Tudo é passageiro até o trocador
Resumo
Refletir sobre lugares e afetos nos convida a explorar os espaços que nos moldam e nos desconstroem como sujeitos. Um exemplo marcante dessa relação pode ser observado na experiência de quem utiliza o transporte público no Rio de Janeiro. O ônibus, com sua multiplicidade de passageiros e trajetórias, revela diversas cidades dentro de uma só.
Durante minhas viagens diárias entre casa e trabalho, encontrei no desenho uma forma de passar o tempo e observar o entorno. Assim, a figura do trocador tornou-se um tema recorrente nos meus cadernos. Dois motivos explicam essa escolha: primeiro, porque eu sempre procurava me sentar na parte da frente do ônibus, onde o trocador estava no meu campo de visão; segundo, porque ele me acompanhava durante todo o trajeto, junto com o motorista.
Por anos, o trocador foi uma presença constante nas minhas viagens, e, consequentemente, nos meus desenhos. Contudo, a chegada do metrô modificou meu percurso e, com o tempo, a profissão de trocador foi desaparecendo dos ônibus cariocas, substituída pelo sistema de bilhete pré-pago.Esse desaparecimento me fez recordar uma reflexão da repórter gráfica norte-americana Veronica Lawlor (2021)1, que menciona como nossos desenhos podem se tornar testemunhos históricos, muitas vezes sem que tenhamos essa intenção ao registrá-los.
Meus registros gráficos, sem pretensão inicial de documentar, agora servem como memória de uma atividade que se tornou rara. Esses desenhos, que carregam em seus traços o testemunho do movimento do trânsito e da destreza do motorista em conduzir o coletivo, capturam momentos únicos. Realizados com apenas lápis, algum lápis de cor e caneta esferográfica, expressam o caráter de urgência em captar o instante, feitos integralmente durante o trajeto, antes de descer no meu ponto. Datados entre 2014 e 2016, retratam momentos de pouco movimento de passageiros, ora mostrando trocadores relaxados, alguns virados de lado para suas mesas e gavetas de troco, ora flagrando o local vazio, denunciando o trocador na ausência de seu posto.
Esses registros não apenas documentam as figuras dos trocadores, mas também representam um período da minha vida marcado pelos longos deslocamentos diários pela cidade. Embora eu não sinta saudades desses momentos, reconheço a importância de preservá-los como testemunhos históricos. Eles são uma lembrança de como os lugares e as relações que construímos neles nos afetam e nos envolvem. Eu nunca mostrei nenhum desenho para nenhum dos trocadores, mas guardo-os comigo como uma cumplicidade de uma jornada rotineira que fazíamos juntos.
Assim, esses documentos gráficos propõem uma reflexão sobre como nossos cotidianos, mesmo nos momentos mais banais, podem ser fontes ricas de afeto e história, revelando a complexidade e a riqueza das cidades que habitamos.
Técnica: Grafite, lápis de cor e caneta esferográfica sobre papel
Ano: 2014 a 2016
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