v. 5 n. 2 (2025): NAS MARGENS DO SISTEMA OPRESSOR, RACISTA, SEXISTA, CLASSISTA E ESTADOLÁTRICO

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Iniciamos este editorial em meio ao refluxo de uma maré que, por um tempo, pareceu inescapável. A ascensão global de uma direita autoritária, militarista, igrejista e estadolátrica, cuja face mais espetacular talvez tenha sido a de Donald Trump, não representou uma anomalia, mas sim a condensação grotesca e transparente de lógicas imperialistas, coloniais e patriarcais que sempre estruturaram o Estado capitalista moderno. O seu governo foi a hipérbole de um projeto de dominação, e seu apoio explícito a figuras como Jair Bolsonaro no Brasil selou uma internacional do ressentimento, um eixo transnacional dedicado a aprofundar a guerra contra os povos, os corpos e os territórios dissidentes. Essa aliança não foi um mero acordo político, mas a sincronia de projetos necrofílicos colonialistas outrocidas que se alimentam mutuamente do medo, da desinformação e da violência como método.

No cenário brasileiro, assistimos recentemente ao irônico espetáculo do Leviatã se voltando contra uma de suas criaturas mais ruidosas. A “casa caiu” para o bolsonarismo nos tribunais superiores, num enredo que beiraria o cômico, não fosse trágico. Contudo, longe de celebrarmos as estruturas coercitivas do Estado ou acreditarmos em sua súbita conversão à justiça, uma perspectiva anarquista e decolonial nos obriga a analisar essa movimentação com ceticismo crítico. O que vemos não é o triunfo da democracia, mas a autoproteção de um sistema que percebeu um de seus agentes ameaçar o pacto de dominação da elite que ele próprio deveria servir. A repressão seletiva que hoje atinge um ex-presidente amanhã pode, como sempre, se voltar contra os movimentos sociais e todos que desafiam a ordem. Essa mesma ordem não deixa de atentar um segundo contra afro-pindorâmicos. A questão fundamental, portanto, permanece: como desmantelar as lógicas que produzem tanto os Bolsonaros quanto os sistemas que, eventualmente, os descartam para garantir a própria sobrevivência?

Ao final, a lição que se impõe é a de que a derrota eleitoral ou judicial de um governante não significa a superação das lógicas que o produziram e o sustentaram. O fascismo, o colonialismo e o autoritarismo são espectros que assombram a estrutura do Estado e que encontram terreno fértil no imaginário social. Portanto, enquanto as instituições do poder continuarem a operar sua pedagogia da obediência, nosso trabalho de afiar as ferramentas críticas e cultivar práticas de liberdade radical se torna não apenas relevante, mas vital. Que os textos deste volume sirvam de inspiração e provocação para seguirmos na construção de outras políticas e, finalmente, outros mundos.

É precisamente na intersecção dessas críticas radicais — à dominação estatal e à colonialidade que a produz — que a Revista de Estudos Anarquistas e Decoloniais busca situar sua contribuição. A análise desses fenômenos políticos não pode se restringir à superfície, devendo alcançar as raízes da produção de subjetividades dóceis e da legitimação da violência. Por isso, este volume se debruça sobre um campo estratégico: a Psicologia e suas interfaces com o pensamento libertário.

Destarte, a presente edição da revista Estudos Anarquistas e Decoloniais reúne um conjunto de reflexões críticas que articulam epistemologias insurgentes, práticas educativas de resistência e denúncias contundentes contraestruturas coloniais, racistas e sexistas e Estadolátricas ainda vigentes. Os artigos aqui apresentados oferecem contribuições relevantes para os campos da psicologia, educação, política, cultura e direitos humanos, a partir de perspectivas decoloniais, contra-coloniais e anarquistas. Vamos a eles.

O artigo de abertura, intitulado “Anarquismo da Subjetividade” de Saul Newman: A Subjetividade Pós-Anarquista, de autoria de Ricardo Mendes Mattos, Doutor em Psicologia Social, propõe uma análise teórica sobre o conceito de subjetividade no pós-anarquismo. O autor critica a noção de subjetividade essencialista presente no anarquismo clássico e defende uma subjetividade insurreta, criativa e em constante reinvenção, articulada à ação coletiva e à ontologia anarquista. A Psicologia é apontada como campo fértil para aprofundar tais discussões.

Em Reflexões Decoloniais para Atuação de uma Clínica Psicológica Antirracista: cartografia de um cotidiano, de Diogo Fagundes Pereira, Doutor em Educação, Mestre em Psicologia, Psicólogo Clínico e Pedagogo, e Mariana Felippe Barenco Dorta da Silva, psicóloga, o racismo é compreendido como algo estrutural que atravessa a clínica psicológica e afeta a saúde mental da população negra. A pesquisa cartográfica revela lacunas na formação dos profissionais e propõe uma atuação antirracista nessa área do conhecimento tão valiosa para a população negra.

Na sequência, Abel Calombo Quijila, doutorando em educação, apresenta o artigo África entre independência e dependência: Neocolonialismo e o impacto geopolítico dos discursos das lideranças insurgentes africanas no século XXI, no qual examina o neocolonialismo como mecanismo de dominação contínua no continente africano. A pesquisa destaca a revolução sociopolítica no Sahel e defende o engajamento da juventude e da diáspora africana nos ideais do panafricanismo como caminho para a reconstrução da soberania.

Bruno Costa, doutorando pela Universidade de Coimbra, contribui com o artigo Sionismo como Colonialismo de Povoamento: Modernidade ocidental e direitos humanos, que propõe uma leitura crítica do sionismo como expressão colonial da modernidade ocidental. A partir de uma abordagem transdisciplinar, o autor evidencia como hierarquias raciais e epistemológicas sustentam práticas de exclusão e silenciam discursos de direitos humanos.

O artigo Epistemologia Periférica de Libertação: Racionais MC’s e a Cultura de Luta Antirracista nas Periferias Brasileiras, de autoria de Melina Rocha, doutoranda pela UFMG, propõe uma análise crítica da produção político-artística dos Racionais MC’s como expressão de saberes insurgentes. O estudo reconhece os Racionais como intelectuais orgânicos das periferias urbanas, cuja obra contribui para a valorização dos saberes marginalizados e para a construção de uma pedagogia decolonial. Trata-se de uma contribuição relevante para os debates sobre justiça racial, educação crítica e cultura de luta.

Lucas M. Lessa, mestre em Filosofia pela UFES, em seu artigo Ainda sobre Junho de 2013: Uma Oportunidade Perdida?, revisita as manifestações populares d0 período das manifestações de 2013, propondo uma leitura alternativa que destaca o potencial emancipatório das insurgências, frequentemente ignorado pelas interpretações hegemônicas.

Luiza Rodrigues Gomes, graduanda em Psicologia e pesquisadora da UFRJ, em seu artigo Transformando Espaços, denuncia o silenciamento histórico-epistêmico de sujeitos racial e economicamente marcados no sistema educacional brasileiro. Fundamentado em autores como Cida Bento, Achille Mbembe e Paulo Freire, o estudo propõe uma pedagogia decolonial e plural. A educação é apresentada como ferramenta de resistência e reconstrução identitária. Uma leitura potente e necessária.

 

Convidamos leitoras e leitores a mergulharem nas páginas desta edição, que reafirma o compromisso da revista com a crítica radical e a construção de saberes libertários. Boa leitura!

Publicado: 2025-09-28

Edição completa

Editorial

  • EDITORIAL

    Pamela Cristina de Gois, Wallace de Moraes
    4-7
    DOI: https://doi.org/10.59488/90

Artigos

  • “ANARQUISMO DA SUBJETIVIDADE” DE SAUL NEWMAN A SUBJETIVIDADE PÓS-ANARQUISTA

    Ricardo Mattos
    9-34
    DOI: https://doi.org/10.59488/076
  • REFLEXÕES DECOLONIAIS PARA ATUAÇÃO DE UMA CLÍNICA PSICOLÓGICA ANTIRRACISTA: CARTOGRAFIA DE UM COTIDIANO

    Diogo Fagundes Pereira, Mariana Felippe Barenco Dorta da Silva
    35-59
    DOI: https://doi.org/10.59488/74
  • ÁFRICA ENTRE INDEPENDÊNCIA E DEP NEOCOLONIALISMO E O IMPACTO GEOPOLÍTICO DOS DISCURSOS DAS LIDERANÇAS INSURGENTES AFRICANAS NO SÉCULO XXI

    Abel Calombo Quijila
    60-85
    DOI: https://doi.org/10.59488/53
  • SIONISMO COMO COLONIALISMO DE POVOAMENTO: MODERNIDADE OCIDENTAL E DIREITOS HUMANOS

    Bruno Costa
    86-128
    DOI: https://doi.org/10.59488/82
  • EPISTEMOLOGIA PERIFÉRICA DE LIBERTAÇÃO Racionais MC’s e a Cultura de Luta Antirracista nas Periferias Brasileiras

    Melina Sousa da Rocha
    129-145
    DOI: https://doi.org/10.59488/32
  • AINDA SOBRE JUNHO DE 2013: UMA OPORTUNIDADE PERDIDA?

    Lucas M. Lessa
    146-177
    DOI: https://doi.org/10.59488/643
  • TRANSFORMANDO ESPAÇOS: UMA DENÚNCIA SOBRE O SILENCIAMENTO HISTÓRICO-EPISTÊMICO DA IDENTIDADE AFRO-PINDORAMICA E SEUS REFLEXOS NO ATUAL SISTEMA DE ENSINO BRASILEIRO

    Luiza Rodrigues Gomes
    178-196
    DOI: https://doi.org/10.59488/854