Palavra e poder: linguagem e autoridade nos testamentos oitocentistas
Resumo
No século XIX, a redação de um testamento implicou no registro das últimas vontades de um sujeito, o manejo de uma porção do patrimônio e a ordenação do sepultamento de acordo com os ritos católicos. Orientado para o futuro, o conteúdo do documento se organizou por meio de um padrão de escrita que remete à tradição secular deste tipo textual. Por entre as fórmulas, é possível localizar expressões de subjetividade e intimidade que se referem à pessoa que testa. Além disso, se notam variações e escolhas enunciativas que comunicam intenções e desejos de mando. O exercício das reflexões dispostas neste artigo é um empenho para examinar uma fonte histórica escrita, o testamento, como um documento que pleiteou espaço e legitimidade para dizer, para comunicar algo: como morrer, como partilhar um patrimônio, como manifestar bondade cristã e, sobretudo, como comunicar poder e autoridade. Ficará demonstrado, ao final, de que forma e com quais palavras os testamentos serviram como suporte para registar o poder, para fazer valer a autoridade imputada aos testadores e, por fim, para manter ambos, poder e autoridade, estendidos no tempo, alongados para um futuro. Um futuro que, com sorte, dos testadores restaria palavra e poder.
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