A promoção da participação social e a defesa de uma política de saúde integral nas favelas e comunidades urbanas: uma agenda para os direitos humanos e saúde

2024-07-02

                                                                                                                                                             Por Richarlls Martins.

Este ensaio reflete sobre a construção de um campo de experiências e tecnologias sociais que articulou saúde e favela no contexto sanitário da pandemia da COVID 19. O argumento defendido é que está em processo de constituição um conjunto de práticas que exploram em âmbito local metodologias para o subsídio de uma agenda de saúde integral nas favelas e comunidades urbanas, protagonizada por redes múltiplas de associativismo comunitário, fomentadas com base na vigilância popular em saúde (Meneses et al, 2023).

As favelas, a partir dos seus processos de saúde e doença, são espaços para atuação e reflexão de técnicas do campo da saúde pública há décadas (Pereira et al, 1972; Giifin, Shiraiwa, 1989). Em composição, as favelas situam-se no pensamento social brasileiro como objeto de estudo privilegiado de uma antropologia e sociologia urbanas que as representam como lócus de violência e pobreza, na dicotomia favela versus cidade (Valladares, 2005). Como aponta Rocha (2018), as favelas apresentam modulações nas experiências de associativismo comunitário e durante a crise sanitária e humanitária provocada pela pandemia da COVID 19 foram evidenciadas práticas sociais protagonizadas pelas favelas que contribuíram ativamente para a produção de respostas articuladas na interface entre participação, vigilância popular e saúde (Silva, 2021; Fleury, Menezes, 2020).

Uma das ações que surgiu na pandemia e segue vigente é o Plano Integrado de Saúde nas Favelas do Rio de Janeiro Fiocruz/UFRJ/Uerj/PucRJ/IFF/UENF/Abrasco/SBPC/Alerj. Esta rede sociotécnica emergiu com objetivo de fomentar ações emergenciais para mitigação dos efeitos da Covid-19 nas favelas e efetivou-se como um laboratório de experiências de tecnologias socais voltadas à promoção de uma agenda de saúde conjunta com organizações baseadas nestes territórios e que trabalham com populações vulnerabilizadas.

O objetivo central desta estratégia ancora-se em contribuir com o Sistema Único de Saúde (SUS), a partir dos determinantes sociais, econômicos, culturais e ambientais da saúde, ampliar a participação social na vigilância em saúde de base territorial, a solidariedade e a democracia. Esta articulação interinstitucional iniciou em abril de 2020, a partir da aproximação das instituições que nomeiam o Plano e organizações de favela. Em maio de 2020, lançou-se o Plano Emergencial de Enfrentamento à COVID19 nas Favelas do Rio de Janeiro e em agosto de 2020 com a sanção da Lei 8972/20, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) aprovou a destinação de R$ 20 milhões à Fiocruz para a implementação da I Chamada Pública realizada em 2021. Deste processo, a Fiocruz apoiou até o momento 90 projetos no estado fluminense com a destinação de R$ 15,5 milhões. Foram construídas cozinhas e hortas comunitárias, ações de comunicação popular em saúde, formação de agentes locais de saúde nas favelas, práticas de educação e cultura no campo da saúde, entre outras experiências.

Em abril de 2024, a Fiocruz anunciou o resultado da II Chamada Pública de Apoio a Ações e aprovou 56 novas organizações de favela que receberão um total de R$ 5,5 milhões. Esta II Chamada incentivou a apresentação de projetos com ações coordenadas em redes por ativistas sociais de favelas que evidenciem um diagnóstico da situação da saúde nas favelas e um plano de ação que ajudasse a ampliar metodologias, processos e experiências relacionadas à saúde integral nas favelas.

Os projetos apresentam como escopos ampliar a participação social na saúde; apoiar ações de vigilância em saúde nas favelas; auxiliar na construção de metodologias inovadoras no campo da saúde; auxiliar nas medidas de prevenção de doenças; promover ações de bem-estar coletivo nas favelas fluminenses; incentivar parcerias públicas ou privadas para desenvolver projetos inovadores em saúde para e com as pessoas que moram nas favelas; instalar ou ampliar tecnologias sociais em saúde que dialoguem com a atenção básica em saúde nas favelas; divulgar informações sobre saúde nas favelas; compartilhar conhecimentos e pesquisas sobre saúde nas favelas; incentivar a parceria entre organizações da sociedade civil, instituições de pesquisa e ensino e gestões públicas nas favelas.

Adicionalmente, outras experiências e tecnologias sociais protagonizadas por organizações de favelas eclodiram no campo da saúde em parceria com a Fiocruz. Alguns exemplos são a Cartilha Saúde na Favela numa Perspectiva Antirracista, desenvolvida junto com o Movimento Negra Unificado, a experiência do Conexão Saúde na Maré (Arouca; Bozza, 2022), o Boletim Socioepidemiológico da Covid-19 nas Favelas e o Radar COVID19 nas Favelas (Lima et al, 2021).

O aumento da incidência das organizações de favela no trabalho coordenado no campo da saúde nos últimos anos se apresenta como uma possibilidade de ampliar a participação de grupos populacionais com históricos de vulnerabilização na construção das políticas de saúde. A afirmação de que favela é cidade constitui um recurso político de ampliação do direito humano à cidade por meio de práticas que estão se organizando, a partir do campo das políticas de saúde, como ferramentas para o enfrentamento da representação hegemônica que formatou a favela como lócus de violência e pobreza, alvo do aparelho repressivo das políticas de segurança ou com severos limites das políticas de planejamento urbano.

Anuncia-se com expressiva mobilização um conjunto de tecnologias sociais no campo dos direitos humanos, desenvolvidas por sujeitos favelados, que poderão subsidiar a constituição de um campo prática, intervenção e estudo com foco na promoção de uma agenda inovadora de saúde integral nas favelas e comunidades urbanas.

Richarlls Martins é doutor em Saúde Coletiva pela Fundação Oswaldo Cruz, presidente da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento do Brasil e coordenador executivo do Plano Integrado de Saúde nas Favelas do Rio de Janeiro

 

Referências:

AROUCA, L. E.; BOZZA, F. A. Integrando vigilância e atenção em saúde durante a pandemia de covid-19: a experiência do Conexão Saúde na Favela da Maré. In: PORTELA, M. C., REIS, L. G. C., and LIMA, S. M. L., eds. Covid-19: desafios para a organização e repercussões nos sistemas e serviços de saúde [online]. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19 Fiocruz, Editora Fiocruz, 2022, pp. 457-472.

FLEURY, S.; MENEZES, P.. Pandemia nas favelas: entre carências e potências. Saúde em Debate, v. 44, n. spe4, p. 267–280, 2020.

GIFFIN, K.; SHIRAIWA, T.. O agente comunitário de saúde pública: a proposta de Manguinhos. Cadernos de Saúde Pública, v. 5, n. 1, p. 24–44, jan. 1989.

LIMA, A.L.S., et al... Covid-19 nas favelas: cartografia das desigualdades. In: MATTA, G.C., REGO, S., SOUTO, E.P., and SEGATA, J., eds. Os impactos sociais da Covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia [online]. Rio de Janeiro: Observatório Covid 19; Editora FIOCRUZ, 2021, pp. 111-121.

MENESES, M. N. et al.. Práticas de vigilância popular em saúde no Brasil: revisão de escopo. Ciência & Saúde Coletiva, v. 28, n. 9, p. 2553–2564, set. 2023.

PEREIRA, A. A. et al.. Levantamento das condições de habitação e saúde da comunidade da favela do Borel, Tijuca. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v. 6, n. 2, p. 73–78, mar. 1972.

ROCHA, L. de M.. Associativismo de moradores de favelas cariocas e criminalização. Estudos Históricos (Rio de Janeiro), v. 31, n. 65, p. 475–494, set. 2018.

SILVA, C. et al.. Atitudes que fazem a diferença: coronavírus e os coletivos nas favelas. Revista Psicologia Política, v. 21, n. 51, p. 435-448, ago. 2021.

VALLADARES, L. A invenção da favela: do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2005.