj@gmail.com
[2] E-mail: cinthiademello@yahoo.com.br
[3] O que é? Determinantes sociais. Fiocruz/PenseSUS. Disponível em: https://pensesus.fiocruz.br/determinantes-sociais. Acesso em: 10 maio 2020.
[4] Em relação a complementariedade privada no sistema público de saúde, alguns debates foram realizados na 8ª Conferência Nacional de Saúde, na formulação de propostas que construíram o capítulo da saúde na constituinte, vale salientar que a participação privada, como formulado, seria estreita, e controlada pelo SUS, assim, construindo o sistema de saúde público e universal a participação privada decresceria gradativamente.
[5] Nota-se que a DRU ficou em vigor até 2015, com o percentual de 20% das receitas, sendo reeditada e se estendendo até 2023, agora com 30%. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/entenda-o-assunto/dru. Acesso em: 10 maio de 2020.
[6] Múltiplas explicações podem ser dadas para esse processo de priorização da assistência em saúde, pesa-se a compreensão de saúde fortemente baseada em um modelo biomédico, de saúde como ausência de doença, tornando o hospital o centro das ações de saúde. Ademias, cita-se de mesmo modo a priorização das atenções de média e alta complexidade, procedimentos que se demostram de alto custo, havendo uma notável ambição para o setor privado que detém e realiza grande parte desses procedimentos em parcerias com o SUS.
[7] Quando o Brasil atingia o número de mortos pela COVID-19 maior que o da China, o Presidente ao ser questionado por uma jornalista, replica: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre.” – Notícia publicada no dia 28/04/2020 na página online do G1. ‘E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?’, diz Bolsonaro sobre mortes por coronavírus; ‘ Sou Messias, mas não faço milagre’, disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/28/e-dai-lamento-quer-que-eu-faca-o-que-diz-bolsonaro-sobre-mortes-por-coronavirus-no-brasil.ghtml . Acesso em: 13 maio de 2020.
[8] Segundo o site online da Caixa Econômica Federal, órgão pelo qual administra o pagamento dos auxílios, o auxílio emergencial é: “ um benefício financeiro concedido pelo Governo Federal destinado aos trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados, e tem por objetivo fornecer proteção emergencial no período de enfrentamento à crise causada pela pandemia do Coronavírus – COVID-19.”. Disponível em: http://www.caixa.gov.br/auxilio/PAGINAS/DEFAULT2.ASPX. Acesso em: 13 maio 2020.
[9] O BPC é operacionalizado pelo INSS, contudo a gestão é feita pelo Ministério da Cidadania e pela Secretaria Especial do Desenvolvimento Social.
[10] Disponível em: https://www.saude.gov.br/fakenews, Acesso em: 13 maio 2020.
[11] Disponível em: https://portal.fiocruz.br/coronavirus, Acesso em: 13 maio 2020.