Vol. 7 Núm. 1 (2024)
APRESENTAÇÃO
O processo de internacionalização do direito se faz sentir atualmente nos mais diversos espaços territoriais como produto de um contexto de mundialização da economia e da alteração do objeto das relações internacionais, por consequência de um redesenho que começa a se esboçar no final do século XIX a ponto de determinar o reequilíbrio das forças estatais e não-estatais.
Essas forças se fazem presente hoje no cenário mundial determinando novas origens de regulação de suas próprias vinculações, motivando o surgimento de uma heterogeneidade de fontes, não mais estatais, tais como os tratados internacionais e a jurisprudência oriunda das Cortes regionais ou internacionais. Tal processo se faz sentir muito fortemente na Europa, nascido do denominado direito comunitário, composto atualmente por um arcabouço jurídico amplo e complexo, formado por tratados e diretivas, jurisprudencialmente interpretados pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, com sede em Luxemburgo. Paralelamente, o Conselho da Europa, em 1950, adotou a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades, criando a Comissão e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, sediados em Estrasburgo, nos quais podem demandar Estados ou pessoas vítimas de violações. Mas não é só no espaço europeu que o processo de internacionalização do direito se faz sentir, muito embora possam ser identificadas ainda muitas resistências. Destacáveis a Convenção Americana dos Direitos do Homem, de 1969 e a criação da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, bem como a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, de 1981 e sua respectiva Corte.
Não se pode olvidar da existência da Organização das Nações Unidas, e seus instrumentos normativos, que também colabora para esse processo de internacionalização do direito, muito particularmente com a atribuição de caráter coercitivo ao Pacto sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966. Nesse processo de internacionalização do direito, ganham especial relevo os tratados que versam sobre direitos humanos, a partir de consensos acerca da universalização do sofrimento denotado por práticas como o genocídio, o apartheid, a discriminação e a tortura, a ensejarem uma regulação da matéria em nível internacional.
Indubitavelmente que os estudos e abordagens voltadas aos direitos humanos e ao direito internacional cresceram bastante. Todavia, não obstante a evolução, os assuntos voltados a estes campos temáticos continuam a ser um grande desafio para a humanidade. Tirana Hassan, Diretora executiva da Human Rights Watch, ao apresentar o Relatório Mundial sobre a situação dos direitos humanos ao redor do mundo (ano 2024), acentua que o sistema de Direitos Humanos está sob ameaça: “Basta olhar para os desafios dos direitos humanos em 2023 para entender o que precisamos fazer de diferente em 2024. Foi um ano marcante, não só pela supressão dos direitos humanos e pelas atrocidades em guerras, mas também pela indignação seletiva dos governos e pela diplomacia transacional, que trouxe profundos custos para os direitos humanos daqueles sem um assento na mesa de discussão. Mesmo assim, em meio à escuridão, vimos sinais de esperança, mostrando a possibilidade de um caminho diferente. As renovadas hostilidades entre Israel e o Hamas e no Sudão causaram um enorme sofrimento, assim como os conflitos em curso na Ucrânia, Mianmar, Etiópia e no Sahel. Governos tiveram que lidar com o ano mais quente já registrado e com a onda de incêndios florestais, secas e tempestades que causaram prejuízos para milhões de pessoas em Bangladesh, na Líbia e no Canadá. A desigualdade econômica aumentou em todo o mundo, assim como a raiva face às decisões políticas que deixaram muitas pessoas lutando para tentar sobreviver. Os direitos de mulheres e meninas e de pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT) enfrentaram duros retrocessos em muitos lugares, exemplificados pela perseguição de gênero levada a cabo pelo Talibã no Afeganistão.”
Sem embargo, as reflexões, estudos, propostas (...) que contemplam o direito internacional e os direitos humanos foram, são e serão sempre muito importantes; a INTER – Revista de Direito Internacional e Direitos Humanos, que em seu pouco tempo de existência, tornou-se referência nas matérias acima citadas, por reunir abordagens de pesquisadores (as) nacionais e não nacionais relevantes e atuais.
Para abrir o presente número, a INTER contou com o estudo do professor catedrático de Direito Internacional Privado, Guillermo Palo Moreno, da Universidade de Valência – Espanha, que versa sobre La litigación internacional en materia de diligencia debida empresarial en la Unión Europea: ¿como responde la directiva (UE) 2024/1760 a los retos que implica un complejo contexto normativo en cambio? O autor trata da responsabilidade social e a diligência corporativa em matéria de direitos humanos que exigem aparato regulatório universal que permita obter uma compensação pelos danos causados pela sua violação; destaca a matéria no âmbito da União Europeia que recentemente enfrentou o tema, ao publicar a Diretiva (UE) 2024/1760 sobre a diligência das empresas em questões de sustentabilidade. Na sequência o Professor Doutor Favio Farinella, da Argentina, apresenta o estudo intitulado The Genocide Convention: a multipurpose instrument or the key to protect human rights? em que analisa casos que estão em andamento na jurisdição internacional que envolvem Estados nacionais pela violação das normas internacionais sobre Genocídio, bem como situações futuras nas quais civis sofreram atos supostamente criminosos cometidos por Estados.
O tema voltado ao genocídio também esteve presente no estudo de Renato Sampaio Nabuco Ribeiro. Após o genocídio de 1994, a República do Ruanda enfrentou uma das principais questões colocadas durante os períodos de transição dos regimes políticos: punir ou não as graves violações dos Direitos Humanos que ocorreram durante o genocídio, e qual seria a punição apropriada. Num país etnicamente fragmentado, a solução proposta pelo governo central foi fundir elementos da justiça tradicional local com elementos da justiça ocidental formal. Esta realidade foi trazida no estudo intitulado Inkiko Gacaca: Rwanda’s ambitious project que analisa a qualidade dos julgamentos realizados naquele dado momento em Ruanda. André Luiz Pereira Spinieli ao tratar da Cidadania e políticas de reconhecimento: notas para uma teoria política da cidadania acentua que a cidadania esteve historicamente associada ao desenvolvimento do Estado-Nação, compreendendo uma categoria responsável por conferir direitos e deveres àqueles que se encontrassem restritos a determinado território ou modelados por vínculos jurídicos e políticos específicos. No contexto de surgimento de novas dinâmicas sociais, demarcadas pela reconfiguração das questões das classes sociais e pelo surgimento de racionalidades governamentais preocupadas com o problema das experiências de reconhecimento e desrespeito vivenciadas por determinados sujeitos e a abordagem que versa sobre A litigância climática como estratégia jurisdicional de enfrentamento à vulnerabilidade climática: o protagonismo das mulheres à luz da teoria ecofeminista foi o tema escolhido por Bianca Roso, Elisa Maffassiolli Hartwig e Raquel Fabiana Lopes Sparemberger em que abordam o estudo dos direitos humanos e a litigância climática à luz da Teoria ecofeminista e tomam como referência a crise ecológica e climática que alcança esse grupo vulnerável.
Túllio Vieira de Aguiar ao se debruçar sobre as Normas de Jus Cogens: uma visão detalhada sobre sua natureza e hierarquia no Direito Internacional se propõe a realizar uma análise das regras de jus cogens. Para tanto, o autor buscou estabelecer uma definição, natureza e finalidade jurídica, bem como seus desdobramentos nas relações internacionais e sua contribuição para uma ordem jurídica mais justa e humanitária em escala global. Os compromissos internacionais de combate à corrupção previstos nas Convenções Interamericana (OEA) e das Nações Unidas contra a corrupção (ONU) foram escolhidos como objeto de estudo por Kadra Rizzi e Guilherme Cabral. As autoras apresentam a implementação dos compromissos internacionais de combate à corrupção previstos na Convenção Interamericana de combate à corrupção (ONU) e na Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (ONU). No caso de Hermenegildo Bernardo, a proposta relaciona-se A pertinência dos acordos de dupla tributação nas relações comerciais internacionais. Estudo de caso: Angola em que o autor apresenta estudo sobre os Acordos de Dupla Tributação no contexto das relações comerciais entre os Estados e analisa o cenário resultante dos acordos e convenções rubricados por Angola relativamente a eliminação da dupla tributação internacional. E para encerrar a presente edição, Sidney Guerra, Professor Titular de Direito Internacional Público da UFRJ, aborda The new international catastrophe law: a brief introduction. Neste estudo o autor apresenta, de maneira resumida, o que vem a ser o Direito Internacional das Catástrofes e enfatiza que ao se pensar nas catástrofes, a ideia inicial relaciona-se aos cenários de catástrofes naturais, isto é, imagens de destruição de ambientes humanos por fenômenos geológicos ou atmosféricos súbitos e extremos. Entretanto, segundo o autor, há vários cenários de catástrofes que são produzidas por ações desenvolvidas pela espécie humana; quando as catástrofes ocorrem, o Estado nacional apresenta limitações para sanar as dificuldades existentes e carece de auxílios provenientes da sociedade internacional. Neste campo de ideias, necessário que as normas existentes no sistema internacional sejam expandidas e trabalhadas de maneira articulada para a formulação do novo direito internacional das catástrofes.
Por fim, mas não em último lugar, a equipe editorial da INTER se regozija com toda comunidade acadêmica pelo resultado auferido na avaliação da Capes, que classificou o periódico no qualis A4, em sua primeira avaliação. Tal resultado nos enche de alegria e também nos impulsiona a buscar maiores e melhores indicadores, com abordagens fecundas e imprescindíveis, como tem sido recorrente no periódico, pelo que também rendemos homenagens e agradecimentos aos nossos autores e autoras. Aos nossos leitores e leitoras, desejamos uma excelente leitura!
Rio de Janeiro, 23 de agosto de 2024.
Sidney Guerra – PhD
Professor Titular da UFRJ
Editor da INTER – Revista de Direito Internacional e Direitos Humanos