A repetição da fórmula do genocídio social
A repetição da fórmula do genocídio social
Pedro Cláudio Cunca Bocayuva (Professor do NEPP-DH/UFRJ)
A guerra permanente contra as periferias e o aumento do racismo acompanham o estilo belicista-machista que resulta em mais violência sem limite sobre as populações de favelas e periferias. Como ter mais segurança sem nenhuma mudança nas políticas voltadas para a juventude nas favelas e periferias? Como ter mais segurança gerando a repetição de operações policiais militares do tipo bélico colonial no período escolar e na proximidade de equipamentos e serviços públicos de assistência social e de atenção básica? Sem definir uma política e regras para lidar com os corpos nos territórios será impossível gerar contratendências que mudem os cenários de catástrofe e crueldade. Sem legitimidade não existe legalidade, a letalidade não pode ser um objetivo de política de segurança.
O desarmamento necessita a desarticulação de práticas da chamada necropolítica que atravessam o Estado e a sociedade com a marca da violência extrema. Uma nova política depende da capacidade de gerar um efeito combinado de garantias e serviços, que resultam em autoridade efetiva na área de segurança criando territórios livres para o exercício de uma via democrática no modo de governar. Verticalizar as relações de uso de uma força, supostamente legal e legítima, não significa romper com o atual padrão de guerra permanente, o que não gera espaço público, já que este depende de construção de práticas de uso dos territórios que respeitem a circulação das pessoas: nas condições de acesso ao trabalho e no uso dos equipamentos públicos. Políticas de proximidade, garantia de direitos e comunicação adequada dependem de uma efetiva pactuação via mudanças imediatas, que gerem consensos ativos com novos comportamentos de reconhecimento e responsabilidade, adequadamente controlados nos termos da defesa do valor da vida e do acesso aos direitos da cidadania.
A questão é que na sequência dos massacres do Guarujá, Rio de Janeiro e Salvador estamos começando a repetir os erros da “pacificação” como um modo de militarização da vida social, o que cria as bases para a repetição do quadro de um modo de contenção, capaz de repetir mais do mesmo massacre sob uma forma supostamente mais controlada. “Reduzir danos” pelo medo e pela morte para impor o Estado de Exceção nos territórios só aumenta o efeito de retorno da miséria administrada pelo sistema penal sustentada nos traumas continuados das execuções sumárias, das balas dirigidas para os mesmos corpos. A lógica que concentra o fogo no “inimigo” desde o confronto direto com os grupos armados têm gerado: de um lado, o aumento da fúria, do medo e da defesa da violência estatal e, de outro, o aumento do caos com massacres e banhos de sangue. Estas duas faces da mesma moeda acabam gerando os jogos de guerra que vem dominando a vida cotidiana e extraindo mais-valia social dos circuitos econômicos locais.
A acumulação primitiva permanente, a privatização e o domínio de grupos criminosos armados sofrem a sobredeterminação do rolo compressor da naturalização de uma guerra contra as populações nos territórios. Em nome da luta contra toda a sorte de ilegalidades tentam encobrir o fato de que a economia das drogas, as milicias e grupos armados, a corrupção policial e as máfias políticas fazem parte do capitalismo desregulado, do tipo neoliberal que forçou a falência das políticas de regulação urbana, desmontou sistemas de proteção e precarizou a vida O espetáculo que governa a vida nas periferias e favelas, transborda para toda a cidade de forma desigual, sustentado na soma de eventos que se alimentam das privatizações de espaços e mercados nas várias escalas.
O espetáculo criminalizador punitivista governa a ação governamental nas periferias e favelas, transborda para toda a cidade de forma desigual. A repetição da fórmula de reprodução mórbida se sustenta mobilizando preconceitos, estigmas e marcadores de segregação e desigualdade de classe, étnica, de gênero, de sexualidade, de geração que ganham intensidade em cruzadas morais que legitimam a crueldade. O que liberou as forças genocidas no memo ritmo em que se eu o fracasso do negacionismo frente a pandemia e do empobrecimento com o retorno da fome em larga escala no país. A paisagem urbana foi devastada pelo ciclone golpista bolsonarista, que apesar de seu desgaste insiste em reaparecer através do medo e do ódio.
A naturalização do genocídio social e racial é especializada, corporificada na soma de eventos que se alimentam da privatização dos espaços mercados nos lugares. No cotidiano e no lugar temos a retomada do discurso de construção do inimigo, da troca dos direitos por uma suposta lógica de segurança nas várias escalas dos territórios produzidos ao estilo de poder da colonialidade. O urbanismo de guerra acaba alimentando a lógica dos donos dos lugares, dos negócios e do uso aberto da força.
No retorno da lógica genocida temos a acumulação extensiva com extração, espoliação e administração da miséria pelo medo, com a imposição do poder sobre a reprodução de corpos, subjetividades e lugares que acabam impondo a barbárie como um modo de gestão social através da crueldade.
As formas de criminalização retroalimentam o excesso punitivo, o modo de operar das polícias se difunde como modo de aniquilação, de tortura e de encarceramento que ganham dimensões dramáticas, na escala demográfica cujos números começam a aparecer. Avança a precariedade, avançam a destituição, o encarceramento e a descartabilidade.
Confundir a qualidade técnica e a autonomia nas formas de agir dos aparelhos repressivos, como se fosse a eficácia e a eficiência na produção de uma política se segurança tem resultado inverso. O que acaba ampliando o poder da necropolítica e da naturalização das relações mórbidas que colonizam o imaginário e reificam a vida social sob o efeito da violência material e simbólica, do individualismo e da razão cínica.
O quadro de hiperrealidade espetacularizada se hipertrofia com o estímulo das ideologias racistas e belicista, banalizando crueldade. Não vemos o que é visível, o como, o onde, o quem que retroalimentam a máquina que oferece corpos ao extermínio. Ao separar as diferentes vítimas das violações de direitos humanos deixamos de ver o quadro da relação que intersecciona o conjunto dos corpos e das subjetividades que circulam nos espaços, numa dos que não podem passar pelo processo do luto. Os crimes deste sistema de reprodução exterminista acabam sem castigo, os mortos sem sepultura. Muitos vivem apenas aguardando a hora e o modo mais aberto ou mais seletivo da sua morte.
Os corpos das subjetividades coletivas são encarcerados com o uso de marcadores de segregação. Os corpos são violados, estuprados, torturados e são lançados na “vala comum”. Isto é, parecem ter sido fabricado todo o tempo como parte da naturalização de uma guerra colonial perdida porque interminável. Como romper com este círculo infernal agindo para uma ruptura que vá além de uma forma de racionalização da seleção dos alvos? Como romper com este quadro em que se repete uma visão colonizadora, que não se cansa de se mostrar cega ante o visível do eterno retorno do “brutalismo”? Como se sabe só existe a possibilidade de uma nova cultura em defesa da vida se nos afastamos da ideia de “homo sacer”, dos condenados da terra e, por isso, matáveis.
A construção de espaços de liberdade para os corpos, a produção de meios e políticas de acesso nos recortes que ligam população e serviços públicos, em especial para crianças e jovens, com o apoio das comunidades e do associativismo popular implica na pergunta: quem destruiu o horizonte do Programa Nacional de Direitos Humanos como ferramenta transversal de governo? Será que não vemos o caráter da relação entre as árvores e a floresta, a relação entre as formas e os seres que habitam a nossa vasta vida urbana?
Governos que não cuidam das pessoas são forças de ocupação. O direito de matar não contém a violência, porque dela se alimenta. Pobres dos países que precisam cada vez mais da produção de vastos contingentes de supostos “inimigos” para uma guerra interna fratricida.
Sem nenhum programa de proteção para as populações fica deformada a ótica para gerar uma política de segurança cidadã. Nossas elites e classes dominantes se escondem no verdadeiro véu negacionista dos que investem cada vez menos na vida em comum. Estamos oscilando na dor e no sofrimento nas cidades onde as máquinas genocidas acabam retroalimentadas por quem pretende racionalizar e moderar sua ação. Os que desejam racionalizar a máquina de morte repetem o fracasso que acaba por entregar as populações e os lugares para a mesma gaiola ou fronteira das segregações que permitem o devorar de vidas consideradas descartáveis pela crueldade que se alimenta da repetição.