v. 1 n. 1 (2019): Ágora-filia em Questão
Editorial:
É com enorme prazer que anunciamos o primeiro número da Revista Estudos Libertários (REL)! Trata-se da concretização de um sonho coletivo. Queríamos poder contar com uma revista acadêmica de orientação libertária que permitisse espaço para diversos pesquisadores que teimam em enveredar pelo caminho do amor incondicional à liberdade e à igualdade. Muitas revistas tradicionais, embebidas pelo fenômeno da estadolatria, não estão dispostas a aceitar estudos que critiquem radicalmente o Estado, o capitalismo, suas hierarquias, autoritarismos e discriminações sociais.
No sentido oposto, a REL busca abrir caminho para reflexões autônomas, seja com base nos conceitos anarquistas como: autogoverno (autogestão), ação direta, propaganda pelo fato, federalismo, horizontalidade, autonomia, emancipação social, ajuda mútua, autodeterminação dos povos dentre outros; e/ou seja focando nas lutas dos governados e de seus movimentos coletivos combativos, insurgentes, revolucionários, por fora da institucionalidade. No interior de todas essas discussões, a REL prima pela crítica mais contundente possível a toda forma de racismo, patriarcalismo, homofobia, xenofobia, de exploração econômica de uns sobre outros, aquilo que chamamos por governanças sociais. Toda forma de hierarquia social, autoritarismo, desigualdade social, exercício da força para opressão, capitalismo, estatismo ou estadolatria, será combatida aqui. Também incentivamos “a criação destrutiva” (como dizia Bakunin), com vistas a criar o novo.
Sob uma perspectiva anarquista, todo avanço científico e tecnológico é resultado do trabalho coletivo de um sem número de pessoas, como defende Kropotkin. Esse número da REL não foge a essa regra. Todavia, é importante aqui agradecer a todas e todos que colaboraram diretamente para que esse trabalho viesse a público. Os membros do conselho editorial, os pareceristas, que prontamente atenderam nossos pedidos, e mais particularmente, Guilherme Santana, Juan Magalhaes, Maria Luiza de Freitas, Isabella Correia, Mag e Antonia Pires (no início dos trabalhos) foram fundamentais. Por fim, agradecemos também aos autores que confiaram no nosso trabalho, enviando artigos e resenhas para publicação na primeira edição histórica. Desejamos que a REL tenha vida longa.
Os artigos desse primeiro número são de extrema qualidade e tratam exatamente daquilo que pensávamos inicialmente, isto é, de uma “teoria das ruas e não de uma teoria para as ruas”. Esse deve ser um pilar fundamental das perspectivas das nossas análises.
A revista está composta por três seções. A primeira tem o nome de Versão e trata de artigos publicados em outras línguas, os quais julgamos importante traduzir para ampliar sua leitura ao público de língua portuguesa. A segunda seção é destinada a artigos científicos. A terceira diz respeito a resenhas, entrevistas e notas de pesquisas.
Além disso, primamos pela pluralidade e pelo internacionalismo. Seguindo este diapasão, neste primeiro número publicamos artigos de diversos campos das ciências humanas. Temos análises típicas das áreas de Antropologia, Ciência Política, Sociologia, História, Filosofia e Direito. Em comum, todas militam no campo libertário e, portanto, analisam os seus respectivos temas por um viés por fora do mainstream.
Nosso primeiro artigo, inaugurando a seção Versões da REL, é de autoria de Francis Dupuis-Déri, professor da Université du Québec à Montréal (UQAM), com o título “Quem tem medo do povo? – o debate entre ágora-fobia política e ágora-filia política”. Nesse artigo, o cientista político canadense faz uma discussão teórica/histórica sobre aqueles que têm medo da participação popular na escolha dos rumos políticos/organizacionais de suas próprias vidas e aqueles que acreditam na capacidade de autogoverno do povo. Daí sua proposta de dois novos conceitos: 1) ágora-fobia política (aqueles que rejeitam a participação popular direta na política) e ágora-filia política (aqueles que defendem que o povo deve ter as rédeas dos destinos políticos em suas próprias mãos, sem necessidade de representantes). O autor, especialista em discussão de gênero e do papel dos Black Blocs, enfatiza como intelectuais desde tempos imemoriais se opuseram à participação do povo nos assuntos políticos, fato que aconteceu com mulheres, negros e não proprietários, por exemplo. Com efeito, apresenta os argumentos de ambos os lados para defender suas teses. Além disso, Dupuis-Déri utiliza o conceito “bege” para se referir aos brancos, desconstruindo essa criação dominadora com sentido de pureza, limpeza etc a uma raça que também tem cor.
O racismo ainda tem raízes muito profundas, persistentes nas nossas sociedades no século XXI. A luta contra a discriminação racial é um dever de todos os libertários. Thiago David Stadler e Naiara Krachenski estruturaram um artigo de extrema relevância para essa luta. A partir da tríade história – colonialismo – epistemologia, com base nas reflexões de Aimé Césaire e Frantz Fanon, dois intelectuais negros, Stadler e Krachenski jogaram luz sobre as relações que “forjaram uma epistemologia que foi utilizada para impor a violência e justificar os abusos cometidos em solo colonial.” Trata-se de uma pesquisa que contribui sobremaneira no entendimento de como a experiência colonial contemporânea forjou as estruturas político-sociais no Ocidente. Nos dizeres dos autores, o objetivo da pesquisa é descortinar a epistemologia ocidentalizada dominante para entendermos como as críticas iniciadas por Fanon e Césaire podem auxiliar num fazer histórico e filosófico mais descolonizado.
Ao longo da História, algumas lutas serviram como inspiração para os movimentos libertários no mundo. Foram os casos da Comuna de Paris, das Revoluções espanhola e mexicana, das greves gerais, das ocupações de terras, das formações de resistências das mais diversas. Duas grandes referências para o pensamento anarquista da passagem do século XX para o XXI foram as lutas dos indígenas de Chiapas e dos curdos, na Turquia e na Síria. Esses temas serão tratados pelos artigos de Ana Paula Morel (sobre o zapatismo) e Alexandre Mendes, Patrick Saigg e Paolo Ricci de Azevedo (sobre o zapatismo e a luta curda). Ambos os trabalhos enfocam aspectos importantes das lutas por autonomia. Enquanto Morel privilegia aspectos caros aos estudos antropológicos; Mendes, Azevedo e Saigg olham sob o prisma do Direito.
É mister salientar que, desde 1994, a luta genuinamente popular e indígena de Chiapas, no sul do México, tem se tornado uma das principais referências de ação direta e autogoverno para libertários. O artigo de Ana Paula Morel é fruto de pesquisas de campo entre 2013 e 2017, sendo de fundamental importância para entender por dentro os meandros da ação direta indígena na América e em particular sobre o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e suas bases de apoio. O trabalho foi guiado por um viés libertário, tendo em vista que a autora destaca e aponta como positiva a autonomia indígena diante das instituições constituídas no México. Aliás, do ponto de vista histórico, os indígenas sabem muito bem o papel que o Estado, imposto pelos governantes europeus, exerceu sobre suas vidas, determinando muito claramente, aquilo que Achile Mbembe cunhou de necropolítica. Mas, para além disso, Morel associa a autonomia do movimento com a sua relação com a terra, a qual por sua vez está vinculada a toda uma trama de coordenadas que constituem a existência desses povos. Para tanto, ela se vale do conceito de cosmopolíticas. A professora da UFF mostra como a terra é vista como mãe de todos, essencial para a vida e, portanto, o movimento é contra sua transformação em mercadoria.
Por sua vez, Mendes, Azevedo e Saigg demonstram como as práticas dos movimentos zapatista e curdo resultam em uma revolução particular sobre a própria ideia de Direito, normalmente entendida como expressão do Estado. Os autores apontam como esses movimentos sociais ressignificaram e contribuíram para um pluralismo jurídico fora do Estado e contra as relações de dominação, opressão e exploração. Trata- se de um artigo que expressa uma revolução para o Direito, porque joga abaixo a centralidade do Estado, característica desse campo. Ao mesmo tempo, atenta contra as hierarquias e autoritarismo, pois os movimentos zapatista e curdo constroem suas relações sem o monopólio daqueles que sabem o “juridiquês” e completamente distantes dos governados. Nessas experiências analisadas pelos autores, membros do próprio povo fazem parte da elaboração de suas regras que porventura prezam pela negação do penalismo, típico do direito estatal.
No interior de estudos sobre o sindicalismo, um tema clássico da sociologia do trabalho, Selmo Nascimento da Silva apresenta seu contundente artigo intitulado “O sindicalismo revolucionário: suas origens, princípios e programa”. Ao fazê-lo, encara a polêmica do papel do sindicato para a revolução. Em tempos de sindicalismo amorfo e subordinado, cuja perspectiva da conciliação de classe masoquista tem sido prioritária, a pesquisa de Da Silva busca resgatar lutas fundamentais ligadas, no qual os interesses da classe que vive do trabalho eram prioritários. O estudo corrobora para uma leitura anarquista sobre o papel do sindicalismo revolucionário no Brasil, combatendo teses em contrário. Ao descrever o histórico da AIT (Associação Internacional dos Trabalhadores), resgatando seu papel, princípios e polêmicas, o sociólogo produz uma enorme contribuição para o conhecimento dessas contendas através de amplo debate bibliográfico, fundamental para pensarmos nossa atualidade política.
Talvez poucos historiadores saibam que muitos dos princípios defendidos pelos anarquistas foram aplicados nos movimentos de contestação dos governados na década de 1910 no Brasil. O cientista político Nildo Avelino, com o seu artigo “Cenas do Agir Anárquico”, colabora para uma reflexão bastante instigante, rememorando o significado daqueles movimentos. Debatendo com referencial teórico de Charles Tilly e Michel Foucault, Avelino aborda três momentos históricos do movimento anarquista, a saber: 1917, 1918 e 2013. O autor observa como esses contextos foram permeados pelos mesmos tipos de “performance coletiva”. Por si só, a comparação dos movimentos dos trabalhadores de 1917 e 1918 com o de 2013 constitui um feito extraordinário para entendermos as agitações dos governados no Brasil. Ademais, Avelino identifica um eixo comum, muito caro ao movimento anarquista, a saber: as opções pela horizontalidade, organização anti-hierárquica e ação direta, sendo esta última o eixo principal do “agir anárquico”. Esse é um belo artigo para entendermos as lutas populares e autônomas no Brasil para além de monopólios de partidos políticos e seus burocratas.
Por fim, os artigos de Pedro Guilherme Freire e de Bruno Corrêa de Sá e Benevides mostram o quão são importantes a literatura, a poesia e a cultura de modo geral para a luta anarquista. O artigo “A República sem poetas: a arte de vanguarda na contrarrevolução Russa”, de Pedro Guilherme Freire, manifesta o papel exercido por diferentes governos no controle e ataque à liberdade dos poetas revolucionários. A máxima histórica anarquista, segundo a qual é papel do Estado, seja ele qual for, coibir a luta emancipatória e revolucionária para garantir a ordem e os interesses dos governantes, é amplamente comprovada com a pesquisa de Freire. Os “revolucionários” russos que assumiram o poder passaram a perseguir seus opositores e em particular a cultura underground, insubmissa e contestatória. Os anarquistas constituíram um dos principais alvos dessas perseguições. Freire prova como o lema “todo poder aos sovietes” foi suplantado por uma idolatria ao governante da hora. Logo no início do artigo, ele utiliza a expressão: os poetas contra o Estado, que exemplifica o teor do trabalho. As reflexões de Vladimir Maiakóvski perpassam por toda a análise, servindo de eixo para justificar suas conclusões.
Nos últimos tempos, uma corrente da historiografia tem privilegiado o resgate de atuações importantes de personagens que contribuíram para a construção de um pensamento/ação/postura. Em particular, algumas pesquisas resgataram o papel que determinados militantes anarquistas exerceram na construção do campo libertário. Foi o caso de Neno Vasco, Oreste Ristori, Edgard Lourenroth e outros. É nessa perspectiva que se insere o artigo “Não mais governos, nem reis!: a literatura rebelde e libertária de Angelo Bandoni”, de Bruno Corrêa de Sá e Benevides. Seu objetivo foi discutir o desempenho militante exercido por Bandoni para o movimento anarquista, enquanto poeta que viveu na primeira metade do século XX em São Paulo. Benevides comenta como suas poesias publicadas na imprensa libertária paulista serviram a esse propósito. O historiador, como um bom biógrafo, também reconstrói o contexto vivido pelo Bandoni, ao analisar suas obras.
Fechando o primeiro volume da Revista Estudos Libertários, na seção Resenhas, Guilherme Santana comenta o livro “2013 – Revolta dos Governados: ou para quem esteve presente, Revolta do Vinagre”, de Wallace de Moraes. Santana descreve as teses e metodologia empregadas, discutindo seu quadro teórico com questões da empiria dos protestos de 2013, os maiores da história brasileira e que tiveram um grande componente libertário.
Por fim, resgatamos a letra do samba da mangueira de 2019 que expressa muito bem o objetivo da nossa revista: popular, negra, revolucionária e combativa (tudo no feminino). Desejamos uma boa leitura dos artigos e que eles sirvam para inspirações ágora-fílicas! Saudações libertárias!